A escala 7×0 que pesa sobre as mulheres

Fotografia: ONU Mulheres

por Felipe Prestes

O tema da escala 6×1 tomou conta do debate público no país nas últimas semanas. Enquanto isto, sem grande holofote, avança um projeto que pode amenizar o peso da escala 7×0 do cuidado com familiares, sejam eles crianças ou idosos, que recai principalmente sobre as mulheres. A Câmara dos Deputados aprovou no dia 12 de novembro a Política Nacional de Cuidados, enviada pelo Governo Federal. O texto, que seguiu para o Senado, estabelece que “todas as pessoas têm direito ao cuidado” e que o cuidado é um dever do Estado, nas esferas federal, estadual e municipal, “em corresponsabilidade com as famílias, o setor privado e a sociedade civil”.

Dentre os objetivos da política, está a redução e a redistribuição do trabalho não remunerado de cuidado realizado pelas mulheres. Outra das metas é a promoção de políticas públicas de cuidado. O texto não dá detalhes de quais serão essas políticas – elas deverão ser detalhadas no Plano Nacional de Cuidados, que está em fase de elaboração.

“A política foi encomendada à Secretaria Nacional de Cuidados da Família do Ministério do Desenvolvimento Social, mas eles não são um órgão executor. Então, o plano está sendo feito em uma pactuação com os Ministérios, para ver as ações que eles podem exercer dentro desse olhar de cuidados”, explica Ana Amélia Camarano, pesquisadora do IPEA e uma das organizadoras do livro Cuidar, Verbo Transitivo: caminhos para a provisão de cuidados no Brasil.

Para Camarano, uma das transformações necessárias é de que as creches funcionem não mais apenas como uma política de educação, mas também como política de cuidado. “A creche precisa funcionar nos contraturnos, nas férias. São ações que o Estado deveria fazer”, explica.

Do ponto de vista do cuidado de idosos, a pesquisadora do IPEA aponta que, em levantamento feito em 2019, o Estado brasileiro, nas três esferas, tinha apenas 158 instituições residenciais para idosos, um número irrisório. “Só a sociedade religiosa São Vicente de Paula tinha mais de 700. Então, isso é muito pouco. O SUAS (Sistema Único de Assistência Social) financia uma proporção de instituições, que são credenciadas, e recebem alguma ajuda”, pontua.

Mas, para Camarano, a política mais viável de ser implementada em curto prazo não é a construção de instituições públicas de residência, e sim as chamadas “políticas de respiro”. “Você não abre uma instituição de hoje para amanhã. Então, um serviço mais barato, que você pode ter em uma escala maior, é oferecer cuidadores domiciliares para as famílias. Isso se chama política de respiro, para a família poder respirar, porque cuidar de um idoso é 24 horas por dia, 365 dias por ano, e a família tem feito isso sem ajuda do Estado”.

“A gente precisa transformar um modelo de cuidado que hoje é informal e familiar em um modelo formal e institucional”, afirma Jordana Cristina de Jesus, professora do departamento de Demografia e Ciências Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e membro do Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero – GeFam. “Isso não quer dizer que a gente deve institucionalizar os idosos, são coisas distintas”, pontua.

A pesquisadora relata que o país tem, de fato, poucas instituições de residência para idosos, mas também precisa ampliar outras políticas, como os centros-dia do SUAS. “O idoso pode passar um período do dia num ambiente que tem serviços adequados para ele, que tem serviço de saúde, reabilitação, que age no sentido de ampliar o tempo de autonomia do Idoso”. A professora da UFRN ressalta também que, quanto mais acesso a serviços de reabilitação tiver o idoso, menos ele irá demandar cuidados quando estiver em casa. “Programas de reabilitação que ofereçam ganho de qualidade de vida para esses idosos, para que eles consigam se manter numa condição de autônomos. Encarar a demanda de cuidado não como o que define esse sujeito, mas como apenas uma das dimensões da vida dessas pessoas”.

