3 de outubro de 1949: nasce Zé Ramalho, que eternizou música “Cidadão”

Canção composta por Lúcio Barbosa retrata conflituosa relação do trabalhador com sua produção.

Fotografia: Divulgação

Relação entre Trabalho e Propriedade na Sociedade Capitalista

Guilherme Daroit

Produzir mas quase nunca possuir. Por cima da velha máxima sobre a classe trabalhadora, a relação entre o trabalho e a propriedade, na sociedade capitalista, não é direta, obviamente. O trabalhador, afinal, mesmo que entregue sua vida ao feitio de algo, pode nunca ter acesso ao resultado de sua labuta. É essa relação conflituosa que perpassa a canção “Cidadão”, composta por Lúcio Barbosa no fim dos anos 1970 e gravada por diversos artistas, imortalizada na voz de Zé Ramalho, em 1992.

A Canção “Cidadão” e a Condição do Trabalhador

A Inspiração na Vida de um Pedreiro

Inspirado na vida de seu tio, pedreiro, Lúcio compôs um hino que trata da vida de um operário da construção civil, trabalho braçal pesado e destinado, quase sempre, às classes menos favorecidas. O personagem da canção, ao contar sua história, relembra a dificuldade na locomoção entre a residência, afastada, e o trabalho, como a construção de prédios altos e, implicitamente, localizados em áreas nobres.

O Trabalho e a Exclusão Social


Mesmo tendo ajudado a erguer o edifício citado na música, ao admirá-lo o personagem é confrontado pelo preconceito e desconfiança de quem acredita que, por estar observando o prédio que não lhe é do mesmo nível econômico, possa estar querendo assaltá-lo. Desolado, o trabalhador volta à casa, pensando em recorrer à bebida alcoólica como forma de superar a tristeza.

O Acesso Negado à Educação

A situação é a mesma quando a música se volta a um colégio, onde o personagem também comenta já ter trabalhado com tarefas de pedreiro. Mesmo assim, ao tentar matricular sua filha na escola, recebe a negativa alegando que crianças pobres não podem frequentá-la. A dor, nesse caso, é ainda mais aguda, e o personagem questiona suas decisões de vida.

O Contraste Entre Campo e Cidade

A Reflexão Sobre a Escolha de Vida

Retirante, parte do êxodo da metade Norte para a metade Sul do país no século XX, o trabalhador se dá conta de que talvez não tenha feito a melhor escolha. Ali, percebe que no campo, o pouco que produzia era seu, de fato. Ao passo que na cidade, com a economia capitalista desenvolvida, a alienação do trabalho já se apresenta, resultando nos conflitos que percebe em relação ao colégio e ao prédio nos quais trabalhou.

A Hierarquia Social e a Autoimagem do Trabalhador

A Reverência ao “Cidadão”

Outro traço marcante do poema, que inclusive lhe empresta o título, reside na reverência do pedreiro a seus interlocutores, indicando uma hierarquia social internalizada na sociedade. Ao relatar os casos nos quais se sente diminuído, o trabalhador refere-se aos demais como “cidadãos”, em situação que pode ser encarada como deferência aos mesmos, ao mesmo tempo em que sugere não se ver ele mesmo como tal.

A Igreja Como Único Refúgio


O Reconhecimento Negado Pelo Mundo e Pelas Divindades

Por fim, a música se encaminha para outra tarefa na qual o trabalhador reconhece como válida. Excluído, afinal, pela sociedade, o pedreiro defende o acolhimento que recebeu em uma igreja, na qual também trabalhou na construção. Ali, segundo o narrador, sua entrada não é negada, além de ser convidado às atividades. Ancorado na esfera espiritual, o pedreiro não esquece das suas percepções. Falando com Cristo, alude ao fato de que acreditar ter sido Deus quem construiu o mundo, tal qual ele construíra as edificações citadas anteriormente. Mesmo assim, nem aos entes superiores cristãos o reconhecimento pelo trabalho seria devido, uma vez que a humanidade, conforme avança em seu poder de transformação, também já não aceitaria a presença das divindades em suas vidas.

O Impacto e a Trajetória da Canção “Cidadão”

A Primeira Gravação de Zé Geraldo

Utilizada até hoje em atividades sindicais ou relacionadas ao mundo do trabalho, “Cidadão” foi gravada originalmente pelo cantor Zé Geraldo, em 1979, no disco Terceiro Mundo. Amigo de Lúcio Barbosa, Zé Geraldo se encantara pela força da canção e solicitou ao compositor que a concedesse a ele, na iminência do lançamento de seu primeiro disco por uma grande gravadora.

A Regravação de Zé Ramalho e a Popularização da Música

Em 1992, em seu disco Frevoador, outro Zé, esse Ramalho, regravaria a música, com versão que traria de vez notoriedade e alcance ao hino composto por Barbosa.

Cidadão

 

Tá vendo aquele edifício, moço?
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição
Era quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar

 

Hoje depois dele pronto
Olho pra cima e fico tonto
Mas me vem um cidadão
E me diz, desconfiado
Tu ‘tá aí admirado
Ou ‘tá querendo roubar?

 

Meu domingo ‘tá perdido
Vou pra casa entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar o meu tédio
Eu nem posso olhar pro prédio
Que eu ajudei a fazer

 

Tá vendo aquele colégio, moço?
Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Fiz a massa, pus cimento
Ajudei a rebocar

 

Minha filha inocente
Vem pra mim toda contente
Pai, vou me matricular
Mas me diz um cidadão
Criança de pé no chão
Aqui não pode estudar

 

Essa dor doeu mais forte
Por que é que eu deixei o norte?
Eu me pus a me dizer
Lá a seca castigava
Mas o pouco que eu plantava
Tinha direito a comer

 

Tá vendo aquela igreja, moço?
Onde o padre diz amém
Pus o sino e o badalo
Enchi minha mão de calo
Lá eu trabalhei também

 

Lá foi que valeu a pena
Tem quermesse, tem novena
E o padre me deixa entrar
Foi lá que Cristo me disse
Rapaz deixe de tolice
Não se deixe amedrontar

 

Fui eu quem criou a terra
Enchi o rio, fiz a serra
Não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asas
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar

 

Fui eu quem criou a terra
Enchi o rio, fiz a serra
Não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asas
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar

 

(Lúcio Barbosa)

 

 

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