Fernanda Simoneto
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“A estratégia do governo é tentar reduzir o efeito agora e diluir o impacto fiscal ao longo do tempo”, afirma economista sobre pacote de corte de gastos.
Anunciado pelo Ministro da Economia, Fernando Haddad, nos últimos dias de novembro, o pacote de corte de gastos gerou rebuliço no mercado financeiro. Entre as medidas comunicadas está uma nova regra para o cálculo do salário mínimo, a revisão dos benefícios sociais concedidos através de uma espécie de malha fina dos beneficiários e correções na previdência dos militares, além de limitações nos repasses de emendas parlamentares. A expectativa do governo é gerar uma economia de 30 bilhões de reais já em 2025. Em 2026, o valor deve alcançar 40 bilhões, chegando a 79,9 bilhões de reais em 2030.
A finalidade do projeto é permitir o cumprimento do arcabouço fiscal (2023), regra posterior ao teto de gastos, aprovado ainda no governo de Michel Temer, que busca dar maior flexibilidade ao regime fiscal brasileiro. Pela legislação aprovada em 2023, o crescimento das despesas deve ser equivalente a 70% do crescimento da receita do país, aumentando entre 0,6 e 2,5% da inflação. Ou seja, em momentos de crescimento econômico, as despesas não podem aumentar além de 2,5%. Nos momentos de baixa, não podem ser inferiores a 0,6% da inflação. A regra anterior, aprovada em 2016, limitava o crescimento à inflação, sem ganho real. A intenção do terceiro governo Lula era zerar o déficit fiscal (diferença entre receitas e despesas) já em 2024, e atingir o superávit em 2025.
Junto com isso, foi anunciada a mudança na faixa de isenção do Imposto de Renda: o governo deve enviar em 2025 o projeto que isenta pessoas que ganham até cinco mil reais ao mês, ou 60 mil reais ao ano, do pagamento do imposto. Em contrapartida, haverá inclusão dos mais ricos na tabela do IR. “A reforma tributária da renda tem o pressuposto da neutralidade fiscal. A reforma tributária não visa nem aumentar, nem diminuir a arrecadação. O objetivo é buscar eficiência e justiça tributária”, afirmou Haddad durante coletiva de imprensa sobre o pacote de corte de gastos.
Para entrar em vigor em 2025, o pacote ainda deve tramitar no Congresso Nacional, cercado de negociações e trocas políticas, o que deve ser dificultado pelo recesso parlamentar, com início em 23 de dezembro. O Humanista conversou com o professor de Economia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Alessandro Miebach, que explica quais serão os possíveis impactos do pacote do corte de gastos nas áreas sociais e destaca os erros e os acertos da proposta.
Se o pacote de gastos for aprovado para 2025, que impactos ele deve gerar para a população?
A tua pergunta tem uma questão implícita que é a aprovação da mudança nos impostos, e eu não acredito que isso vá acontecer. São duas coisas que estão no mesmo conjunto de medidas propostas pelo governo. Uma coisa é uma reforma tributária, na qual se reduz a incidência do Imposto de Renda para quem recebe até 5 mil reais e aumenta a incidência de impostos para rendas maiores. Eu não acredito em tempo hábil para a aprovação dessa reforma no ano de 2025.
O que é imediato são os elementos de natureza fiscal. Tem uma coisa interessante [no pacote] que é a limitação dos salários mais altos, dos supersalários, vai ter uma minirreforma na previdência dos militares, alinhando mais com o serviço público em geral. Outro elemento importante é a nova regra de correção do salário mínimo, que vai gerar um aumento menor do que pela regra antiga. E isso vai ter um efeito nos gastos públicos, caso entre em vigor. O aumento [do salário mínimo] que seria a variação do PIB somado à inflação passa a ser limitado em 2,5%. A previsão de crescimento do PIB está se aproximando de 4% ao ano, então é uma diferença importante.
COMO ERA ANTES:
Inflação do ano anterior + crescimento do PIB nos dois últimos anos
Por esse cálculo, o SM crescerá 2,9% acima da inflação a partir de 2025.
COMO FICA COM O PACOTE DE CORTES:
Crescimento dado pelo PIB mas dentro dos limites do arcabouço fiscal (0,6-2,5% da inflação).
Ou seja, nos anos de menor crescimento do PIB o salário cresce pelo menos 0,6%.
A limitação das emendas parlamentares pode acontecer, mas eu acho difícil. Acho inclusive que foi colocada no processo como um elemento a ser negociado ao longo do trâmite do pacote no Congresso Nacional. Mas também cortaria gastos. A estratégia do governo é tentar reduzir o efeito agora e diluir o impacto fiscal ao longo do tempo. Em 2025, se implementado o conjunto de medidas, o impacto seria de 30 bilhões de reais, de acordo com as estimativas do governo. Em 2030, o impacto seria de 79,9 bilhões de reais, o dobro. Porque ele vai num crescente, justamente pela perspectiva de ir alterando o efeito cumulativo do aumento do salário mínimo.
