por Felipe Prestes
Entre os anos 1990 e início da década de 2010, as trabalhadoras domésticas tiveram avanços no Brasil, com crescimento da renda e da formalização. Essas conquistas culminaram com a PEC das Domésticas, aprovada em 2013 e regulamentada em 2015, que estendeu ao trabalho doméstico direitos que os demais trabalhadores já tinham há décadas. Porém, as crises política, econômica e sanitária frustraram a expectativa de que a legislação trouxesse mais bem-estar a estas trabalhadoras. É o que mostra o livro Trabalho Doméstico Remunerado no Brasil: continuidades, avanços e retrocessos num contexto de crise (Ed. Dialética, 2024), dos economistas Cristina Vieceli e Carlos Henrique Horn.
“Houve um retrocesso com a reforma trabalhista, uma crise política importante com o impeachment da presidenta Dilma e uma deterioração nas condições do mercado de trabalho. Além disso, a gente tem a questão da covid-19, que vai atingir fortemente as trabalhadoras domésticas. Então, essas questões se sobrepuseram aos avanços legislativos (da PEC das Domésticas)”, explica Vieceli.
Todos esses acontecimentos, que ocorreram após a regulamentação da emenda constitucional, dificultam a análise sobre os efeitos dessa legislação. “Quem quiser analisar o efeito da PEC das Domésticas vai ter que esperar um pouco mais”, defende Horn.
A pesquisa sobre trabalho doméstico começou na dissertação de mestrado de Cristina Vieceli, orientada por Horn, que também virou livro (Emprego doméstico no Brasil: raízes históricas, trajetórias e regulamentação, lançado em 2017, pela editora LTR, de Cristina Pereira Vieceli, Julia Giles Wünsch e Mariana Willmersdorf, com coordenação de Carlos Henrique Horn). À época, a investigação analisou as décadas de 1990 e 2000. O trabalho mais recente, feito a partir de financiamento de um grupo de estudos feministas da American University, atualizou a pesquisa sobre aquele período e analisou também os anos 2010 e início da década de 2020.
Além de utilizar dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, e da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), do DIEESE, os autores também fizeram entrevistas com trabalhadoras, dirigentes sindicais e advogadas trabalhistas.
Aumento da renda e envelhecimento
No primeiro recorte temporal, dos anos 1990 ao início da década de 2010, os pesquisadores concluíram que houve um envelhecimento da categoria. “A proporção de empregadas domésticas em faixa etária de 40 anos ou mais dá um enorme salto, fica maior do que a média da população”, relata Horn.
Os economistas viram essa mudança como o fim de um ciclo que vinha desde a escravidão. Com maior escolaridade e economia aquecida, as jovens passaram a buscar outras oportunidades “O trabalho doméstico era como se fosse um legado da escravidão, de neta para bisneta. Esse processo se rompeu durante esse período, e as trabalhadoras começaram a envelhecer”, explica Vieceli.
Outra mudança foi a diminuição do trabalho doméstico no total do trabalho feminino. Com menos pessoas buscando essa ocupação, aumentou o poder de barganha destas trabalhadoras. Além disso, a política de valorização do salário mínimo também ajuda a explicar porque elas tiveram um aumento de renda maior que o da média dos trabalhadores neste período.
Crises em sequência
Da década de 2010 até o presente, a tendência de envelhecimento das trabalhadoras domésticas se manteve, bem como a redução relativa de pessoas exercendo essa atividade. Hoje, cerca de 5% das mulheres ocupadas estão nesse setor, montante que já foi de 10%. “Em relação ao perfil das trabalhadoras não houve mudanças relevantes. As trabalhadoras permanecem com uma média de idade de 45 anos, mais elevada quando se compara com o total das mulheres do mercado de trabalho em geral. São principalmente chefes de família, mulheres negras. E há uma redução dessa ocupação no total das mulheres ocupadas”, explica Cristina Vieceli.
O que mudou foi o ciclo virtuoso de aumento de renda e formalização, começando com a recessão de 2015 e se agudizando durante a pandemia de covid-19. “Após a PEC (em 2013), a gente teve uma melhoria nos dois anos iniciais, na formalização. Depois vai ocorrer uma piora nessa questão e uma deterioração importante do trabalho durante a pandemia, em que muitas trabalhadoras foram demitidas e ainda não tivemos uma recuperação desse trabalho. A gente tem uma deterioração também da remuneração dessas trabalhadoras, principalmente quando comparadas com a renda total das trabalhadoras mulheres. E, durante a pandemia, ocorre um aumento bem pronunciado da pobreza e da extrema pobreza entre as trabalhadoras domésticas. Com a deterioração do mercado de trabalho brasileiro houve uma piora ainda mais relevante para as trabalhadoras domésticas”, avalia a economista.