Para Jordana Cristina de Jesus, outro debate que precisa ser feito no país é sobre licenças para cuidar. “Hoje, o único modelo de licença para cuidar que a gente tem, de fato, é a licença-maternidade, porque a licença-paternidade alcança um número pequeno de dias. Talvez seja a hora de começar a discutir outras possibilidades de licença para cuidar, que envolvam os idosos. Conciliar o trabalho remunerado com as necessidades de cuidado passa pelo debate das jornadas de trabalho, passa pelo debate das licenças para cuidar, passa por um envolvimento do mercado. A corresponsabilidade social pelos cuidados vai ter que envolver as empresas”.

Mulheres fazem quase o dobro de trabalho não-remunerado em casa

O IBGE investigou o cuidado na PNAD Contínua – Outras Formas de Trabalho, em 2022. Segundo o levantamento, 34,9% das mulheres cuidavam de outros moradores de sua residência ou de parentes que não moravam consigo. Entre os homens, eram 23,3%.

Quando se fala da realização de tarefas de cuidado mais complexas, a diferença de gênero aumenta. Dentre as pessoas que cuidavam de alguém, 85,5% dos homens e 90% das mulheres relataram “monitorar ou fazer companhia dentro do domicílio”. No entanto, 86,6% das mulheres declararam realizar a atividade de auxiliar nos cuidados pessoais, que inclui alimentar, vestir, pentear, dar remédio, dar banho e colocar para dormir, ante apenas 70,4% dos homens.

Quanto ao tempo dedicado a essas tarefas, o IBGE não investigou separadamente quanto foi com a realização de cuidados e quanto foi com outros afazeres domésticos. Mas o tempo despendido em tarefas domésticas como um todo dá uma boa ideia do quanto o peso é maior para as mulheres. Elas dedicam, em média, 21,3 horas por semana ao trabalho em casa, quase o dobro dos homens, que o fazem por 11,7 horas.

Ainda que as mulheres se dediquem quase o dobro do tempo, Jordana Cristina de Jesus
acredita que o tempo de trabalho delas em casa está subestimado na pesquisa. “Quando a gente coloca os resultados que a PNAD Contínua trouxe em comparação com os outros países aqui da América Latina, o Brasil continua registrando significativamente menos horas de trabalho de cuidado. E, como pesquisadora, eu não acredito realmente que isso tenha a ver com o Brasil ter um perfil de mulheres que fazem menos trabalho de cuidado. Tem muito mais a ver com não termos, de fato, um instrumento que seja capaz de mensurar esse trabalho”, ressalta.

Por outro lado, destaca que a pesquisa ajuda a revelar como se dá a divisão de tarefas dentro de casa. “A gente consegue entender como as mulheres se engajam mais nas atividades que são mais complexas, como preparar refeição, manutenção de vestuário. Os homens estão ali mais envolvidos em atividades que são mais adiáveis, que são menos intensivas em tempo, que são pequenos reparos, cuidado do quintal”.

Perda de autonomia financeira e dificuldade em se aposentar

A Síntese dos Indicadores Sociais de 2023, também do IBGE, mostra que 21,9% das mulheres pretas ou pardas e 18% das mulheres brancas que não procuravam emprego declararam como motivo “cuidar dos afazeres domésticos, do(s) filho(s) ou de outro(s) parente(s)”. Entre os homens, foram 3% dos brancos e 2% dos pretos ou pardos. “A responsabilização pelo trabalho de cuidado é um um fator limitante das oportunidades de geração de renda. A gente tem um grupo de mulheres que sequer consegue acessar o trabalho remunerado. Depois, tem outra parcela de mulheres que até acessam o trabalho remunerado, mas têm que aceitar condições muito mais precárias para que elas sejam conciliáveis com o trabalho de cuidados. Então, elas vão aceitar trabalhos informais, trabalhos por menos horas na semana, o que quer dizer que no final do mês vão receber um salário menor”, explica Jordana Cristina de Jesus.

