Entre as principais canções brasileiras, música usa diversos elementos para descrever situação dos trabalhadores.

Guilherme Daroit
Monótona, repetitiva, e em certa medida, confusa. A sensação causada pela primeira audição da música Construção, de Chico Buarque, é, quase invariavelmente, o retrato da ideia sobre o cotidiano de um trabalhador braçal nos anos 1970, época de seu lançamento. Objetivamente um relato do dia de morte de um operário da construção civil, o compositor, todavia, utiliza de estilo único que expande a compreensão da letra. Com refinados jogos poéticos e rítmicos, a canção permite diversas interpretações acerca do trabalho e da vida dos trabalhadores, que a transformaram em um dos grandes ícones da Música Popular Brasileira (MPB).
Em sua primeira parte, a letra é distribuída em quatro atos. No primeiro deles, o trabalhador se despede de sua família, saindo, depois, para o trabalho. No segundo momento, já no local, se revela sua condição com a descrição de sua profissão, erguendo paredes enquanto seu rosto mistura suor e lágrimas. Já no terceiro, há o relato de um intervalo, em que o operário almoça, bebe e se diverte, até ficar trôpego. Por fim, no último ato, aparece a tragédia, na qual o operário enfrenta uma queda do alto da obra até estatelar-se no meio da rua, onde acabaria morto.
Para além do enredo, entretanto, a composição se engrandece com as opções líricas e musicais de Chico Buarque. Artifício mais famoso da canção, todos os versos são dodecassílabos e terminados em proparoxítonas, marcando a cadência e a repetitividade do tema. A sílaba tônica antecipada em relação ao fim do verso marca, em todas as frases, uma queda na entonação, podendo ser vista como uma representação rítmica também da queda do trabalhador, ápice da história.
Após a revelação do trágico fim do personagem, a segunda e a terceira partes da música se tornam mais confusas. Repetindo os versos iniciais, a composição troca as proparoxítonas de cada frase, dando aos textos outras interpretações. Ao mesmo tempo, a parte instrumental, inicialmente fundamentada em dois acordes e na marcação de sons específicos, como quando sugere o barulho de buzinas para demonstração do trânsito, torna-se completamente confusa e irregular, completando o cenário de desordem.
Quanto ao trabalhador, as sugestões são variadas. Por um lado, levanta o cotidiano simples e modesto dos operários, que se dedicava à família e ao trabalho, não possuía descanso que não fosse nos finais de semana, e não possuía luxos – o simples feijão com arroz já era visto como algo especial. A vida difícil poderia justificar a despedida antecipada dos entes queridos, a catarse com bebidas e danças no expediente, e o provavelmente premeditado desfecho desastroso de sua existência. Finalmente, de maneira mais clara, Construção demonstra o destino da classe trabalhadora. Seu sofrimento e sua morte, afinal, são notados apenas pelo caos causado ao trânsito; sua existência, até o fim um estorvo.
O último movimento da canção viria da repetição de partes de outra música, “Deus lhe pague”, do mesmo álbum também intitulado Construção. Nas três estrofes repescadas, o narrador indica o agradecimento pela existência, mesmo das situações pouco desejadas e, por fim, pela morte e pelo desaparecimento, que enfim trariam a paz e a redenção. Acoplada com a história do personagem operário, a repetição indica, assim, a resignação com sua condição, e a liberdade que só lhe chega com o fim da vida.
Lançado em 1971, no auge da Ditadura Militar brasileira e após a volta de Chico Buarque do autoexílio, o álbum Construção é um marco do cancioneiro nacional. O disco marca a fase mais crítica do compositor, mesmo com a censura ativa na época de sua publicação. Tanto o álbum quanto a música Construção são até hoje presenças frequentes nas listas de melhores obras brasileiras.
Construção (Chico Buarque)
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça desgraça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague
Ouça Construção:
Guilherme Daroit é jornalista e bacharel em Ciências Econômicas, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é diretor do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região.