Capitalismo predatório ameaça a democracia

A concentração de renda se tornou avassaladora e está produzindo oceanos de miséria pelo mundo. Mas a crise do capitalismo financeiro predatório não é a que vem de baixo, ela é entrópica porque ela é autodestrutiva.

Andre Motta Araujo

Fonte: GGN
Data original da publicação: 02/10/2019

Quem diz é o mais importante jornalista do mais importante jornal econômico do planeta, o Financial Times em artigo de Martin Wolff de 18 de setembro.

O colunista do jornal britânico demonstra que a concentração de renda está liquidando com sólidas sociedades de classe média, como Estados Unidos e Reino Unido. As gerações do pós-guerra tinham certeza de que os filhos teriam maior renda que os pais, durante as décadas de 40, 50 e 60. A partir da década de 70 a curva se inverteu, os filhos passaram a ter renda menor que os pais, e o processo se agravou enormemente a partir de 1990, chegando a um anticlímax após a crise de 2008, quando hoje 1% de bilionários detém 54% da riqueza mundial e um CEO (executivo chefe) hoje ganha 300 vezes mais que um operário, nos anos de pós guerra a relação era de 40 para 1.

A concentração de renda se tornou avassaladora e está produzindo oceanos de miséria pelo mundo. Mas a crise do capitalismo financeiro predatório não é a que vem de baixo, ela é entrópica porque ela é autodestrutiva, seus próprios métodos a levarão à sua implosão sistêmica. A concentração trava o crescimento e o crescimento é essencial para a própria existência desse capitalismo que não pode parar.

A crise tem elementos distintos e vou tentar dissecá-los. É minha análise e não do Financial Times:

Eliminação de barreiras às fusões e aquisições

A partir das políticas Thatcher-Reagan no coração do capitalismo anglo-saxão, foram eliminadas quase completamente as barreiras para empresas comprarem outras ao infinito. A cada compra há desemprego de milhares de trabalhadores e centenas de executivos de escalão médio. Fusões absurdas, como a Dow Chemical e a Dupont, dois gigantes que concorriam entre si há um século, ou Bayer e Monsanto, dois competidores globais em defensivos agrícolas, eliminando competição, que é uma das bases do capitalismo de mercado, permitindo oligopólios em preços e patentes. As economias de escala são apropriadas pelas empresas e não trazem vantagem alguma a consumidores e países.

Diminuição em pagamento de impostos

As megaempresas resultantes de fusões têm como um dos seus principais objetivos a redução de impostos e a própria fusão gera créditos fiscais que farão a nova empresa fusionada pagar menos imposto de renda, tornando vantajoso, pelo tamanho, transferir lucros para paraísos fiscais. Hoje as corporações americanas têm 6 vezes mais lucros “parqueados” em paraísos fiscais do que no seu próprio País. Com isso prejudicam tanto seu país-sede como os países onde operam. A desoneração fiscal significa que essas empresas usufruem dos serviços públicos nos países hospedeiros, mas não pagam seus custos, onerando os demais cidadãos que têm que pagar mais impostos para aliviar as megacorporações de sua cota na manutenção do Estado.

Transferência de fábricas para países de baixos salários

Processo largamente usado pelas corporações multinacionais e que criou oceanos de desempregados em países centrais e mesmo em países emergentes de industrialização tardia. O benefício pela economia em salários e impostos beneficiou especialmente o acionista e, em menor escala, o consumidor. Mas ao criar desemprego em um processo contínuo, ao fim faz empobrecer mercados consumidores, que ficam sem renda para comprar seus produtos. No uso de cadeias produtivas globais as empresas fazem leilão fiscal e de vantagens entre países, mudam a fábrica para o País que dá terreno de graça, créditos, vantagens, treinamento, infraestrutura e isenções fiscais. Mas ao empobrecer regiões e países, com isso aumentando seus lucros, vão no caminho reduzindo a renda de onde saem e, às vezes, de seus próprios países de origem, tudo beneficiando a empresa do ponto de vista micro. No outro lado a desidratação do mercado consumidor se dá  como efeito macro, cada empresa ganha nos seus custos, mas o conjunto das empresas perde consumidores, fenômeno que acontece gradualmente à medida que se cria desemprego em países que perderam fábricas, como Reino Unido, Brasil e Argentina. Desempregados não compram roupas feitas na China porque não têm renda.