Ainda assim, as trabalhadoras domésticas puderam usufruir de direitos que lhes haviam sido negados antes desse período, com o recolhimento do FGTS e a fixação de jornada de trabalho, de horários de descanso, de remuneração para as empregadas que vão viajar com a família, entre outros. “Foi uma grande conquista a legislação das domésticas, principalmente o reconhecimento de que é um trabalho como qualquer outro. É um avanço extremamente importante”, diz Vieceli.
No entanto, a economista ressalta que é preciso maior fiscalização em aspectos como o cumprimento das jornadas de trabalho, bem como o fortalecimento das entidades sindicais. “Muitas trabalhadoras não reconhecem essas garantias, por causa do seu perfil de baixa escolaridade, e também há dificuldade do próprio movimento sindical de se organizar, porque nunca foram reconhecidos os sindicatos das trabalhadoras domésticas e nem as negociações coletivas. Por mais que a gente tenha os direitos assegurados, primeiro deve haver o conhecimento das trabalhadoras domésticas sobre esses direitos e também fiscalização no local de trabalho, que é dificultada por ser um trabalho exercido no domicílio”.
Além dessas questões, a lei trouxe um retrocesso para as trabalhadoras que atuam duas vez por semana ou menos no domicílio, conhecidas como diaristas. Elas passaram a ser consideradas trabalhadoras sem vínculo com o empregador e, portanto, sem o rol de direitos que a PEC garantiu às mensalistas e mesmo os que já eram previstos anteriormente. “Antes, era possível você comprovar o vínculo trabalhista mesmo para as diaristas. Depois da lei, não. Então, a legislação acabou protegendo quem empregava diaristas. É necessário que se avance nesse sentido”, defende Vieceli, que ressalta que grande parte dessas profissionais acaba não contribuindo como autônomas com a previdência, ficando descobertas de seguridade social.
Recuperação e futuro do trabalho doméstico
Recentemente, o trabalho doméstico tem tido recuperação após as demissões provocadas pela pandemia. “O emprego doméstico voltou a aumentar em termos absolutos, mas em termos relativos a tendência continua sendo de queda”, explica Horn. Um ambiente econômico favorável pode ajudar a mostrar efeitos benéficos da legislação trabalhista para as domésticas. “Minha hipótese é de que a crise teve um efeito preponderante sobre o que aconteceu. Vamos ver como fica mantendo essa conjuntura um pouco mais favorável”.
Um dos desafios para uma melhora no bem-estar das trabalhadoras domésticas são as novas formas de desregulamentação do trabalho, como a pejotização, que ainda não aparece nas estatísticas analisadas pelos pesquisadores, mas já está presente em relatos. “O que as as dirigentes sindicais e as advogadas trabalhistas trazem é que há um movimento, que a gente não consegue enxergar nas estatísticas, de tornar as trabalhadoras mensalistas como MEI, o que é algo ilegal. Tem relatos de uma das advogadas de que os próprios empregadores transformaram as trabalhadoras em MEI, fizeram todo o processo, e elas acabaram não entendendo direito como era, foram demitidas e passaram a ser devedoras, porque deixaram de contribuir. Isso é uma coisa gravíssima”, aponta Cristina Vieceli.
Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostram que, em termos absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais pessoas realizando trabalho doméstico, o que dá ideia da relevância de debater o tema no país. Para Carlos Henrique Horn, há ainda dois aspectos que tornam esse debate central. “Tem a preocupação geral de entender qual a condição em que esse trabalho ocorre, qual a remuneração, se está adequado à legislação, e assim por diante. E a segunda questão é a do trabalho de cuidados com crianças, com idosos, essa é uma questão chave em qualquer sociedade, como é que nós vamos prover os cuidados com aqueles que demandam”.
O economista aponta que, após as mulheres começarem a ingressar no mercado de trabalho, a partir da década de 1950, o arranjo inicial de cuidados foi a contratação de trabalhadoras domésticas por famílias de classe alta e média, mesmo para camadas médias com poucos recursos. “Então, agora uma questão que se tem é a seguinte: com a entrada massiva de mulheres no mercado de trabalho, e havendo uma menor oferta de pessoas para afazeres domésticos em geral, como é que vai ser provido o serviço de cuidado? Uma divisão mais equitativa de trabalho entre homens e mulheres? Uma provisão do Estado por serviço de creches, de lares para idosos, uma vez que a provisão disso pelo setor privado tem um custo que afastaria uma boa parte da população?”, questiona.