Cristina Pereira Vieceli
Entre os dias 3 e 4 de julho, ocorreu em Roma o 32º Encontro de Economia Feminista, organizado pela International Association for Feminist Economics (IAFFE). Este é o principal congresso internacional de economia feminista, disciplina que vêm ganhando espaço no debate internacional, abrangendo diversas áreas de pesquisa, dentro da abordagem da economia crítica.
Neste ano, o tema do encontro foi “Entre a Revolução Digital e a Crise da Democracia, respostas da economia feminista e imaginações para o futuro”. No encontro, debateu-se sobre novos rumos da economia considerando as crises sistêmicas, relacionadas aos cuidados, mercado de trabalho, acesso a políticas de bem estar social e a crescente digitalização. As novas dinâmicas sociais e econômicas se tornam desafios para o setor público, elaboradores(as) de políticas públicas e, por conseguinte, para a ciência econômica, que precisa se reinventar, dado que as respostas dadas pela ortodoxia são insuficientes para suprir as novas demandas sociais. A economia feminista, nesse sentido, propõe um novo olhar sobre a realidade econômica em que os trabalhos não remunerados e de reprodução social, historicamente invisibilizados, tornem-se parte integrante do sistema.
Mas o que é a Economia Feminista, e o que a diferencia das demais abordagens econômicas?
A Economia feminista como disciplina própria surgiu nos anos 1990 a partir da inclusão de pautas concernentes às perspectivas feministas sobre a economia na conferência anual da “American Economic Association”. Sua consolidação ocorreu com a criação da “International Association for Feminist Economics”, em 1992, e com a publicação da revista Feminist Economics, a partir de 1995[1]. Atualmente, essa linha de pesquisa abrange várias escolas do pensamento econômico (marxista, institucionalista, pós-keynesiana) e tradições do feminismo (radical, socialista, liberal), bem como comunga com outras áreas das ciências humanas, como sociologia, história e antropologia.
Outras publicações que marcam a emergência da economia feminista é Beyond Economic Man, Feminist Theory and Economics, publicado em 1993, e organizado pelas economistas Marianne Ferber e Julie Nelson, no qual as autoras trazem um compilado de artigos com críticas sobre a visão econômica ortodoxa e a invisibilidade do trabalho das mulheres, dos trabalhos domésticos e das famílias na ciência econômica. Anteriormente, destacam-se, nos anos 1970, a publicação Women’s Role in Economic Development, de Ester Boserup, em que a autora busca analisar o papel do trabalho feminino em diferentes estruturas econômicas, dentro das vilas e nas cidades, com a modernização da agricultura e o processo de urbanização dos países, e a obra If Women Counted de Maryling Waring, cuja primeira publicação é de 1988, que faz uma crítica a invisibilidade dos trabalhos domésticos nas estatísticas de contas nacionais.
Recentemente, a economista francesa Heléne Perivier, lançou o livro A Economia Feminista: por que a ciência econômica precisa do feminismo e vice-versa. Na obra prefaciada por Thomas Piketty, Perivier aborda, dentre outros temas, a questão da necessidade de perseguirmos a igualdade de gênero como um valor de justiça ética, e não como justificativa para aumentar a produtividade e o PIB dos países. Também trata da invisibilidade do trabalho feminino nas ciências econômicas.
No Brasil, os estudos na área de economia feminista vêm crescendo e ganhando espaço no meio acadêmico, puxados pelas organizações e núcleos de pesquisa e extensão e movimentos feministas. No âmbito das ciências sociais, destaca-se entre os periódicos que abordam sobre a questão de gênero e feminismo sob uma perspectiva interdisciplinar a Revista de Estudos Feministas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a Revista Gênero, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Cadernos Pagu, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Dentre os núcleos de pesquisa acadêmica, encontram-se o Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Economia Feminista da UFRGS (NECOFEM), o Núcleo de Estudos em Economia Feminista (NEEF), da UFSC, o Núcleo de Estudos e Pesquisa de Economia e Feminismos (NuEFem) do Instituto de Economia da UFRJ e o Núcleo de Pesquisa de Economia e Gênero (NEPGen) da Facamp. Recentemente, pesquisadoras na área da economia feminista de diversas regiões brasileiras criaram a Rede Brasileira de Economia Feminista (REBEF), que integra a Associação Nacional dos Cursos de Graduação em Ciências Econômicas (ANGE).