Qual o impacto para as áreas sociais do orçamento e de auxílio do governo?
O argumento do governo é de tentar qualificar os programas. Ou seja, eu vou tentar especificar o público-alvo da política pública. Então, por exemplo, vai se tentar refinar os critérios de concessão dos benefícios. No caso do BPC (Benefício de Prestação Continuada) vai se ter biometria para a concessão, é uma tentativa de ampliar a eficiência da concessão. Aí tem questões do ponto de vista prático, que dependem muito da implementação. O que acaba acontecendo no caso dessas políticas públicas é que se restringe o acesso. Na medida em que eu aumento a fiscalização, eu posso, por um lado, aumentar a eficiência, mas existe sempre o risco, que vai depender da capacidade de gestão, de dificultar o acesso para a população que precisa. Mas o argumento do governo é de tentar melhorar a focalização dos programas, direcionando eles, evitando desvios e concedendo os benefícios para pessoas que não se classificam nos critérios de seleção. A mesma coisa acontece para o bolsa-família. As concessionárias de serviço público vão disponibilizar informações para conferir os cadastros.
Existem experiências internacionais que mostram que ao complexificar o acesso aos programas, muitas pessoas elegíveis acabam não acessando o programa, então é uma coisa que se tem que estar atento. Talvez isso seja um elemento importante para entender a reação ao pacote, porque de fato o que o pacote não está fazendo é cortar esses gastos de natureza mais social. Ele não atende uma demanda que estava colocada de reduzir os gastos com saúde e educação, alterar os mínimos constitucionais.
Os mínimos constitucionais são percentuais mínimos de investimento definidos pela Constituição Federal para as áreas da saúde e da educação, consideradas direitos sociais básicos dos cidadãos. Nos artigos 198 e 212, estão estabelecidos percentuais de investimento para as duas áreas para a união, estados e municípios. Para a educação, o governo federal deve dedicar pelo menos 18% das receitas de impostos. Para a saúde, o percentual mínimo é de 15%.
Se fala muito do corte de gastos, mas pouco se explica sobre os motivos pelos quais ele poderia ser importante. Por que esse corte pode ser necessário?
Isso é um debate no campo da economia entre a necessidade ou não de regras fiscais. A partir da década de 80 se criou uma espécie de consenso dentro das correntes que chamamos de mainstream, da ortodoxia econômica, relativo à necessidade de regras fiscais, que obrigam os governos, independente de quem estiver no poder, a cumprir regras em relação aos gastos públicos. No Brasil, historicamente, nós temos uma série de regras, como a regra de ouro, mas o governo Michel Temer implementou o teto de gastos. Ou seja, uma restrição ao crescimento dos gastos públicos. O argumento macroeconômico para isso é que o governo compete pelos recursos com o setor privado. Se o governo gastar muito ele vai pegar recursos que poderiam estar disponíveis para o setor privado fazer investimento. O segundo elemento é que muitas dessas correntes consideram o gasto público como ineficiente. Quando se combina os dois elementos, a visão para essa corrente é que uma boa política macroeconômica pressupõe o menor gasto público possível, porque aí sobra recurso para o gasto privado, o governo não pressiona pelo recurso.
Existe uma outra visão que vai discordar dessa perspectiva e vai colocar que o gasto público tem um efeito multiplicador. Ele tem o potencial de induzir a atividade econômica. Então o governo gasta, e com isso movimenta a economia, gerando um efeito multiplicador. Isso vai induzir na contratação de bens e serviços de empresas, que demandam outros bens de outras empresas, ativando o mercado de trabalho e girando a economia. Essas são duas visões distintas da economia.
E a mídia corporativa dá muito pouco espaço para as perspectivas críticas e heterodoxas. O discurso que aparece é muito mais uníssono em replicar esses discursos mainstream da economia. Mas o que a gente observa é que as evidências empíricas não são assim tão assertivas. Existem vários casos de sucesso em usar políticas de ativação da economia, existem também limitações. Não me parece que seja viável a gente pensar que o gasto público possa ser infinito, que o governo possa se endividar indefinidamente. Existem questões também associadas ao mercado externo, aos fluxos do câmbio.
No governo Michel Temer seguido pelo governo Jair Bolsonaro a visão mainstream era a visão hegemônica, expressa, por exemplo, pelo ex-ministro Paulo Guedes. Nessa visão, para promover o crescimento seria necessário ter o que chamamos de austeridade, que é contrair os gastos para abrir espaço para o setor privado. A visão do novo governo é diferente. O país tem operado com gastos maiores, e a economia vem crescendo mais.
Na atual conjuntura econômica brasileira, o mercado tem errado muito com a previsão de crescimento. Isso parece indicar que, de fato, o mercado não acredita que a economia vai crescer. Enquanto o governo, até mesmo pela forma como foi colocado o ajuste fiscal, trabalha com um horizonte de manutenção do crescimento. E o mercado não enxerga isso, mas de fato a economia brasileira tem crescido nos últimos anos.
