Desembarque de 1,5 mil famílias na fazenda em Pontão (RS) marcou início da trajetória do
movimento, fundado um ano antes.
Guilherme Daroit
Dois anos de preparação para uma madrugada que mudaria a história da reforma agrária no Brasil. Vindos de mais de 30 municípios gaúchos, desviando da polícia enquanto procuravam sinais que indicassem o caminho, 1,5 mil famílias sem terra chegariam nas primeiras horas de 29 de outubro de 1985 à Fazenda Annoni, uma das maiores do Rio Grande do Sul. A ocupação, primeira da história do recém-fundado Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), resultaria em diversos assentamentos pelo estado, mostrando e abrindo os caminhos para o movimento campesino.
O MST era, então, um infante, mas já acumulava experiências. Fundado oficialmente um ano antes, em janeiro de 1984, ainda não havia realizado ocupações, porém continuava tradição na região Norte do Rio Grande do Sul. Em setembro de 1979, cerca de duas centenas de famílias haviam ocupado as granjas Macali e Brilhante, no município de Ronda Alta, em um dos primeiros atos que inspiraram a fundação do movimento. Desapropriada em 1962, ainda antes do Golpe Militar de 1964, a Fazenda Sarandi, que abarcava as duas granjas, só seria destinada à reforma agrária após a ocupação, em grande parte formada por pequenos produtores expulsos de terras indígenas e sem realocação por parte do governo.
Ali perto, nos anos seguintes outras famílias sem terra advindas do mesmo conflito montavam acampamento na chamada Encruzilhada Natalino, também em Ronda Alta. As barracas pela primeira vez na beira de uma rodovia, a RS-324, que levava às principais cidades da região, davam novo apelo à causa, tornando pública a falta de ação do governo estadual para a solução dos desalojamentos.
Em 1981, já eram mais de 500 as famílias acampadas quando a Ditadura Militar resolveria acabar com o movimento, que realizava atos cada vez maiores em denúncia à falta de assentamentos. Em agosto, a Encruzilhada Natalino foi decretada como área de segurança nacional, com o envio do Exército para a região. Entre os militares, desembarcaria o major Sebastião Rodrigues Moura, conhecido como Curió, responsável anteriormente pelo combate à Guerrilha do Araguaia (pelo qual acabaria denunciado por homicídio e ocultação de cadáveres).
Após torturas e cercos à movimentação e à chegada de suprimentos às famílias, os militares tentariam forçar a ida dos agricultores a projetos de colonização em outras regiões do Brasil, com prazos para a demolição forçada do acampamento. Várias aceitariam a saída, mas cerca de 300 resistiriam e ficariam no local, exigindo assentamento no próprio estado gaúcho. O fim do cerco chegaria com a publicidade do que acontecia no local durante a estadia de Curió. No ano seguinte, a Igreja Católica compraria terras nas proximidades para alocar temporariamente as famílias, até que, em 1983, o governo finalmente assentaria os sem terra originadas da Natalino.
Era esse o caldo que originaria o MST, em 1984, e também inspiraria novas ocupações. A escolha pela Fazenda Annoni, localizada em áreas até então pertencentes ao município de Sarandi, não seria tão difícil. Uma das maiores fazendas em solo gaúcho, com 9,3 mil hectares e distante cerca de 15 km da Encruzilhada Natalino, a área era objeto de disputa entre governo e proprietários. Desapropriada em 1972 para o assentamento de atingidos pela construção da hidrelétrica de Passo Real, no município de Salto do Jacuí, o processo se transformara em um imbróglio judicial.
Para evitar a tomada pelo governo, os fazendeiros dividiriam a área, entregando-a em partes aos seus herdeiros, além de conseguirem o reconhecimento da estância como empresa rural, o que impedia a desapropriação. A longa disputa enquanto restava improdutiva faria da fazenda alvo das famílias expulsas do campo. Eram frequentes as tentativas de ocupação isoladas, a ponto de ser permanente a presença de policiais e seguranças na entrada da Annoni.
Para que a ocupação desse certo, portanto, o plano não poderia ser apressado. Foram mais de dois anos de preparação, e pelo menos três dias de organização dos horários de saída e rotas das caravanas. Um dos apoiadores das ocupações anteriores, o padre Arnildo Fritzen, auxiliaria também na tomada da Annoni.
