A verdadeira dor, de ficar sem lugar…

a verdadeira dor
Fotografia: IMDB

Glaucia Campregher

O filme que decidi comentar com vocês hoje recém estreou no Brasil, é A verdadeira dor, ou The real pain (que eu preferiria que fosse  traduzido por dor real) de Jesse Eisenberg – que o dirigiu, roteirizou e nele atuou. Trata-se de um filme absolutamente sensível e delicado, uma história curta e simples mas que nos toca a todos de modo apurado. A ponte que vejo entre esse filme e nossa discussão mais geral aqui sobre  o “mundo do trabalho” é o fato de que a história versa sobre dois primos que, a despeito de não sabermos muito sobre seus dramas pessoais, sabemos que um conseguiu se colocar no tal mundo, e o outro não.

Bem, como vocês sabem de outros artigos aqui, não consigo passar pra vocês o que vejo como a “moral da história” sem falar minimamente dela, a história. Ou seja, impossível evitar spoilers pois preciso de certos dados estabelecidos pela obra, por vezes encadeados. No caso aqui, só pra começar, preciso muito da primeira e da última cena do filme; são elas que nos contam dos vínculos dos nossos personagens com o trabalho – para o qual voltam, ou não, depois de sua viagem. Desculpem-me…

Pois então, nosso filme começa com um rapaz ansioso (Jesse Eisenberg), correndo para estar no aeroporto a tempo da partida e mandando mil mensagens ao primo que embarcará na mesma viagem e que ele acha que deve estar igualmente na corrida. Engano seu, o primo (Kieran Culkin) já estava lá há tempos, não teve de correr, nem achou que tivesse de responder as tais mil e uma mensagens. Na cena final, o primo primeiro (Jesse) vai pra casa e chega a convidar o outro (Keiran) – de quem se reaproximou na viagem que fizeram – mas este recusa o convite para ficar no lugar nenhum do aeroporto.

Precisei estabelecer de cara essas duas cenas porque meu ponto aqui será esse – o filme é sobre a viagem dos dois primos, e o que saberemos deles então tem tudo a ver com como se comportam nessa viagem diante dos outros. O primeiro outro de cada um deles, o seu primo; depois tem a avó comum que morreu e que é o motivo da viagem; por fim vêm os outros todos, companheiros de viagem, guia de turismo, pessoas aleatórias com quem todos esbarramos todos os dias. Não iremos descobrir ao longo do filme o que poderia explicar que um primo se comporte de tal modo (ansioso e tenso, mas também mais atento às demandas dos demais na vida social) e o outro de outro (espontâneo e tranquilo, mas também menos atento às demandas dos demais na vida social). Sabemos que o primeiro é considerado mais “normal”, mas o filme nos presenteia com uma pulga para nossa orelha, pois talvez a “normalidade” esteja num tipo de consideração das demandas dos outros na vida social um tanto superficial. Talvez, a pessoa que pareça menos normal, talvez até um pouco anti-social, é justo aquela que se aproxime do outro de modo mais real.

O filme traz diversas cenas sobre isso, sobre o que seria um contato real de alguém com outro alguém. O primo, digamos esquisito (Kieran) – que, diga-se de passagem, não anda ou come correndo, vê melhor o redor, e, importante, dorme melhor – consegue aqui e ali tocar os outros. Ele, inclusive, os toca fisicamente, os abraça, os puxa para uma brincadeira, os ouve, os faz rir, e também ficarem bravos. Ao primo ele toca mais e profundamente, psicológica ou fisicamente, e lhe questiona o tempo todo porque mudou, porque, por exemplo, chora menos que em criança (e abraça menos e dorme pior…). No fundo a pergunta é porque ele cresceu. Vejam, a vida desse primo não é uma merda, ele tem mulher e filho, uma casa pra voltar. E trabalho.