Na sua visão, o cenário brasileiro indicava para uma necessidade de corte de gastos? E que avaliação faz do projeto entregue pelo governo?
O projeto é bom, tem muitas coisas que são razoáveis, de bom senso. A previdência dos militares, o controle mais estrito dos supersalários. Tem uma questão complexa que é a do salário mínimo. Por um lado se cria uma regra salarial que não é tão boa quanto a anterior, mas o governo está apostando no crescimento da economia. E esse crescimento permitiria estabilizar a relação dívida PIB de maneira mais suave. A questão é que o pacote não endereça a pressão do mercado, que exige cortes mais intensos.
A primeira discussão é sobre a meta de inflação brasileira, que é muito baixa para a nossa economia. Deveríamos ter uma meta de inflação mais alta para seguir crescendo. Seria preciso tolerar um pouco mais a inflação, e isso não quer dizer inflação descontrolada, mas uma meta mais condizente com a estrutura econômica. Uma meta de inflação muito baixa restringe muito o crescimento econômico.
A meta de inflação definida para 2024 e para 2025 pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) é de 3%. A margem de erro é de 1,5 ponto porcentual para cima ou para baixo. Caso a inflação ultrapasse esses valores, considera-se que o Banco Central não cumpriu a meta.
É preciso ter cuidado com os dados no âmbito do câmbio porque tem a questão da especulação do câmbio, mas o dólar está se valorizando no mundo inteiro. É um processo generalizado ligado às incertezas do governo Trump, às tarifas que vão ser impostas e o efeito na inflação norte-americana. Então, quando a gente olha o câmbio e faz uma ligação mecânica, ajuste fiscal – governo – câmbio, está errado. Na minha visão não é o único componente e nem o principal. O principal elemento é a incerteza global.
Na minha visão, a questão central é conseguir manter um processo de crescimento sustentável. Acredito que um ajuste fiscal de longo prazo é viável de ser atingido. Agora, o dilema fundamental a meu ver não é de natureza econômica. O problema que temos de fundo é que o nosso contrato social enquanto sociedade está em disputa. O que eu quero dizer é que na Constituição de 88, nós pensamos em um país com educação universal, com sistema de saúde universal, com um conjunto de elementos estabelecidos por um contrato social. Nos últimos anos, de forma mais intensa, existe uma disputa em relação à manutenção ou não desse contrato social. Um elemento importante do ajuste fiscal é sim aumentar a arrecadação de impostos, principalmente reduzindo as desigualdades, tributando os mais ricos. Porque o nosso sistema tributário é muito regressivo. E isso é uma medida que o governo colocou nesse pacote, corretamente na minha avaliação, mas que gerou bastante insatisfação. Mas a questão mais substantiva é: que país a gente quer?
A economia brasileira tem crescido, os níveis de desemprego são os mais baixos dos últimos anos, mas a renda das famílias não parece acompanhar essa melhora. A longo prazo, o que isso pode nos trazer enquanto país? Vamos ter que ficar sempre inflando o crescimento com o uso de verba pública?
Tem duas questões importantes: uma é a qualidade desse crescimento e a outra é a distribuição. Em termos da qualidade, nós temos um problema. O principal é que nós temos crescido mas não estamos aumentando a produtividade do trabalho, que é quanto cada trabalhador produz. Comparando com países de renda mais alta, identificamos uma produtividade mais alta, o que não é necessariamente trabalhar mais, mas sim produzir mais. Isso em geral está associado com uma atividade industrial mais produtiva e serviços de alta complexidade. E a economia brasileira, pelo menos desde a década de 90, está em um processo de desindustrialização e reprimarização. Então estamos trocando as atividades de alta produtividade por atividades de baixa produtividade.
Onde temos alta produtividade? No agronegócio, especialmente na agropecuária, e na indústria mineral extrativa. O problema é que emprega pouco, não é uma solução para empregar a nossa juventude nas grandes cidades. E essa juventude está indo para o setor de serviços – os aplicativos de transporte e de entrega, que são funções de baixa produtividade.
Se tem uma série de questões sobre projeto de país, capacidade de compor a tecnologia, inserção internacional. É uma questão de longo prazo. O Brasil está em uma estagnação pelo menos desde os anos 80. No século XX, entre 1950 e 1980, a China do mundo era o Brasil. Era o país que mais crescia, que fez uma transformação estrutural saindo de um país agrário para um país altamente tecnológico para os padrões da época.
Como a gente retoma esse crescimento? Isso é um debate infinito, mas uma coisa é certa: o neoliberalismo não nos entregou crescimento robusto, crescimento capaz de transformar a renda per capita. Para transformar o país precisamos crescer na faixa de 4-5% ao ano, e raramente conseguimos isso.
Outra coisa é a distribuição de renda. Nesse processo de expansão até os anos 80 geramos uma grande desigualdade social. Então, desenvolver e aumentar a produtividade não necessariamente leva a uma menor desigualdade.
Fonte: Humanista
Texto: Fernanda Simonte
Data original da publicação: 16/12/2024