
Glaucia Campregher
Tem causado furor, no Brasil e no mundo, a minissérie Adolescência dos criadores Jack Thorne e Stephen Graham (o ator que faz o pai) e dirigida por Philip Barantini. Para além dos efeitos técnicos – a filmagem é toda no chamado “plano sequência” que consiste na exclusão dos cortes comuns nas produções audiovisuais, que é o que consegue, ao meu ver, fazer o espectador sentir a história mais real e se colocar mesmo no lugar dos personagens -, o conteúdo da história é absurdamente relevante e potente, no sentido de poder nos colocar a todos em estado máximo de alerta e reflexão.
Como quase todos já devem saber a estas alturas, a história (baseada em fatos reais) trata do assassinato de uma adolescente por seu colega de escola, até àquela altura visto, pela família e os demais, como um garoto de 13 anos absolutamente normal. Pois sim, o assustador pra mim é isso, que o menino da história seja normal, no sentido de que a sua vida não difere das vidas de meninos e meninas de hoje mundo afora, uma vida um tanto, eu diria, solitária e desassistida. Não estou dizendo que a norma seja o desfecho trágico da história. O desfecho – onde alguém mata alguém – pode muito bem não ser, e não é, a norma na imensa maioria dos conflitos entre humanos de todas as idades, e muito menos entre adolescentes, em todos os lugares, ainda nos tempos sombrios de nossos dias. Mas casos com desfechos trágicos como esse, ou similares, como adolescentes que tiram suas próprias vidas, ou levam vidas em estágios graves de depressão, bulimia, drogadição, etc., vêm se tornando muito mais frequentes que no passado em muitos países (googlem e vejam). E isso, ao meu ver, porque tem se tornado normal um abandono sem igual de nossas crianças. Senão vejamos.
Tem decrescido no mundo todo, e particularmente entre muitos países ditos desenvolvidos, o desejo dos cidadãos (e principalmente das mulheres) em terem filhos (googlem também). Quem decide tê-los, é um ou no máximo dois. Mesmo onde a vida econômica vai aparentemente bem, e há emprego e salários razoáveis, não há esperança em melhores condições de vida, conforto e tranquilidade no futuro, que justifiquem criarmos famílias numerosas. Por trás desse pessimismo, além do que para muitos pode parecer (equivocadamente) distante – as projeções de piora das condições climáticas, as incertezas quanto à geopolítica que agravam expectativas de guerras, e o estado de medo generalizado com o crescimento do fascismo em muitos países -, está o crescimento do endividamento, das horas trabalhadas ou gastas em atividades relacionadas ao trabalho (transporte, educação e/ou treinamento profissional, burocracias, etc.) e do stress em geral. Pra piorar, grande parte das nossas horas de lazer são hoje dedicadas à insalubridade das telas – sejam elas as redes sociais cheias de verdadeiros ou falsos sorrisos, os aplicativos cheios de boas ou más notícias, as imagens e mensagens com ou sem veracidade ou sentido, cujo objetivo único é sugar nossos recursos, seja nossa atenção, informação ou dinheiro.
Além de termos pouco tempo pra nos dedicar a nós mesmos e aos outros reais ao nosso redor em atividades saudáveis (como conversar, cozinhar, caminhar, cantar e dançar, jogar e brincar, além de não fazer absolutamente nada e apenas nos deixarmos estar quietos), temos pouco tempo pra verdadeiramente cuidar e educar filhos. E isso numa sociedade em que não temos muita ajuda de parentes próximos e vizinhos, onde as crianças possam estar ao mesmo tempo soltas nas ruas (a fazer algumas das atividades acima) e ainda cuidadas pela comunidade. Como podemos estar atentos ao que se passa com nossas crianças se não conversamos com elas todos os dias; se não lhes contamos histórias quando são pequeninas ou lhes ouvimos as suas quando crescem? Como saber como são ou como estão se não rolamos no chão com elas e não sabemos quem sabe cair ou não, rir ou chorar, quem tem maiores ou menores dificuldades ao se machucar ou ser machucado, e lidar, ou não, com o resultado? Como saber quem resolve como seus conflitos, se mais na base do acordo, do tapa ou do grito? Como confiar que cresçam sabendo divergir e respeitar se não discutimos juntos, sobre livros, filmes ou situações, qualquer coisa enfim que possamos compartilhar. Se não temos tempo pra nos fazermos amados, queridos e confiáveis, como querer que nossos filhos cresçam fortes (sabendo aceitar e lidar com suas fraquezas), confiantes e responsáveis, para consigo mesmos e para com todos os demais?
