“Ainda estou aqui” e seus ensinamentos sobre como enfrentar os velhos e novos golpes

ainda estou aqui
Fotografia: Divulgação

Gláucia Campregher

“Ainda estou aqui” carrega pra mim um sem número de lições, das mais técnicas (direção, atuação, etc) às mais políticas, mas vou ter de me ater aqui as que considero principais – a lição mais geral sobre como fazer, e vender!, um bom filme para as massas mesmo em tempos de super-hiper-individualização; e a lição que remete ao conteúdo da história, a lição de vida que nos dá Eunice Paiva, e que é também uma lição de como combater a força daqueles que ousam querer governar pela força, ontem, hoje ou amanhã.

Para começar, eu diria que Walter Salles e toda sua equipe, seu elenco fabuloso, sua direção desse elenco, seu diretor de fotografia, seu responsável pela ambientação de cada cena, suas escolhas de cada música, móveis ou trajes, fizeram um trabalho mais que perfeito, ao nos apresentar, em quase toda a primeira metade do filme (na minha cabeça pareceu isso), o que era uma família genuinamente feliz no Brasil dos anos 60. Creio que não apenas eu, uma pessoa de esquerda, mas os de centro, direita ou os pretensamente apolíticos que foram ver o filme, foram ganhos por aquela família. (Alguns de esquerda que conheço não gostaram justamente por achar o filme muito familiar, pouco social no geral. Discordo deles. Acho até que temos muitos problemas justo por deixarmos essa perspectiva à deriva, e de presente pra direita). A vida de Rubens e Eunice nos é apresentada demorada e detalhadamente. Bem vemos se tratar de uma família rica e próspera – casa quase em frente ao mar no Rio de Janeiro, construindo uma ainda maior num lugar ainda melhor, com empregada doméstica a ajudar a dona de casa, esposa carinhosa de um homem realizado profissionalmente, com escritório de obras e carreira de ex-deputado, filhos fortes e saudáveis, bem educados e queridos com os pais e os amigos. Mas essa riqueza é muito diversa de outras tantas, centradas na acumulação e ostentação de bens, a riqueza de quem tem muitos bens, mas não o bem maior, tempo. A riqueza daquela família era o tempo. As pessoas ali tinham tempo pra si e pro outro, o marido e a mulher, os pais e os filhos. Passavam juntos muitos momentos, compartilhavam alegrias e ansiedades. Amigos o tempo todo indo e vindo, comendo, cantando e dançando. E, descobrimos, se ajudando quando perseguidos.

Grande parte da genialidade do filme está em nos mostrar essa família em sua casa. Essa casa, no Leblon de antigamente, nos aparece como quase nossa, como a casa de nossa infância, mesmo que as nossas fossem muito diferentes. É a casa saudosa de uma infância que ou tivemos ou sonhamos ter. Tudo se passa ali, do dia conturbado da chegada do cachorro abandonado ao dia da paz perturbada pela prisão absurda e abjeta. Conhecemos a sala, o escritório, a cozinha, o quarto das meninas, o de Marcelo (autor do livro que serviu de base pra tanto detalhe). Sabemos que a rua era tranquila o suficiente pra deixar as crianças brincarem, a padaria era perto e o mar sempre aberto a todo encontro. Abertas também eram muitas das reuniões que se faziam ali, e a casa nos convida a sermos simpáticos mesmo às secretas, aquelas que visavam ajudar os amigos perseguidos, a quem vamos reconhecendo um a um junto com Eunice na prisão. Ela, e antes o marido, foram tirados de dentro de casa, dessa casa livre e feliz, de forma absurda e abjeta, obscura e ilegal.

Não há como não sentir uma empatia profunda, não há como evitar nos colocarmos no lugar daquele casal. Se muitos torceriam o nariz para discursos contra a ditadura, ou virariam os olhos pra cenas de tortura, todos entramos de cabeça e coração na casa dos Paiva. Todos pensamos se conseguiríamos ser calmos e tranquilos como Rubens, educados e elegantes como Eunice. Como se eles fossem nossos amigos, pensamos se não seria melhor contar logo pros nossos filhos, mas respeitaríamos quem vive com eles e os conhece melhor, que é uma mãe sensata mesmo quando está desesperada. É pelas mãos de Eunice que entramos numa das celas da ditadura, é pelos seus ouvidos que ouvimos sem vermos os gritos, sentimos com ela a angústia de vermos no prédio escondido o carro do marido. É perfeitamente compreensível pra nós que a ditadura é um regime de terror. Terror como método, meio e fim. Fica fácil percebermos a injustiça e a covardia de quem age nas sombras, porque estávamos com Eunice e Rubens nos dias ensolarados. Sabemos com Eunice, que o homem sequestrado era pacato e bonachão, tememos com ela que ele estivesse sendo torturado e bem podia ser, como foi, assassinado. Pra coroar, de volta à casa, a cena do abandono da casa… O reconhecimento sensato de que tempos difíceis exigem medidas drásticas, mas sem perder a ternura jamais. Che Guevara não precisou ser citado, apenas mostrado nos sorrisos da foto que deve ter causado espanto à época. Como pode sorrir uma família que perdeu o pai, marido, a casa e a paz de espírito de um corpo não entregado? Pode porque o regime que lhes roubou tudo não lhes tirou a coragem.

