O entusiasmo do Vale do Silício apresentou a economia digital como uma fonte de crescimento dinâmico, além de uma força libertadora para os trabalhadores. Na realidade, a tecnologia digital está facilitando formas brutais de exploração, enquanto a produtividade e o crescimento estão desacelerando.
Cédric Durand
Fonte: Jacobin Brasil
Tradução: Priscilla Marques
Data original da publicação: 16/10/2024
O trecho a seguir foi extraído do livro Como o Vale do Silício desencadeou o tecno-Feudalismo: a construção da economia digital, de Cédric Durand, disponível agora pela Verso Books.
Se o “novo espírito do capitalismo” analisado por Luc Boltanski e Ève Chiapello tivesse que ser personificado em algum local, o candidato óbvio seria os edifícios luminosos e modernos reservados para os criadores das gigantes de tecnologia do Vale do Silício. A sede do Google nos vende o sonho com suas sessões de ioga, restaurantes gratuitos e academias de ginástica abertas 24 horas. Ela exibe o mundo inocente e aberto que a empresa visa materializar.
Esse tipo de ambiente de trabalho é uma ilustração magistral da reorganização das subjetividades iniciada pela “epitemogênese neoliberal” identificada por Frédéric Lordon:
O desejo de encontrar emprego não deve mais ser meramente um desejo mediado pelos bens que os salários permitem comprar de forma indireta, mas sim um desejo intrínseco pela atividade em si mesma… desejos por um trabalho feliz ou, para tomar emprestado diretamente de seu próprio vocabulário, desejos de “realização” e “auto-realização” no e através do trabalho.
Prometendo que seu “espírito inovador do Vale do Silício está mais forte do que nunca”, o Google propõe “um ambiente onde cada indivíduo possa compartilhar suas ideias com os colegas a qualquer momento e buscar suas contribuições”. De fato, “cuidar dos Googles” parece ser uma maneira eficaz de estimular a inovação. Deixar bastante espaço para ciclos virtuosos e o livre jogo de complementaridade e colaboração encoraja o surgimento daquilo que, por definição, ainda está por ser descoberto.
Xavier Niel tenta promover esse mesmo espírito de inovação-através-da-diversão nos escritórios flexíveis e na zona de lazer da Station F, seu campus de start-ups em Paris. A flexibilidade que facilita o trabalho criativo parece reminiscente da revolta antiautoritária dos anos 1960, e certamente seria agradável acreditar, por um momento, que esse poderia realmente ser o novo rosto do trabalho.
Neo-Stakhanovismo
Infelizmente, este não é o caso. Apesar de toda a retórica refinada elaborada nos escritórios descontraídos da Costa Oeste dos Estados Unidos, as mudanças organizacionais que estão realmente promovendo, alimentam exatamente a dinâmica oposta. Karl Marx apontou para a possibilidade de um aumento na utilização do trabalho, em um tempo que permanece o mesmo, graças a “uma maior tensão da força de trabalho e um preenchimento mais apertado dos poros da jornada de trabalho, ou seja, uma condensação do trabalho”. Philippe Askenazy descreve agora esse mesmo fenômeno como neo-Stakhanovismo.
Nos armazéns da Amazon ou da Lidl, em centrais de atendimento, nas cabines de caminhoneiros ou nos caixas de supermercados, as tecnologias da informação estão permitindo eliminar todo o tempo ocioso, impor novas exigências aos trabalhadores e introduzir meios de vigilância que invadem profundamente suas vidas privadas. A implementação de sistemas de direção por voz é uma ilustração extrema das crescentes restrições que os funcionários de logística têm que enfrentar.
Usando software de reconhecimento de voz para se comunicar diretamente com a unidade central de computação, os selecionadores de pedidos da Amazon seguem instruções de passo a passo, através de fones de ouvido, por uma voz digital. Cada vez que um trabalhador pega um pacote, ele o valida lendo no microfone os números correspondentes às quantidades em questão — produzindo assim os dados que informarão sua avaliação e decidirão se ele receberá um bônus de produtividade, ou não.
Este é um sistema brutal. Um trabalhador, Arthur, lembra-se de sua primeira experiência trabalhando com isso:
Eu quase saí de lá imediatamente! Achei realmente assustador. Honestamente, é meio sinistro… A voz e tudo mais , que dizia “repita, esta palavra não é compreendida.” Especialmente no início, quando você não está fazendo corretamente, isso acontece o tempo todo, você fica louco.
