Por que o Covid-19 não é neutro ao gênero?

Cristina Pereira Vieceli

Desde que a pandemia do coronavírus se iniciou na cidade de Wuhan na China, o mundo vem passando por transformações importantes que impactam em diversos níveis, mutuamente relacionados. Em nível micro, na rotina imediata das pessoas, na forma como lidamos com o isolamento e com afetos como medo, angústia e ansiedade. Em nível meso, em como as instituições, empresas e comércio estão lidando com essas questões. E macro, na forma como os Estados e as governanças globais vêm encaminhando soluções para a crise atual. 

O discurso das principais organizações internacionais, bem como as soluções encontradas pelas economias que estão passando pela crise, se baseia principalmente em um ponto: evitar que o vírus se alastre a fim de impedir o caos nos serviços de saúde. Para tanto, é necessário o isolamento social e rigorosos hábitos de higiene. A ordem é: fiquem em casa. Esse mister, no entanto, requer soluções econômicas que vão na contramão do pensamento produtivista e das políticas neoliberais de diminuição do Estado. 

O aspecto central passa a ser (ou deveria ser), com o risco de gerar uma crise ainda mais aguda, a vida das pessoas, em especial daquelas que não estão mais produzindo para o mercado – as idosas. Ou seja, o estado de pandemia impõe uma nova lógica ao sistema, que ele desacelere, a fim de protegermos, principalmente, a vida tanto das pessoas idosas quanto das doentes.

Os estados de crises sistêmicas, – e este, em especial -, recrutam os trabalhos dos cuidados. No caso do coronavírus, em particular, a esfera doméstica e a reprodução social tornam-se protagonistas. Nesse sentido, as mulheres (considerando suas diferenças de classe, raça e etnia) estão na linha de frente no combate ao coronavírus e são as principais afetadas por esse retorno ao domicílio, local muito longe de ser livre de conflitos e onde ocorre boa parte dos trabalhos invisibilizados pelas estatísticas econômicas nacionais. 

O Covid-19 não é neutro ao gênero porque afeta em especial as relações de cuidados entre as pessoas. As mulheres são as principais responsáveis por esse trabalho, seja de maneira formal ou informal, remunerada ou não remunerada. A começar com os números das(os) trabalhadoras(es) formais de algumas áreas da saúde. 

De acordo com o Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), levantado pelo Ministério da Economia, em 2018, trabalhavam como médicas(os), enfermeiros(as), técnicos e auxiliares de enfermagem 1.488.153 pessoas; destas, 78% eram mulheres e 22% eram homens. As mulheres estão alocadas em todas as atividades, mas há maior concentração naquelas que fazem os atendimentos com maior contato com os pacientes, quais sejam as(os) enfermeiras(os) e técnicas e auxiliares de enfermagem, na qual a força de trabalho feminina representa 85% do total (Tabela 1).

Tabela 1 – Número total e participação das famílias de atividades voltadas para saúde selecionadas, Brasil, 2018

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Fonte: Elaborado pela autora com base na Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) – Ministério da Economia

Nas áreas médicas, a concentração masculina supera a feminina, principalmente nas especialidades cirúrgicas, nas quais os homens concentram 63% da força de trabalho. As(os) médicas(os) clínicas(os) e ligados à medicina diagnóstica e terapêutica, – que normalmente fazem os primeiros atendimentos e concentram a maior parcela da categoria – a participação feminina gira em torno de 48% e 49%, respectivamente.

A exemplo do que acontece na totalidade do mercado de trabalho, a remuneração das mulheres é inferior à masculina em todas as categorias selecionadas. No geral, a renda média feminina foi de 3,83 salários mínimos, enquanto a masculina permaneceu em 6,44 salários mínimos, ou seja, uma diferença de 68,13%. A baixa renda média feminina deve-se principalmente à grande concentração de mulheres como técnicas e auxiliares de enfermagem, cuja remuneração feminina é 80% inferior à dos médicos em medicina diagnóstica e terapêutica, – maior renda média entre as ocupações selecionadas. No entanto, mesmo nesta especialidade, a remuneração masculina permaneceu 9,31% superior à feminina. As maiores diferenças salariais se encontram principalmente nas áreas médicas, em que pese as especialidades cirúrgicas, cuja remuneração média masculina superou a feminina em 16,89% e a medicina diagnóstica e terapêutica, em que os homens receberam remunerações 16,22% superiores às mulheres.

Gráfico 1 – Remuneração Média (em SM), e diferença por famílias de ocupações selecionadas e sexo, Brasil 2018

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Fonte: Elaborado pela autora com base na Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) – Ministério da Economia

Afora as ocupações nas áreas médicas e de enfermagem selecionadas, as mulheres são maioria absoluta entre as empregadas domésticas e cuidadoras, – aproximadamente 97% da categoria é composta por mulheres, em especial negras. Essa ocupação é marcada por relações raciais e de classe, baixas remunerações médias, altos índices de informalidade, relação legal desigual, além de as trabalhadoras estarem suscetíveis ao assédio moral e sexual devido à dificuldade de fiscalização dos domicílios. Vale lembrar que uma das primeiras vítimas do coronavírus no Brasil e a primeira vítima no estado do Rio de Janeiro, foi uma empregada doméstica idosa. Ela trabalhava em um domicílio localizado em um bairro nobre carioca, cuja patroa voltou de viagem da Itália e apresentava sintomas da doença.