Mas antes de seguirmos na lição que vai aí, no sorriso de Eunice e seus filhos, na coragem que fará dela uma advogada militante brilhante, eu quero falar da coragem e capacidade de Walter Sales de vender o seu filme. Do mesmo modo como se pode ser rico de várias maneiras (e os sábios sabem sê-lo do modo melhor, ainda que haja poucos sábios entre os ricos), há vários modos de se fazer um filme pra vender e de operar a venda ela mesma. Pode-se fazer um filme apelativo cheio de pegadinhas de chore aqui e se horrorize ali, que gaste zilhões em publicidade burra, pode-se até apelar pra esquemas de força (alguém já ouviu falar do que fez Harvey Weinstein pra ganhar o Oscar com Shakespeare Apaixonada? Poor Shakespeare…). Ou… pode-se sair de festival em festival, mídia em mídia, e, last but not least, pra falar a língua certa, deixar a Globo fazer a sua parte (afinal, é o primeiro longa-metragem do Globo Play escolhido para representar o Brasil na orgia oscarítica (Essa foi uma homenagem ao nosso Oscarito que devia ter ganho Oscar com o filme do Sputnik!)). Não tem porque ser contra o grupo Globo gastar a grana deles nisso. Na falta de uma solução melhor, a gente tem de agradecer quando os ricos resolvem gastar produzindo e aqui com gente daqui, fazendo a grana circular aqui. Mas mais interessante é a grana fazer circular as caras e bocas e falas das nossas Fernandas. Ah, se toda superstar global tivesse o conteúdo de nossa Fernandinha… Ela não apenas divulga o filme, a vida de Eunice, como a sua inteligência e, sabedoria! Outro dia a vi dizendo que estão exagerando já, que o filme “não é tudo isso”, no sentido de tudo o que estamos colocando de importância no tal do Oscar. Ou seja, não é que o filme não seja tudo isso, tudo de bom, mas que o auê em volta não precisa ser maior que ele próprio. Claro que seria legal Fernandinha ganhar o Oscar pra si, pra Fernandona, e pro Brasil, mas ao mesmo tempo, fuck you Oscar! Essa sinceridade e sabedoria, podem até ganhar votos, viu?! Ou não.. Ela não foi feita pra isso. O trio Fernanda, Selton e Walter são, há tempos, três grandes cabeças pensantes (brasileiras) do Brasil. Só isso. Fizeram um trabalho coletivo, com outros tantos, e continuam fazendo nessa fase de divulgação, e estão conseguindo quebrar o momento de individualismo extremo em que vivemos fazendo muita gente não apenas ver o filme, mas falar dele, e não apenas para vendê-lo mais e melhor, pra extraímos dele sua lição.

Bem, a prova maior de que o filme cumpriu sua missão é que a lição da vida de Eunice Paiva sobressai ao que foi dito acima. O filme não está sendo visto, premiado e aplaudido por causa de sua propaganda. E creio que mesmo as sacações de Waltinho, as interpretações de Fernandinha (e Fernandona) e Selton, a campanha, o Oscar, etc se sobressaem, valem muito mais como instrumentos que foram pra contar uma tragédia com moral excepcional. Contou-a tão bem que não parou na luta de Eunice por manter a dignidade de sua família, e nem também em sua luta contra o Estado, pelo reconhecimento do assassinato de seu marido. O filme mostra ainda parte da brilhante trajetória de Eunice como advogada. Fico pensando se muita gente depois de ver o filme procurou saber mais sobre isso no Google. Se sim, descobriram que além de liderar campanhas pela abertura dos arquivos da ditadura, campanhas que culminaram na instalação da Comissão da Verdade no Governo Dilma – foi ela que entregou o relatório final onde ficou firmado a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados, e ocultação de cadáveres, considerados crime contra a humanidade e a identifiçação de 434 casos de mortes e desaparecimentos de pessoas sob a responsabilidade do Estado brasileiro -, ela se dedicou especialmente a causa indígena se especializando na recuperação de terras indígenas, na obtenção de indenizações, reparações e demarcações. Esse trabalho de Eunice, junto a outros, foi fundamental no momento da construção do capítulo “dos índios” na Constituição de 88.

Hoje, que a Constituição Cidadã está tão ameaçada (mesmo sob o governo petista e seu “calabouço fiscal”), que a nação descobre que esteve a um fio de levar um novo golpe, que as famílias estão sendo destroçadas – não por nenhuma ideologia comunista, mas pelo super individualismo neoliberal que é ideológico, mas também material, na medida em que cria mais desigualdade econômica e social -, filmes como o de Walter Salles e vidas como a de Eunice Paiva têm mesmo muito a nos ensinar.

Gláucia Campregher é Professora de Economia da UFBA.

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