Documento da incipiente República facilitaria vinda de agricultores europeus, com incentivos do Estado.

Guilherme Daroit
Pouco mais de dois anos após a Abolição da Escravatura, realizada apenas em 1888, o Brasil tomaria outra decisão que afetaria a questão da mão de obra no país. Recém-proclamada, a jovem República optaria pela atração de imigrantes voluntários, mas limitaria as benesses apenas aos cidadãos dos países ocidentais. Chamada de Lei Glicério, o decreto 528 de 1890 facilitaria a entrada de europeus, subsidiando passagens e concedendo benefícios a quem os trouxesse ou empregasse, embranquecendo as lavouras e as zonas de colonização do país.
Mesmo antes da Lei Áurea, que finalmente extinguiria a escravidão no Brasil, depois de todos os países ocidentais, as elites econômica e política nacionais já se preparavam para a substituição da mão de obra nas lavouras. Ao longo de todo o século XIX, diversas tentativas estatais de atração de imigrantes brancos aconteceriam. Bem-sucedidas nas tarefas de colonização, as políticas, entretanto, não teriam sucesso na recomposição da força de trabalho necessária para as lavouras de café, então a principal atividade econômica brasileira, fundada no trabalho de escravizados.
Já com a República proclamada, então, o governo provisório buscaria regulamentar a entrada dos imigrantes. A tarefa caberia ao republicano paulista Francisco Glicério, que havia assumido o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas após uma das primeiras crises republicanas, que culminaria na saída do gaúcho Demétrio Ribeiro da pasta. Glicério emprestaria, então, seu nome ao decreto que sustentaria a visão de um Brasil de portas abertas, ainda que não para todos.
Já em seu primeiro artigo, o decreto deixa clara a restrição. O texto determina que é inteiramente livre a entrada nos portos apenas daqueles desejados pelo Estado brasileiro: válidos e aptos ao trabalho, que não fossem originários da Ásia ou da África. Quanto a estes, as ações também estavam previstas. As embaixadas e consulados deveriam atuar para que não viessem, mas, caso chegassem ao Brasil, caberia à polícia dos portos impedir o desembarque, assim como o de “mendigos e indigentes”.
Além disso, o governo provisório brasileiro determinava que pagaria em parte ou integralmente as passagens de navio dos imigrantes, novamente limitando o incentivo a grupos específicos. Nesse caso, o benefício estava restrito a famílias numerosas de agricultores, ou homens solteiros, trabalhadores agrícolas, artesãos e operários mecânicos industriais, desde que entre os 18 e 50 anos. A limitação ficava ainda mais evidente no artigo 6º, que estabelecia que enfermos e pessoas com deficiência só seriam aceitas se fizessem parte de família com pelo menos duas pessoas ditas “válidas”, aquelas aptas ao trabalho.
Caberia à Inspetoria Geral das Terras e Colonização comunicar os imigrantes das oportunidades no país, além de acompanhar sua adaptação por seis meses.
Para além dos imigrantes, entretanto, outros incentivos seriam concedidos pelo Brasil. O primeiro deles, para as companhias marítimas. As companhias receberiam 120 francos pagos por imigrante trazido nas condições determinadas e fariam jus a um bônus de 100 mil francos caso transportassem mais de 10 mil pessoas em um mesmo ano.
Além disso, o governo republicano estabelecia bônus aos proprietários de terras que cedessem lotes às famílias estrangeiras. Como forma de viabilizar a infraestrutura pública necessária, os prêmios compreendiam 450 réis por família, 1,5 mil réis por quilômetro de estrada que ligasse a propriedade à via férrea, e mais 800 réis para ruas internas, caso algumas regras fossem seguidas. Ao fim da adaptação dos estrangeiros, os fazendeiros receberiam premiação de 5 mil réis a cada 100 famílias colocadas.
As fazendas, que deviam ter pelo menos 300 hectares já cultivados, ou 500 hectares, caso não fossem trabalhadas, teriam de ser divididas em lotes de no mínimo cinco hectares que seriam vendidos aos imigrantes em pagamentos anuais, por pelo menos dez anos, com juros de no máximo 9% ao ano. Nos primeiros nove meses, período estipulado até que as primeiras plantações gerassem frutos, caberia aos proprietários prover máquinas e sementes, além de alimentos para a subsistência dos imigrantes.
A disciplina tinha como objetivo não repetir experiências anteriores, como a atração de alemães e suíços para as lavouras de café na década de 1840. À época, enganados quanto às condições de seu trabalho e ao tamanho das taxas que seriam cobrados, os europeus acabariam praticamente escravizados por dívidas, situação que faria com que governos proibissem a imigração para o Brasil. Nessa linha, o decreto também determinava que, caso descumprissem promessas com os imigrantes, os fazendeiros seriam obrigados a fazê-lo por meios legais, além de ficarem proibidos de receber novas famílias por período de até dois anos. Dois anos depois, em outubro de 1892, uma nova lei liberaria a entrada no país de imigrantes chineses e japoneses, revertendo parte do decreto que proibia a chegada de asiáticos. No primeiro período republicano, até 1930, o Brasil receberia cerca de 3 a 4 milhões de imigrantes.
Guilherme Daroit é jornalista e bacharel em Ciências Econômicas, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é diretor do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região.