A abordagem da Economia Feminista enfatiza a importância de uma visão global da economia, associando os trabalhos voltados à produção de mercadorias aos trabalhos reprodutivos. Considera-se como central o bem-estar social por meio dos cuidados não somente com o corpo, através da alimentação, vestimenta, higiene e saúde, como também os atinentes às emoções, cultura e relações pessoais. Além disso, as atividades destinadas aos cuidados não incorporam somente a formação de indivíduos para compor a população ativa, como também se destina ao bem-estar dos indivíduos fora do mercado de trabalho, como crianças e idosos. Ou seja, o principal foco de análise deixa de ser as relações mercantis, passando a ser o bem-estar humano, entendendo a sociedade como composta de indivíduos que dependem dos cuidados para viver[2].
A questão do gênero dentro desta abordagem é incorporada de maneira especial, tendo em vista que são as mulheres as principais agentes nos espaços pouco valorizados e invisíveis dentro da teoria econômica ortodoxa. A desvalorização dos trabalhos reprodutivos reflete em processos como a feminização da pobreza, os fluxos migratórios de mulheres no mundo para servirem como cuidadoras e a maior fragilidade do trabalho feminino, além de nichos ocupacionais pouco valorizados, como o trabalho doméstico remunerado. Esta perspectiva é importante, portanto, para a formulação e execução de políticas públicas que incorporem uma visão mais articulada e integrada da realidade. Por exemplo, as distorções existentes em nível macroeconômico, no emprego, consumo e investimentos, podem desencadear desequilíbrios microeconômicos, e vice-versa[3]. É o que ocorre em situações de desemprego ou no caso doenças ocupacionais, tanto físicas como psicológicas, que podem afetar e desestruturar os núcleos familiares. Da mesma forma, a desorganização de um núcleo familiar, ou uma comunidade, poderá afetar na formação de indivíduos aptos e dispostos a ingressar e permanecer no mercado de trabalho.
A economia feminista, portanto, não tem somente um papel teórico, mas também político, ao expor as condições econômicas das mulheres e propor alternativas de mudanças. Segundo Strober [4](2003, p. 5) “Feminist economics not only exposes the hidden political agendas of received economic doctrine, it straightforwardly aknowledges its own economic and political agenda: the improvement of women economic condition”[5].
A ciência econômica, segundo a análise de Strober (2003), foi formulada historicamente com base nos princípios da escassez, egoísmo e competição, tratando raramente sobre a questão da abundância, altruísmo e cooperação. Essa lógica exclui os grupos sociais e políticos marginalizados, em que as mulheres se encontram. A economia feminista, por conseguinte, pretende modificar a lógica da ciência econômica incluindo em sua análise valores como abundância, altruísmo e cooperação, partindo da ênfase na redistribuição de bens e serviços, e da análise de que muitos problemas econômicos não são resultantes da escassez, mas da má distribuição. A ênfase da disciplina não deveria, por conseguinte, ser balizada na dicotomia entre escassez e cooperação, mas em como melhor resolver cada problema a partir da busca pelo bem-estar da humanidade.
Por que a Economia Feminista é importante para o Brasil e para a América Latina?
A América Latina em geral, e o Brasil em particular, são marcados por profundas desigualdades sociais entrelaçadas com relações de gênero, raça e classe, historicamente moldadas pelos legados da colonização, escravidão e relações patriarcais que persistiram ao longo do tempo. As economias latino-americanas são estruturalmente caracterizadas por uma industrialização tardia e, em alguns casos, incompleta, que ocorreu principalmente entre as décadas de 1950 e meados da década de 1970. Posteriormente, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por ampla liberalização econômica, privatização de empresas estatais e implementação de agendas de austeridade fiscal e flexibilidade trabalhista. Em geral, a estrutura produtiva da América Latina torna o mercado de trabalho distintamente caracterizado pela informalidade, com economias dependentes da exportação de commodities primárias e minerais, reforçando a concentração de renda e, consequentemente, a concentração de poder.
Nesse cenário, a economia feminista é de extrema importância, considerando tanto os desafios econômicos específicos quanto a necessidade de examinar como a estrutura econômica afeta homens e mulheres distintamente. Em estados com baixa proteção social, as mulheres tendem a ser desproporcionalmente representadas em empregos de meio período e flexíveis, devido à necessidade de equilibrar o trabalho produtivo e reprodutivo. As responsabilidades com filhos e parentes idosos levam mulheres e meninas a abandonarem a educação e participar do mercado de trabalho, tornando-as vulneráveis à pobreza monetária e de tempo.
