Covid-19 e interseccionalidade: a pandemia tem cor

Cristina Pereira Vieceli

Há um ano o mundo permanece flagelado pela pandemia da Covid-19 e o Brasil segue com uma não gestão política. O número de contaminações aumentando, bem como de óbitos. Entramos na segunda onda sem sair da primeira e, enquanto milhares de famílias sofrem com a perda de pessoas queridas, 7 milhões de testes padrão ouro RT-PCR apodrecem, maior quantidade de testes apodrecendo do que já foram distribuídos até agora.

Quase um ano após o primeiro caso ser detectado no país, podemos enxergar claramente que os principais prejudicados nesta crise sanitária possuem gênero, raça e classe, e por conseguinte, que a despolítica de combate ao vírus constitui também um projeto racista, necropolítico e genocida.

Ainda que esta coluna seja voltada para as questões de gênero, as relações raciais estão imbricadas, bem como as de classe, já que são estruturas de desigualdades de poder que se perpetuam. Essa dinâmica é ainda mais acentuada em situações de crises econômicas e sanitárias. Neste contexto, o termo interseccionalidade ganha importância analítica. Esta categoria, além de ser essencial para compreender as diferentes formas de preconceitos que se entrecruzam sobre as mulheres negras, virou também uma bandeira de luta de uso político, assumindo um caráter próprio nos países da América Latina. O termo cunhado no final dos anos 80 pela jurista afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw, descreve as múltiplas dimensões de opressão sofridas pelas mulheres negras, e serviu como parâmetro de análise da forma diferenciada que as trabalhadoras negras sofreram na empresa General Motors (Vigoya, 2016 [1]). 

O termo interseccionalidade resume analiticamente as experiências vividas pelas mulheres pobres e racializadas em um contexto de dominação construído historicamente. Também é uma forma de desafiar o modelo de mulher universal, cunhado pelo feminismo branco europeu. A categoria lançou luz sobre perspectivas não restritas às vivências de opressão sofridas pelas mulheres brancas, ampliando a forma de análise da teoria feminista e das relações de poder na sociedade. Neste sentido, cabe destacar o papel de outras teóricas estadunidenses, em que pese Ângela Davis – que analisa o papel da escravidão nos Estados Unidos na formação de identidades das famílias negras -, Audre Lorde, bell hooks, Patricia Hill Collins, entre outras.

Na América Latina, segundo Vigoya (2016), as análises sobre as opressões desiguais entre as mulheres surgiram como crítica ao feminismo branco e heteronormativo, a partir dos movimentos das mulheres indígenas e afrodescendentes, que destacavam suas vivências de opressão. No Brasil, a análise da interseccionalidade como tema político apareceu ainda no século XX, dentro do Partido Comunista Brasileiro, com destaque para intelectuais negras como Thereza Santos, Lélia Gonzales, Maria Beatriz do Nascimento, Luiza Barros, Jurema Werneck e Sueli Carneiro (VIGOYA, 2016).

Vigoya (2016), destaca a importância das práticas sociais e dos sujeitos políticos na construção da perspectiva interseccional na América Latina. Neste sentido, os termos consubstancialidade, ou seja, que as relações sociais geram experiências que não podem ser divididas sequencialmente, e co-extensividade, que as relações se co-produzem mutuamente, são também essenciais para a compreensão das diferentes dinâmicas de opressão. Dessa forma, as construções de sujeitos sociais homens e mulheres, constituem-se em diferentes configurações históricas e contextuais. Ou seja, o marcador de raça pode se sobrepor ao de gênero em determinadas situações, como é o caso da violência policial sobre os jovens negros. 

Em relação à pandemia da covid-19 no Brasil as repercussões sobre a população negra ocorrem tanto a nível econômico como também sanitário [2].

Em relação aos reflexos socioeconômicos, recentemente o Dieese publicou um estudo baseado nos levantamentos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C), sobre os impactos da pandemia no emprego da população negra. Houve relevante queda na participação da população total no mercado de trabalho e essa saída ocorreu principalmente entre a população negra. Mais de 6,4 milhões de mulheres e homens negros saíram da força de trabalho no comparativo do primeiro com o segundo trimestre de 2020. Já entre a população branca, a queda foi de 2,4 milhões de pessoas [3]. 

O cenário no mercado de trabalho brasileiro é alarmante, não somente pela saída de milhares de pessoas da força de trabalho, como também pelos altos índices de desemprego que já estava ao nível de dois dígitos antes da covid-19. Os efeitos recaem mais uma vez, principalmente sobre a população negra, em especial sobre as mulheres. Todos os grupos raciais e de gênero apresentaram elevação importante na taxa de desemprego no período, no entanto, a população negra apresentou elevação acima da média. Enquanto a taxa de desemprego total entre o quarto trimestre de 2019 ao segundo trimestre de 2020 aumentou de 11% para 13,3%, entre os homens não negros a elevação foi de 7,4% para 9,5% e, dentre as mulheres não negras, foi de 10,1% para 11,3%. No caso dos homens negros houve um aumento de 10.6% para 14%, ou seja, um crescimento de 3,4 pontos percentuais (pp). Entre as mulheres negras a variação foi de 2,6 pp passando de 15,6% para 18,2%.