Ao todo, chegariam quase juntos à fazenda os seis mil trabalhadores rurais sem terra convocados à missão, em grande parte expulsos do campo quando as famílias, numerosas, precisavam distribuir entre si os pequenos lotes de seus pais. Em cada caravana, comissões eram responsáveis por atividades específicas, como alimentação, saúde, segurança, liturgia, educação, entre outros, em estrutura que se manteria no futuro.
Os primeiros agricultores se acercariam, então, por volta das 2h, driblando a polícia para cortar os arames e entrar na Annoni. A maioria chegaria já com o sol nascente, seguindo todo tipo de traços deixados pela estrada para indicar a localização da entrada, além de sinais como piscadas sincronizadas de faróis entre ônibus e caminhões para indicar quem estava participando da atividade. Sem preparo para tamanha multidão, a segurança do local não resistiria, e os sem terra conseguiriam adentrar a fazenda.
Uma vez dentro da Annoni, os primeiros momentos não seriam mais simples. No mesmo dia a polícia cercaria a área, dificultando acesso e comunicação dos agricultores com o exterior. O cotidiano era de carestia. Um acordo no ano seguinte entre MST e governo gaúcho determinaria que as famílias poderiam ficar na área, mas sem permissão para plantar ou produzir, assim como já acontecia com os desalojados pela hidrelétrica de Passo Real.
A situação levaria a grandes manifestações por parte do MST e das famílias que faziam parte da ocupação. Uma marcha a pé da Annoni até Porto Alegre, um acampamento por semanas na Assembleia Legislativa e um protesto com centenas de pessoas deitadas em frente à Catedral da capital denunciariam a morosidade do governo. A ebulição causada pela tomada da Annoni incentivaria outras ocupações pelo Rio Grande do Sul e pelo Brasil.
Na Annoni, porém, a precariedade tomava conta. O solo, sem uso e tomado por um tipo de capim trazido do Exterior, estava degenerado, sem fertilidade. O crédito agrícola não existia, e, aos poucos, a produção ia sendo tentada, ainda voltada a subsistência. A alimentação, por um longo período, dependia de apoio externo, e a educação externa também não era fácil. Sem estradas e distante das sedes municipais, nem todas as crianças eram mandadas às escolas públicas.
Logo, perceberia-se também que nem todos poderiam ficar na região. Mesmo gigantesca para os padrões gaúchos, a fazenda não comportaria todas as famílias. Já em 1986 uma primeira leva de agricultores deixaria a área, sendo assentadas na Fazenda São Pedro, em Eldorado do Sul.
Na Annoni, o assentamento aconteceria em etapas. Primeiro, os atingidos pela hidrelétrica de Passo Real, que lá já estavam. Depois, em um segundo momento, o primeiro aceno à ocupação, com quase 200 famílias indicadas pelo MST recebendo a posse de suas terras. O assentamento se seguiria com as famílias que já moravam na Annoni anteriormente, em geral ex-funcionários da fazenda e, no fim dos anos 1980, outro acordo do MST com o governo federal entregaria a terra a mais duas centenas de famílias do movimento. O processo se encerraria na virada de 1992 para 1993, com os últimos assentamentos ligados ao MST, e o direcionamento das famílias restantes a outras partes do estado.
A chegada dos agricultores ainda resultaria na emancipação da localidade onde ficava a Fazenda Annoni. Com o aumento populacional, Pontão se separaria de Sarandi, tornando-se município em 1992, praticamente junto com a definição dos assentamentos.
Com o tempo, a situação do terreno também seria contornada, e o cenário de dificuldades se tornaria mais próspero. O terreno da Annoni seria dividido em sete áreas, onde residem até hoje praticamente todas as cerca de 450 famílias que receberam seus quinhões de terra em Pontão. Em praticamente todas há escolas públicas dentro dos assentamentos, além da oferta de curso superior em Agronomia e técnico em agroecologia dentro da antiga Annoni, mantidos por meio do Instituto Educar, criado em 2005.
Nas áreas, existem ainda duas cooperativas. A maior delas, a Cooperativa Agropecuária e Laticínios Pontão (Coperlat), fundada nos anos 2000 para processar a produção de leite dos assentados, com cerca de 100 produtores ativos. Mais antiga, a Cooperativa de Produção Agropecuária Cascata (Cooptar), criada ainda em 1990, possui um número menor de famílias, abatendo animais para a produção de embutidos e cortes de carne. Outra grande gama de assentados atua de maneira individual, produzindo alimentos para subsistência e venda no mercado.