O sociólogo David Gaborieau, que coletou este depoimento, observou que essa direção por voz reduz drasticamente a capacidade do trabalhador de reapropriar seu tempo. Embora estratégias de subversão lúdica e pequenos atos de resistência tornem possível manter uma certa distância em relação a essa violenta desapropriação do próprio eu, as margens de autonomia individual e coletiva são extremamente limitadas.
Encarregados digitais
Desenvolvimentos na organização do trabalho em centrais de atendimento tem fornecido outro exemplo dos efeitos das inovações tecnológicas contemporâneas na organização do trabalho. Desde o início dos anos 2000, a gerência obteve um controle muito maior sobre a atividade dos funcionários de call center, como resultado da combinação do computador e do telefone.
Primeiramente, a automação significa que as horas de trabalho podem ser controladas de maneira muito mais próxima. Os trabalhadores fazem login ao iniciar seu dia de trabalho e fazem logout ao parar. Seus intervalos são automaticamente cronometrados. Assim como em relação aos atrasos, quaisquer intervalos excessivos são relatados diretamente ao supervisor.
Além disso, a computação permite registrar e processar uma ampla gama de dados sobre o desempenho individual, colocando informações quantitativas e descontextualizadas nas mãos dos gerentes, que são difíceis de serem contestadas pelos funcionários. Em segundo lugar, a introdução de programas de inteligência artificial nas centrais de atendimento está levando a uma intensificação ainda maior desse controle.
Estamos todos familiarizados com as mensagens dos departamentos de atendimento ao cliente informando que uma conversa pode ser gravada para fins de controle de qualidade. Esse é o caso de 1 a 2 por cento das chamadas. Mas a parceira da Microsoft, Sayint, agora oferece muito mais do que apenas verificações por amostragem: ela desenvolveu uma tecnologia com a qual “você pode ter certeza de que seus funcionários estão atendendo aos seus requisitos 100% do tempo.”
O software grava e analisa todas as conversas na íntegra. Os algoritmos se encarregam de garantir que as regras sejam seguidas, monitoram o sentimento que as duas partes transmitem em sua dicção e entonação, e atribuem uma pontuação a cada desempenho. Se um problema for detectado, ele é imediatamente reportado ao supervisor.
Assim, as máquinas são encarregadas de monitoramento, avaliação e, indiretamente, decisões que afetam os salários dos trabalhadores. Esse desenvolvimento abre um profundo abismo de questões para os sindicatos e apresenta armadilhas nas quais os departamentos de recursos humanos correm o risco de cair. De qualquer forma, isso nos distancia muito do sonho californiano de espaços de trabalho mais humanizados e confortáveis.
Paradoxos da inovação
Com sua noção de destruição criativa, o economista Joseph Schumpeter formulou uma das ideias econômicas mais influentes do século passado. Seguindo os passos de Marx e se opondo a abordagens baseadas em equilíbrio, ele insistiu que o dinamismo do capitalismo depende de um processo tumultuado de mudança nas estruturas econômicas: “o impulso fundamental que coloca e mantém a máquina capitalista em movimento vem dos novos bens de consumo, dos novos métodos de produção ou transporte, dos novos mercados, das novas formas de organização industrial que a empresa capitalista cria.”
A teoria do crescimento econômico que confere ao Vale do Silício sua fundamentação acadêmica, adotou esse conceito e o integrou em seus modelos. Seu credo: a inovação impulsiona o crescimento ao disseminar novas tecnologias e eliminar métodos obsoletos. No entanto, se considerarmos tal perspectiva, a trajetória do capitalismo hoje pode parecer apenas um paradoxo.
Por um lado positivo, vários exemplos do desenvolvimento de tecnologias digitais atestam uma proliferação de inovações e uma mudança multiforme e qualitativa nas maneiras como a produção, o consumo e a troca ocorrem. Em suma, há sinais de uma vitalidade renovada.
Por outro lado, no entanto, existem outras tendências: a desaceleração do crescimento do PIB e da produtividade, um aumento do peso morto da esfera financeira, a subutilização persistente da força de trabalho e, por último, mas não menos importante, uma rápida deterioração das condições ecológicas. Esses fenômenos, somados, apontam para um cenário de declínio.