Poder excessivo sobre consumidores e fornecedores

Quanto mais concentrado o mercado em cada vez menos empresas, menor a margem de liberdade do consumidor e do fornecedor dessas empresas. Quando a Nestlé comprou a Chocolates Garoto, cerca de metade das marcas de chocolates do País ficou sob controle de uma só empresa, transação que jamais deveria ter sido aprovada pelo CADE e foi. A Ambev tem 600 marcas de cerveja pelo mundo, uma absurda concentração de mercado. A mesma Nestlé controla marcas de águas minerais pelo mundo, Perrier, San Pellegrino, São Lourenço no Brasil e em quase todos os grandes mercados domina o setor. Esse processo empareda consumidores e fornecedores. Isso só é bom para o acionista e para ninguém mais, é um processo autofágico e destrutivo, a competição é da essência do capitalismo e sua eliminação é perigosa para o próprio sistema.

Controle político de governos e congressos

Aumentando o poder das corporações multinacionais, o processo se dá reduzindo o poder dos Estados para taxar e regular essas empresas, um processo danoso às sociedades em geral, confrontacionista com os Estados que perdem poder de controle.

Tudo para o acionista e nada para a sociedade

A lógica do atual sistema é dar tudo ao acionista contra os direitos dos trabalhadores, dos consumidores e dos Estados, é uma ideologia que vem dos anos Thatcher-Reagan, não existiu tal conceito entre 1900 e 1970, quando o grupo Standard Oil foi, por decisão do Presidente Theodore Roosevelt, dividido em 6  partes, a concentração numa só empresa era vista como perigosa ao Pais e à sociedade. A Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos EUA, entre sua criação em 1903 e 1978, barrou cerca de 6.700 fusões, por serem contra o interesse público. Bancos nos EUA só podiam existir em um Estado, em certos Estados só em uma cidade. Tampouco bancos poderiam controlar corretoras de bolsa, seguradoras e fundos de investimento. A partir do Governo Reagan essas barreiras foram eliminadas e permitiu-se uma concentração livre no mercado financeiro, o que resultou na crise de 2008, salva pelo Tesouro, ou seja, pelo Governo dos EUA, a desregulamentação gerou a crise de 2008.

A etapa final desse capitalismo será o patrocínio de governos neofascistas para controlar as massas miseráveis geradas pelo processo. A partir desse ponto, já atingido em alguns países, serão eleitos governos populistas de direita para permitir a continuidade da concentração e o desmonte dos serviços sociais e de amparo às populações pobres, para que o corte de gastos permita aliviar ainda mais a carga fiscal das empresas e de seus acionistas. Tudo para que a parte do capital na renda nacional aumente, ao mesmo tempo que se enfraquece o Estado para que ele não tenha força regular para as empresas e fique dependente dos “mercados” para seu financiamento através da dívida pública.

Com esse processo atinge-se o objetivo maior do capitalismo predatório, qual seja, controlar a política monetária através do Banco Central dominado pelos “mercados”, a política econômica pelo seu comando por um executivo do “mercado” e através disso controle do Estado por um preposto, político de direita apenas para fazer o papel de polícia das massas miseráveis para que não se revoltem, o controle real do Estado e do capitalismo predatório.

Por que o capitalismo predatório não consegue enxergar riscos?

Porque é de sua própria natureza operar sem auto contenção, sem limites. As escolas de negócios pelo mundo, cuja expansão se deu em grande escala a partir dos anos 70, são “madrassas”* de lavagem cerebral que moldam executivos na religião do “corte de custos”, não importa o risco que tal processo possa gerar. O caso Vale mostra onde essa “religião” leva, corta-se custos ao máximo limite não importa o risco, mesmo de morte de centenas de pessoas, é da natureza do sistema não conhecer limites para o lucro. Os bancos brasileiros poderiam ser altamente lucrativos com juros mais baixos, Mas eles jamais serão razoáveis por autodeterminação, os robôs humanos MBA são programados para o lucro máximo, mesmo que pelo caminho destruam sociedades. Só o Estado pode conter esse tipo de sistema predatório que, deixado às suas próprias razões, destruirá o equilíbrio social, o meio ambiente e trará, em larga escala, o aumento da criminalidade, das doenças mentais, do uso de álcool e drogas, das rupturas sociais e da Humanidade.

Essa é, na essência, a conclusão de Martin Wolff no jornal Financial Times em artigo magistral publicado em 18 de Setembro de 2019.

Notas:

*A palavra deriva do árabe madrsa, por vezes transliterada como madrassa ou madrasa, palavra que em árabe originalmente designava qualquer tipo de escola, secular ou religiosa (de qualquer religião), pública ou privada.

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