Além disto, a professora da UFRN destaca que a simples ideia de que as mulheres cuidarão no futuro de filhos já faz com que sejam preteridas em oportunidades de trabalho ou promoções dentro da empresa. Para os homens, o efeito é oposto. “A literatura mostra que para as mulheres existe uma penalidade pela maternidade. Já os homens têm um bônus pela paternidade, porque para a figura masculina a responsabilização pelos cuidados é associada a uma ideia de que este é um homem responsável, ele é provedor. Então, ele precisa dessa ocupação, ele precisa dessa promoção”.

Com menos período trabalhando fora de casa ou mais tempo em trabalhos informais, as mulheres têm mais dificuldade em contribuir pelo tempo mínimo para se aposentar. “Então, é muito importante quando a gente debate Reforma da Previdência considerar que as mulheres por serem responsabilizadas pelos cuidados, elas têm muito mais dificuldade de acumular tempo mínimo de contribuição. Faz sentido no Brasil ter tempo mínimo de contribuição diferente para homens e mulheres”, explica Jordana Cristina de Jesus.

Ana Camarano, pesquisadora do IPEA, estimou quanto as mulheres perdem de renda ao se dedicarem exclusivamente ao cuidado familiar, com base em dados do Censo Demográfico de 2010. O estudo mapeou que 1,4 milhão de brasileiras de 20 a 69 anos não estavam no mercado de trabalho nem aposentadas, não tinham dificuldades de realizar atividades da vida diária e residiam em domicílios com pelo menos um indivíduo com dificuldade para essas atividades. A partir de dados das mulheres com mesma idade e mesma escolaridade que participavam do mercado de trabalho, Camarano estimou que se essas mulheres estivessem trabalhando fora do domicílio “receberiam aproximadamente R$ 1,1 bilhão mensais, o que elevaria o rendimento médio per capita de seus domicílios em 54,0%”.

O estudo também computou que cerca de 489 mil mulheres estavam cobertas pela contribuição previdenciária do cônjuge, podendo acessar a pensão por morte, se este falecesse. Porém, cerca de 950 mil mulheres estavam descobertas. “Geralmente, essa mulher está numa família em que os pais têm renda, têm aposentadoria, que quando morrem a aposentadoria vai embora com eles. Então, são mulheres que não vão ter renda quando os pais morrerem. Uma mulher nessa condição aos 50 anos não consegue se inserir no mercado de trabalho, muito menos para poder fazer um histórico de contribuição”, alerta a pesquisadora.

Idosos cuidando de idosos

Grande parte do cuidado no Brasil ainda é dedicado às crianças. Na PNAD Contínua – Outras Formas de Trabalho de 2022 metade das pessoas que informaram cuidar de algum morador dedicaram esse cuidado a crianças de até 14 anos. O cuidado de idosos ocorreu em 11,6% dos casos, mas aumentou 2,8 pontos percentuais em relação a 2019, edição anterior da pesquisa. A tendência é de crescimento ainda mais acentuado com o envelhecimento da população brasileira.

“Hoje, a capacidade da família cuidar está diminuindo, porque tem menos filhos, a mulher participa ativamente do mercado de trabalho. Se o Estado não entrar, o que vai acontecer no futuro? Você vai ter um monte de idosos na rua. Ou você pode ter uma redução na expectativa de vida, pessoas vão morrer mais cedo”, projeta Ana Amélia Camarano.

“Considerando que nada seja feito, que as condições atuais sejam mantidas, daqui a 30 anos a principal força de trabalho dos cuidados serão mulheres idosas, a gente vai ter no futuro mulheres idosas cuidando de outros idosos. Então, a gente vai ter um processo bastante complexo, se a gente não não investir nas políticas de reorganização dessa distribuição, dessa lógica familista, de que o cuidado é obrigação da família, das mulheres, sobretudo das mulheres negras”, afirma Jordana Cristina de Jesus.

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