A exemplo disso, segundo dados da CEPAL, em 2019, o tempo semanal despendido em trabalho de cuidado não remunerado entre as mulheres foi de 31,36 horas, dez horas mais que o dos homens, que totalizaram 21,28 horas. Em contrapartida, a taxa de participação feminina no mercado de trabalho se manteve em torno de 47,88%. Ou seja, menos de 50% da força de trabalho feminina está envolvida em alguma atividade laboral remunerada. O ônus do cuidado recai principalmente sobre as meninas. Segundo estatísticas da CEPAL para o ano de 2020, entre as meninas de 15 a 24 anos, 26,2% não estavam nem estudando nem trabalhando, enquanto os meninos representavam 11,6%. O principal motivo apontado para não estarem envolvidas nessas atividades foi o trabalho doméstico, relatado por 17,5% das meninas pesquisadas, enquanto o percentual de meninos que citaram o mesmo motivo foi de apenas 1,9%. Ou seja, a forma como o sistema de relações de cuidado está estruturado nos países latino-americanos compromete a vida das gerações futuras, impondo problemas previdenciários e de crescimento econômico.
A economia feminista, além de examinar estruturas de gênero diferenciadas, busca analisar criticamente como as políticas macroeconômicas podem impactar essas relações. Um exemplo é a política tributária, que na região tem sido historicamente influenciada pela teoria da tributação ótima. A estrutura tributária dos países latino-americanos é caracteristicamente regressiva, com baixa tributação direta e predominância de impostos indiretos, afetando desproporcionalmente as mulheres pobres. Isso se deve ao padrão diferenciado de integração de homens e mulheres na sociedade e no mercado de trabalho, definindo uma maior presença de homens brancos em faixas de renda mais altas. Políticas de alívio tributário, especialmente sobre lucros e ativos, beneficiam desproporcionalmente a população masculina, conforme observado por Gomes, Rada e Nassif-Pires, 2022 para o Brasil[6]. Os autores destacam a natureza racista e patriarcal do sistema tributário brasileiro, que carece de alíquotas sobre lucros e dividendos.
Em suma, para que transformações sociais efetivas e substantivas ocorram, é necessário que a ciência econômica modifique seus paradigmas, buscando uma perspectiva que abarque as diferenças estruturais da sociedade, bem como entre países e regiões. Na América Latina em geral, e no Brasil em particular, é essencial aprofundar a análise das estatísticas de uso do tempo, a estruturação de sistemas de relações de cuidado que redistribuam o trabalho doméstico não remunerado pela sociedade, criando empregos de qualidade, especialmente para as mulheres. Adicionalmente, é imperativa uma revisão das políticas macroeconômicas que priorizem o desenvolvimento sustentável, a igualdade social e a expansão da democracia, começando pela maior participação das mulheres
Notas
[1] CARRASCO, C. La economia feminista: uma apuesta por otra economía. In: VARA, M. J. Estudios sobre género y economia. Madrid: Coleccion Economia actual, Akal, 2006. Disponível em: https://www.americalatinagenera.org/newsite/images/documents/U1La_econom%C3%ADa_feminista.pdf. [2] PICCHIO, A. La economia política y la investigación sobre las condiciones de vida. 2005. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Antonella_Picchio/publication/228434690_La_economa_poltica_y_la_investigacin_de_las_condiciones_de_vida/links/0912f50ea895b07fc2000000.pdf. [3] KON, A. Considerações teóricas sobre a divisão sexual do trabalho na família: repercussões sobre o mercado de trabalho. In: Seminário: As famílias e as políticas públicas no Brasil, ABP – GT População e Gênero, Anais… Belo Horizonte, 2005. [4] STROBER, M. Rethinking Economics Through a Feminist Lens. In: MUTARI, E. FIGART D. Women and the Economy: a reader. M. E. Sharpe: 2003. [5] A economia feminista não apenas expõe as agendas políticas ocultadas pela doutrina econômica recebida, mas reconhece diretamente sua própria agenda econômica e política: a melhoria da condição econômica das mulheres (STROBER, 2003, p. 5, tradução nossa) [6] GOMES, João Pedro de Freitas; DI RADA, Ruth Pereira; CARDOMINGO, Matías Rabello _ NASSIF-PIRES. Luísa. Privilégio branco na estrutura tributária brasileira: uma análise interseccional de impostos diretos e transferências. Notas de política econômica feitas – Centro de Pesquisa Macroeconomia das Desigualdades da FEA/USP, disponível em: https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/npe-27-sistema-impostos-brasileiro-racismo-estrutural/. São Paulo, 2022.Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutora em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, Visiting Fellow no Programa de Análise de Gênero da American University – Washington-DC, colunista do site DMT .