É essa reflexão que quero trazer pra vocês. Não quero nem posso psicanalisar o personagem do filme, mas posso usá-lo pra especular aqui sobre algo muito importante – o que nos obriga a crescer, e o que crescer pode nos fazer perder. Pois bem, o que nos obriga a crescer é termos de aprender a sobreviver sós. Termos de cuidar de nós sem nossos pais e/ou avós. A avó do filme sobreviveu a uma guerra, a um campo de concentração, e a um pós-guerra cheio de dificuldades num outro país. O primo esquisito está tendo dificuldades em sobreviver (saberemos adiante na história sobre o tamanho dessa dificuldade). O meu ponto aqui é que ele não consegue falar sobre o que faz como trabalho, se é que faz algo, e, assim sendo, ele não tem um lugar no mundo. Isso é muito sério sobre o trabalho, pois ele não apenas nos permite cuidar de nós, comprarmos nossa comida e pagarmos por nossa casa. O trabalho  nos dá um lugar mais que espacial, nos fixa numa cidade (mesmo que hoje, pra muitos, por pouco tempo) mas também nos coloca em grupos de pessoas, mais próximas e mais distantes, dos colegas de trabalho e os vizinhos de casa aos outros trabalhadores, cidadãos e contemporâneos. Crescer e poder trabalhar pra viver são processos que se reforçam.

Mas por que crescer pode ser também perder coisas boas? Como afetividade e espontaneidade? Por que pode ser mesmo igual a não crescer, a não se desenvolver como pessoa – que sabe tocar e se deixar tocar por pessoas? Minha hipótese é que algo ocorre nos espaços de trabalho que em vez de facilitar dificulta o compartilhamento real de experiências reais. O que quer que tenha acontecido na infância, adolescência e vida adulta de nosso personagem no filme, ou de todos de nós na vida real, claro que é importante pra sabermos de nossas facilidades e dificuldades tanto pra acharmos um modo de sobrevivermos como de crescermos como pessoas maduras e boas (éticas!), mas não é esse meu ponto. Meu ponto é que muitos dos que conseguem achar seu lugar, um trabalho e uma profissão, e sobreviver a partir disso, não conseguem crescer de forma integral, integrando a criança dentro de si (o que, dialeticamente, torna muitos adultos hoje um tanto infantilizados).

Marx bem sabia que a alienação não se dá no capitalismo só em relação ao produto do trabalho (que não nos pertence mas a quem nos emprega) mas também ao processo produtivo inteiro. Há uma alienação das relações interpessoais, uma atomização e super individualização no mundo capitalista que vem piorando desde a época das grandes fábricas, onde mal ou bem o capital precisava da cooperação dos seus exércitos de trabalhadores coletivos. Hoje trabalhamos cada vez mais sós, mesmo quando em grupos. Socializamos e compartilhamos cada vez menos experiências, e tememos cada vez mais o toque e mesmo a presença do outro. A vida fora do trabalho reflete isso. Não tememos só o ladrão, o estuprador ou o imigrante. Tememos todos e por qualquer coisa. Tememos ser sinceros e darmos nossas opiniões, como também tememos ouvir. Tememos abandonar e sermos abandonados (sermos desligados, demitidos, cancelados) e por isso não fazemos laços. Por isso hoje, mesmo adultos bem empregados e com seu lugar no mundo assegurado, seguem sendo crianças medrosas. O que a extrema direita identifica como fraqueza individual por causa de gays, trans e negros fortalecidos, tem muito mais a ver com enfraquecimento da vida social e coletiva em geral, que nos torna individualmente mais frágeis. E isso justo na medida que sequer conhecemos e encaramos nossas fraquezas.

A dor real (título que prefiro) é sobre a realidade da vida, a dificuldade de sobreviver – não só num campo de concentração, mas em todos os campos da vida – sozinhos. Saber ser sozinho é fundamental, mas é o coletivo que nos deve ensinar isso. Do contrário, viramos solitários ressentidos, e perigosos. O trabalho – com o outro e para o outro (coletivo e não privado!), num tempo mínimo e não máximo – deveria nos salvar desse dessa perigosa solidão e nos dar a verdadeira autonomia.

Glaucia Campregher é professora aposentada de economia, ex-professora da UFU, UFRGS, UFBA e apaixonada por cinema.

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