Adolescência não é um filme (longo, pois que dividido em quatro) sobre adolescentes mas sobre nós adultos, divididos entre nossas profissões e função de sustentar a família e a função de cuidar emocionalmente dela. Os adultos ali não sabem o que se passa com seus adolescentes, sequer sabem que língua falam nas redes; são bons em suas profissões e no trabalho que realizam ali, mas em relação ao trabalho essencial do cuidado falham fragorosamente. O pai policial convive pouco com seu filho do mesmo modo que o pai do garoto criminoso (cuja vida se passava um bocado dentro de um quarto trancado). A mãe do adolescente culpado, que nunca o encara de fato, não lhe é atenta mesmo que seja carinhosa, tendo dificuldade de se fazer ativa e presente (como vimos com clareza no episódio final). Os professores na escola parecem tão assustados quanto os estudantes e por fora de tudo que se passa. E achei um tanto complicada a situação da psicóloga super profissional, que trata o guri em atendimento quase como um experimento, ao qual ela deve se ater para dar bom veredito, útil no tribunal.
Não estou criticando as pessoas (encarnadas nos papéis dos homens pais, da mãe ou da moça que deve analisar o caráter, a maturidade e a sanidade do menino), tão pouco estou criticando a educação que o menino recebeu em casa ou os trabalhos realizados pelos profissionais na sociedade ao redor. Os pais aparentam amar e cuidar das necessidades elementares de seus filhos e com especial carinho. O trabalho da psicóloga deve ter sido construído de modo competente, planejado e detalhado. Como também parecem ter sido os trabalhos da polícia ao realizar a prisão, dos detetives ao tocar a investigação, ou dos professores dedicados às tarefas de educação. Nenhum destes falhou profissionalmente nem falhou sozinho, mas falharam, e estamos falhando todos, como sociedade e como adultos.
Nossas sociedades têm feito muito pouco ou quase nada para ajudar nossas crianças. Poucos países têm aumentado a regulação das redes e dos usos de celulares em escolas e outros locais públicos. E poucos pais têm percebido o quanto eles próprios e seus filhos têm se tornado escravos de seus aparelhos imbecilizadores. Nossos adultos cada vez mais infantilizados compram tempo de sossego com o tempo dos filhos nas telas desde a mais tenra idade. As crianças, quanto mais largadas pelos pais, ricos ou pobres, mais ficam à mercê das redes e plataformas que lhes veem hoje como o público mais fácil e lucrativo, mais fiel e sem filtros. Os governos não têm enfrentado os poderes dos trilionários das redes mesmo quando estudos científicos mostram dados alarmantes sobre o uso de redes e plataformas como produtores de depressão e perda cognitiva. A sociedade brasileira em particular sustenta o tenebroso recorde de tempo de rede e transtorno psiquiátrico entre adolescentes.
Substituir os falsos e vazios pelos sociais criados nas redes por elos densos e reais urge. Isso dará trabalho? Sim, e muito. Será preciso atacar várias frentes, desde pressionar os governos para enfrentarem os big techs de nossa era, como nos prepararmos para sermos melhores pais. Isso nos tomará um tempo precioso, mas é o mesmo tempo que estamos dando de graça a quem menos o merece, e que está nos deixando a todos doentes.
Glaucia Campregher é professora aposentada de economia, ex-professora da UFU, UFRGS, UFBA e apaixonada por cinema.