Desde os anos 2000, as ideias de inovação e competição desempenharam um papel central nas políticas públicas destinadas a revitalizar estruturas produtivas consideradas cada vez mais obsoletas. Em certo sentido, essas políticas tiveram sucesso. Elas contribuíram para uma transformação qualitativa da paisagem tecnoeconômica.
As empresas emblemáticas da era digital estão liderando a lista global de capitalização de mercado, embora a maioria delas exista há menos de duas décadas — e estão ampliando sua vantagem sobre os antigos grandes nomes do século XX. Isso representa uma verdadeira mudança nesse grupo de elite, longamente dominado por um pequeno número de multinacionais. Mas o surpreendente é que essa disrupção tecno-organizacional não renovou o dinamismo do motor do capitalismo.
Criação destrutiva
Philippe Aghion, um dos economistas do crescimento mais proeminentes, admitiu isso, embora apenas de forma relutante. Em sua aula inaugural no Collège de France, ele observou, com base em dados padrão sobre patentes, que “estamos de fato vendo uma aceleração da inovação, não apenas em quantidade, mas também em qualidade.”
Ele prossegue perguntando: “Por que essa aceleração na inovação não se reflete no crescimento e na produtividade?” A resposta de Aghion foi que isso é “essencialmente um problema de medição,” ligado ao fato de que inovações, especialmente aquelas que resultam na criação de novos produtos, levam tempo para serem consideradas nas estatísticas.
A discussão técnica sobre a medição da produtividade e do crescimento levanta questões importantes. No entanto, em termos das questões de interesse aqui, ou seja, as dinâmicas do capitalismo contemporâneo, não há dúvida sobre essa tendência. Ao contrário do que Aghion sugere, o declínio não pode ser explicado em termos de um problema de medição. Reavaliar o impacto da inovação não mudaria nada: a produtividade e o crescimento estão desacelerando.
Ainda mais interessante, os estatísticos também apontam que muitos dos efeitos das inovações digitais não são capturados pela troca de mercado e pela contabilidade correspondente. Esse é, obviamente, o caso do Wikipedia, que reduz a produção de mercado ao substituir a produção de editoras de enciclopédias. Mas isso também é verdade para os serviços fornecidos pelo Google, redes sociais e muitos aplicativos que são apenas residualmente mercantilizados através da publicidade.
As receitas publicitárias são integradas ao cálculo da produção de mercado, como consumo intermediário pelos anunciantes, mas não há atribuição direta dos serviços prestados aos consumidores. Isso pode ser surpreendente, dado os grandes benefícios para os usuários. Mas os estatísticos estão corretos ao afirmar que “os ganhos na produção não mercantilizada parecem muito pequenos para compensar a perda no bem-estar geral decorrente da desaceleração do crescimento da produtividade no setor de mercado.”
O fato de que os efeitos mais poderosos e úteis da tecnologia digital escapam amplamente do controle da economia de mercado não deve ser subestimado. Isso é um dos sintomas da fragilidade do capitalismo contemporâneo.
Certamente, existem dificuldades conceituais e empíricas ao capturar a qualidade da atividade econômica dentro de um sistema de preços — embora isso seja crucial. Ainda assim, é evidente que a estagnação da década de 2010 não foi simplesmente um artefato estatístico que oculta o (suposto) real dinamismo da economia de mercado. O choque financeiro e macroeconômico da crise de 2008, a subutilização endêmica e o fardo da dívida em constante aumento foram todos sintomas de doenças mais profundas.
O refrão schumpeteriano pode aqui ser invertido, de modo que possamos falar de uma criação destrutiva. Pois os esforços para implementar o novo paradigma tecno-econômico são acompanhados por uma ruptura nas relações sociais características da fase anterior; e também estão tornando a dinâmica econômica mais frágil em termos da reprodução de suas condições materiais e políticas.
Cédric Durand é professor de economia política na Universidade de Genebra e membro do Centre d’Économie Paris Nord. Ele é autor de Capital Fictício: Como as Finanças Estão Apropriando Nosso Futuro e Como o Vale do Silício Liberou o Tecno-Feudalismo: A Criação da Economia Digital..