A elevada saída de mulheres e homens negros e negras do mercado de trabalho, bem como a alta taxa de desocupação se explica parcialmente pela segregação no mercado de trabalho. Entre a população negra há uma maior incidência de queda na participação, principalmente entre os trabalhadores informais (sem carteira e por conta própria). No caso das mulheres, cabe destacar a diminuição de contratações entre as empregadas domésticas, que apresentou queda de 886 mil ocupadas no período. No entanto, mesmo entre as ocupações com carteira assinada, cujas empresas contratantes receberam auxílio via Medida Provisória 936, houve diminuição da população ocupada principalmente entre os homens negros, que apresentaram queda de 1,4 milhões de trabalhadores. No caso dos homens não negros na mesma posição, a diminuição foi de 562 mil. Entre as mulheres negras com carteira assinada, houve diminuição de 887 mil trabalhadoras, já em relação às brancas, a queda foi de 643 mil.

A situação tende a piorar com o fim do auxílio emergencial, cuja última parcela está programada para dezembro deste ano. Em setembro, a pesquisa PNAD-covid indicou que 43,6% dos domicílios brasileiros recebiam o benefício.

Além dos impactos econômicos, os sanitários recaem principalmente sobre a população negra e estão associados a maior incidência de pobreza e vulnerabilidade à precarização do trabalho e desemprego. Os últimos dados epidemiológicos divulgados pelo boletim do Ministério da Saúde referente à semana de 11 a 17 de outubro indicam que, no acumulado do ano, 442.754 pessoas foram hospitalizadas com diagnóstico de covid-19, e 819.845 com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG)[4]. Dentre os(as) hospitalizados(as) por covid-19, 39% eram negros (considerando pretos, pardos e indígenas), e 36% não negros (brancos e amarelos)[5]. Proporção semelhante é constatada entre as pessoas internadas por SRAG, em que 39% eram negras e 37% não negras [6]. 

Até a última atualização do boletim, foram relatados 150.295 óbitos com diagnóstico confirmado de covid-19, deste total 30% foram de pessoas negras e 24% de pessoas não negras. No caso das mortes por SRAG, 42% foram de pessoas negras e 36% de pessoas não negras. Ou seja, tanto em casos de hospitalizações como também de óbitos, há uma maior incidência entre a população negra, o que converge com a sua situação socioeconômica e também com as desigualdades regionais, já que as regiões Norte e Nordeste foram as mais afetadas.

Em estudo realizado por Araújo et al (2020)[7], que analisa os impactos da covid-19 sobre a população negra, comparando Brasil com EUA, constata-se ainda que há falta de informações relativas à raça e inclusive descontinuidades dos boletins do Ministério da Saúde. Alguns dados importantes deixaram de ser divulgados, como por exemplo o número de contágios e óbitos entre as gestantes. A última divulgação com este recorte foi no boletim 21, referente à semana epidemiológica 27, apontando que a proporção de casos de SRAG entre as gestantes negras foi de 49,4% e de covid-19 de 52,6%. No caso dos óbitos de gestantes diagnosticadas com covid-19 a proporção de negras foi de 56% e de SRAG 49%. 

O ano de 2020, não foi só marcado pela pandemia da covid-19, mas também por agravantes que poderiam ser evitados caso houvesse uma política coordenada de combate ao vírus. As principais vítimas da violência do Estado, seja por sua presença ou ausência, mais uma vez, é a população negra. Lembrando de casos que causaram espanto por terem repercutido na mídia, como o da trabalhadora doméstica Cleonice, do menino Miguel, de João Alberto Silveira Freitas e tantas(os) outras(os) esquecidas(os) que são vítimas de uma política racista. 

Por fim, eu, como economista, branca, com todos os privilégios de raça e classe, deixo uma sugestão de vídeo de dois amigos e pessoas muito admiráveis sobre a presença da população negra na ciência econômica. Essa ciência que está intimamente ligada ao poder do capital, que exclui a vida e o trabalho das mulheres, principalmente as pobres e racializadas, e dos homens negros[8]. Conforme Gilliad e Daniel Nogueira, professores da Unifespa e que contribuíram para a construção da primeira e única disciplina de economia política afro-brasileira no país, a existência da população negra causa ojeriza, portanto, essa população deve estar em todos os espaços possíveis. As eleições municiais de 2020, com a renovação da esquerda a partir da juventude e das pautas identitárias ligadas à questão da interseccionalidade, indicam que este é o caminho para a mudança e renovação.

Notas

[1] http://www.debatefeminista.pueg.unam.mx/wp-content/uploads/2016/12/articulos/052_01.pdf

[2] Deixo também como sugestão sobre este tema o podcast Entretanto n. 38, que trata sobre os efeitos da pandemia sobre a população negra e o assassinato de Roberto Freitas. 

[3]https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2020/boletimEspecial03.html

[4]https://coronavirus.saude.gov.br/index.php/boletins-epidemiologicos

[5]  18% da população hospitalizada por covid-19 foi classificada como cor ignorada e 7% sem informação. 

[6]  17% da população hospitalizada por Covid-19 foi classificada como cor ignorada e 7% sem informação. 

[7]  Araújo, E. M. et al. Covid-19 – Morbimortalidade pela Covid-19 segundo raça/cor/etnia: a experiência do Brasil e dos Estados Unidos. Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/1318

[8] https://www.instagram.com/tv/CHydLupnJGH/?utm_source=ig_web_copy_link

Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutoranda em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, colunista do site DMT e integra o coletivo Movimento Economia Pró-Gente.

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