Antes da enchente de maio e que invade junho afora, com perdas trágicas de vidas, patrimônio, renda e crédito de empresas e pessoas, o Rio Grande do Sul vivia uma expectativa positiva de crescimentos em quase todos os aspectos econômicos. A previsão era de fortalecimento da agricultura, com safras gigantescas, indústria e comércio mais consolidados e crescimento de emprego e renda. Hoje, tudo foi água abaixo.
Cássio Calvete, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), pós-doutorando na Universidade de Oxford, Inglaterra, e um estudioso e pesquisador permanente da história do mercado de trabalho brasileiro, considera um ano perdido para o estado.
Reconhece que os governos estão fazendo o que podem para colaborar com a reconstrução do RS, com ênfase na atuação da União, que sentiu a amplitude da catástrofe e passou a trabalhar em todas as frentes. Calvete também ressalta que não adianta fazer cobranças desesperadas de pressa para solucionar tudo. Para ele, isso não resolve nada. É preciso calma, reforça. Ele também analisa questões do emprego, da queda do PIB e das pessoas mais atingidas pelas perdas, os mais pobres, como sempre. Confira entrevista:
Brasil de Fato RS – Indústrias e outras empresas estão reivindicando auxílios bilionários em função das enchentes e ameaçam com demissões. O que o senhor acha desta situação?
Cássio Calvete – Um absurdo que em um momento de crise humanitária as empresas ameacem com demissão e corte de salários. Além do aspecto desumano dessa postura, ela aprofundaria o desastre econômico, impedindo a retomada do crescimento da economia. Essa é uma visão reducionista da economia onde o empregador olha apenas o aspecto microeconômico (ou para o seu próprio umbigo).
Preocupado unicamente com a redução de custo do seu próprio negócio. No entanto, se todas as empresas olharem só para os seus custos e tomarem essas medidas, isso afetará a capacidade de consumo das famílias e elas não terão para quem vender seus produtos, impossibilitando a retomada do crescimento econômico.
Para que a economia do Estado volte a crescer é necessário que os salários e empregos sejam mantidos para que a capacidade de compra das famílias seja minimamente preservada. O que possibilitará que elas continuem consumindo e fazendo a economia girar.
BdF – Qual o impacto real das cheias no emprego?
Calvete – Ainda é cedo para fazermos uma estimativa, teremos que ver como ocorrerá o desenvolvimento da economia ao longo do ano. No entanto, em função da provável queda do PIB e do empobrecimento das pessoas e das empresas que tiveram seus Imóveis (terrenos, prédios, casas) desvalorizados ou até mesmo perdidos, com certeza teremos alguma elevação no desemprego.
BdF – Quais setores seriam mais afetados em razão dos alegados bilionários prejuízos?
Calvete – De forma geral podemos destacar o setor agrícola. Nos demais casos o atingimento ocorreu nas propriedades inundadas que têm em comum a sua localização mais próxima dos rios e não o seu setor produtivo. Destaco os micro e pequenos negócios que normalmente não têm reservas financeiras e todo seu capital está no capital fixo. Eles têm menos condições de obter financiamento e menos recursos próprios.
Particularmente, os micro e pequenos negócios muitas vezes situados na casa ou muito próximo da casa do proprietário fez com que ele perdesse a casa e o negócio. Esses terão muitas dificuldades para se reerguer.
BdF – Serviços, indústria, comércio, agricultura. Quem pode demitir mais por causa das cheias?
Calvete – Tendo em vista que o maior impacto foi na agricultura, é esperado que esse setor demita mais.
BdF – A economia gaúcha terá forte queda do PIB ou mais inflação?
Calvete – Acredito que as duas coisas ocorrerão. Os preços sofrerão uma elevação principalmente dos produtos agropecuários, como soja, feijão, carne, ovos, milho. Ainda não temos uma projeção do impacto no PIB. Apesar da enorme perda da agricultura, talvez o impacto não seja tão expressivo porque terá um efeito que “maquiará” o seu resultado que é o da reconstrução das casas, recompra de máquinas, recompra de móveis que obviamente terá um efeito no PIB, mas que na prática é só reposição do que foi perdido.
Vale destacar, que na minha opinião, mais importante do que o impacto no PIB é o real empobrecimento de um número significativo de pessoas que perderam todos os seus móveis, que perderam suas casas, que viram suas casas e terrenos se desvalorizarem enormemente e que perderam suas empresas.
BdF – Será um ano perdido para o RS?
Calvete – Com certeza, e o pior é que a expectativa era que esse ano ocorresse uma Supersafra, tendo em vista que os dois últimos anos as safras foram menores em função das estiagens. Foram atingidas 206 mil propriedades rurais. Quebra das safras de soja, milho e feijão representam 15% do total produzido, 1,2 milhão de aves foram mortas. Mais mortes de suínos, equinos e bovinos que ainda não foram contabilizados.
Além da morte dos animais tem a perda de peso pela falta de pastagem e a diminuição da produção de leite. Não terá um desabastecimento, mas é possível esperar um aumento de preço.
BdF – Como o senhor define a atuação dos governos?
Calvete – São muitas ações sendo desenvolvidas pelos Municípios, pelo Estado e pela União. Acredito que todas estão indo num sentido correto de preservar os rendimentos, viabilizar novas moradias, dar auxílios as pessoas e crédito para as empresas.
Temos que acreditar, e eu acredito, que todas as ações anunciadas serão concretizadas. O apoio que estamos recebendo do Brasil inteiro de voluntários, doações e auxílios também é um aporte importante. A rede de apoio dentro do Estado com voluntários, doações, solidariedade, também tem um papel especial.
É claro que tendo em vista a dimensão da tragédia não podemos esperar que tudo se resolva rapidamente e por mais que seja feito sempre será insuficiente para repor as perdas que não são só materiais, mas de vidas e de bens afetivos. No entanto, temos que reconhecer que os esforços de todos e o reconhecimento da real dimensão do ocorrido.
Destaco a atuação da União, pois não está em loco vivenciando a tragédia e, mesmo assim, conseguiu perceber todo o alcance do desastre. Respondendo mais objetivamente essa questão talvez as ações não sejam o suficiente, pois nada seria suficiente pois as perdas não foram só materiais, mas com certeza supera as expectativas porque estão à altura das necessidades.
Nesse ponto quero destacar a necessidade da prevenção. Tanto quanto a reconstrução, é necessário que ela ocorra de forma a evitar novos desastres. As pontes e estradas reconstruídas terão que ser mais altas e fortes, os bairros deverão se reconstruídos em outras localidades, os diques e comportas terão que ser reforçados, as bombas terão que ser melhor protegidas e assim por diante.
BdF – Qual o perfil das pessoas mais impactadas pelas enchentes? E quais são as diferentes formas que os grupos são impactados?
Calvete – Nas cidades do Interior as perdas foram mais democráticas. As cidades situadas no Vale do Taquari e no Vale do Rio Pardo não tiveram um viés de renda, todos perderam. Em Porto alegre e na Região Metropolitana de Porto Alegre, que têm 30% da população do Estado, aproximadamente 90% dos atingidos pela enchente foram as populações de baixa renda que estão situadas mais próximas dos rios.
O que concede um aspecto mais dramático porque essa população tem menor capacidade de se reerguer sozinha e as perdas de casas, móveis e terrenos têm um peso muito grande, senão absoluto, no seu patrimônio. Ou seja, a população de baixa renda tem todo seu patrimônio imobilizado e pouca ou nenhuma reserva financeira.
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Eugênio Bortolon
Data original da publicação: 19/06/2024