Além do fato das mulheres estarem na linha de frente no combate à pandemia devido à concentração das ocupações remuneradas nas áreas da saúde e cuidados e essas ocupações receberem remunerações inferiores às dos homens, somos as que mais realizam esse trabalho de forma não remunerada. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra a Domicílios (PNAD – C), em 2018, as(os) brasileiras(os) despenderam semanalmente em média 16,8 horas para essas atividades; dessas, 10,9 horas foram dedicadas pelos homens e 21,3 horas pelas mulheres. 

A sobrecarga de trabalhos domésticos e de cuidados dentre as mulheres afeta a nossa inclusão no mercado de trabalho – historicamente possuímos os maiores níveis de desemprego e somos maioria também entre as subempregadas. A pandemia tende a intensificar essa relação, haja vista que as escolas decretaram suspensão das aulas, o que aumenta a dupla e tripla jornada feminina e intensifica a rede de apoio e cuidados entre as mulheres. O fato de sermos recrutadas para os trabalhos domésticos e de cuidados e uma parcela destes não serem remunerados e estarem invisibilizados nas estatísticas nacionais, tornam a nossa força de trabalho ainda mais vulnerável à condição de desemprego e subempregos. Essa situação, por um lado, coloca as mulheres de famílias nucleares heterossexuais ainda mais suscetíveis a relações de dependência econômica e abusiva, e, por outro, tende a aumentar a condição de pobreza das famílias monoparentais femininas. 

Por fim, cabe resgatar uma emblemática frase que marcou a segunda onda do feminismo e permanece como importante bandeira: “O pessoal é político”. Os nossos domicílios não são neutros ao gênero; podem ser locais de acolhimento e trocas de afetos, mas também são lugares de muito trabalho distribuído de forma desigual, de relações de poder, e onde ocorre grande parte da violência doméstica, assassinatos de mulheres e abuso infantil. Essa realidade tende a se agravar em situações nas quais o medo é mobilizado e nas quais as pessoas permanecem juntas, inclusive vítimas e agressores.

A exemplo disso, segundo pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Instituto Datafolha, 76,4% das mulheres que sofreram violência afirmam que o agressor era alguém conhecido: dos casos registrados, 42% ocorreram em casa. O período de isolamento pode ser visto como uma oportunidade para os abusadores, conforme declaração da Diretora Executiva Adjunta da ONU Mulheres, Anita Bhatia. Na China, os registros de violência doméstica às autoridades policiais triplicaram em fevereiro, durante o período de quarentena.

Os investimentos de recursos públicos devem ser pensados, portanto, de forma não neutra ao gênero. É necessário que o Estado e a população em geral se mobilize para garantir que os trabalhos de cuidados sejam realizados de forma segura e valorizada monetariamente. Garantindo emprego – em especial para as pessoas com responsabilidades familiares -, segurança para as mulheres e crianças vítimas de violência doméstica, mobilização de recursos para o cuidado das pessoas doentes, idosas e das gestantes. Estas últimas, passam por um período ainda maior de ansiedade devido à gravidez, além da condição de imunossupressão.

Para além do período pandêmico, é necessária a construção de uma agenda política cuja centralidade seja a reprodução social, que perpasse a redistribuição dos trabalhos não remunerados por sexo, a valorização e equidade salarial, e investimentos massivo em pesquisas na área.

Notas

1 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,oms-reforca-proposta-de-isolamento-social-contra-coronavirus-mas-diz-que-e-preciso-fazer-mais,70003249476


2 Ver: VIECELI, WÛNSCH, STEFFEN. Emprego doméstico no Brasil: Raízes históricas trajetórias e regulamentação. São Paulo: LTR, 2017.


3 https://istoe.com.br/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa-no-leblon/


4 O desemprego e subemprego feminino é historicamente superior ao masculino. Os dados do terceiro trimestre de 2019 divulgados pela PNAD-C IBGE apontam que as mulheres correspondem a 53,8% da força de trabalho desocupada. A taxa combinada de desocupação e subocupação feminina permaneceu em 20,7%, enquanto a masculina foi de 14,6%.


5 http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/Infogra%CC%81fico-vis%C3%ADvel-e-invis%C3%ADvel-2.pdf


6 https://time.com/5803887/coronavirus-domestic-violence-victims/


7 https://www.axios.com/china-domestic-violence-coronavirus-quarantine-7b00c3ba-35bc-4d16-afdd-b76ecfb28882.html

Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutoranda em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica licenciada do Dieese, bolsista do CNPQ, colunista do site DMT e integra o coletivo Movimento Economia Pró-Gente.

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