Decreto presidencial tornou escravidão ilegal na Mauritânia, mas não encerrou prática, que segue sendo denunciada
Guilherme Daroit
Uma das grandes chagas da humanidade, a escravização de pessoas passou a ser globalmente combatida na contemporaneidade. Abolida em praticamente todas as nações ao longo dos séculos XVIII e XIX, a criminalização da prática em todo o planeta, entretanto, só seria atingida em 1981. Naquele ano, um decreto presidencial na Mauritânia finalmente tornaria ilegal a escravidão no país africano, último do mundo a fazê-lo. A medida, porém, não encerraria a prática no país, que segue sendo denunciada até hoje.
Antiga colônia francesa, a Mauritânia teve sua primeira tentativa de encerramento da escravidão ainda em 1905. Naquele ano, a França declarara que aboliria a prática no país, decisão que nunca sairia do papel, sob a alegação de não interferência nos costumes e na economia local. Sob pressão dos donos de escravizados e com interesses econômicos em comum, a metrópole tornou-se tolerante com a prática no território. A Mauritânia só se tornaria independente em 1960.
Traço resistente da sociedade mauritana, a escravização responde a uma divisão racial da população. De pele mais clara, e por isso classificados como “mouros brancos”, o estrato árabe é dominante sobre os chamados “mouros negros”, parte do povo originário de outros locais da África. Ainda que ligados pela língua, religião e outros costumes, os grupos não possuem os mesmos lugares na hierarquia social. Os brancos, cerca de 30% da população, historicamente dominam a economia e a política no país, subjugando a parcela negra, que responde por cerca de 40% dos habitantes. A escravização, então, acontece dos últimos pelos primeiros, mesmo que não seja exclusiva – há casos também na outra parcela da sociedade, originária de povos subsaarianos e que responde pelos outros 30% da população do país.
Fruto de cobranças dos outros países sobre o governo mauritano, a escravidão seria, então, considerada ilegal apenas em 9 de novembro de 1981, com a edição de uma ordem presidencial. O país vivia um momento de ebulição, com seguidos golpes de estado e tentativas. Em julho de 1980, o então líder mauritano, coronel Mohamed Khouna, anunciara a decisão, que só se tornaria oficial com a ordem 81-234 no ano seguinte.
O decreto, todavia, era genérico, tornando ilegal a escravidão em seu primeiro artigo de maneira vaga, não caracterizando a prática. Em seu segundo artigo, estabelecia que houvesse compensação a quem perdesse a propriedade de escravos, a ser decidida por uma junta que, afinal, nunca foi constituída. Ao mesmo tempo, nenhum ato que versasse sobre a punição a quem a praticasse a escravização foi editado. Dessa forma, mesmo que acabada formalmente a escravidão na Mauritânia, a prática não seria realmente abolida.
Novo movimento do governo mauritano aconteceria só em 2007, já sob influência do crescimento político de forças abolicionistas internas. Naquele ano, o ato 2007-048, batizada de Lei da Escravidão, foi sancionado, tornando a prática, enfim, crime no país. A lei determinaria o que se entende por escravidão e situações análogas à escravidão, além de estabelecer penas de até 10 anos a quem cometer os crimes, além de prever ajuda e compensação às vítimas. Em 2015, nova lei sobre o tema dobrou as penas, além de criar um rito para o julgamento dos casos.
Mesmo assim, órgãos internacionais, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU e a Anistia Internacional, defendem que a medida não se tornou realmente efetiva, com poucos casos de condenação até hoje no país. O governo mauritano não calcula a escravização no país. O índice de escravidão global (GSI, na sigla em inglês) estima que haja cerca de 149 mil pessoas escravizadas ou sob situações análogas no país, o que representaria mais de 3% da população total.