Chamada de “Lei Bosman”, decisão judicial a favor de atleta belga facilitaria movimentação de jogadores no continente, alterando esporte global.
Guilherme Daroit
A liberdade de movimentação dos trabalhadores, vigente na Europa em diferentes escalas ao longo do século XX, chegaria ao mundo do futebol apenas na década de 1990. Até então proibidos, em diversos países, de trocarem de clube mesmo quando sem contrato, os futebolistas profissionais europeus ganhariam o direito graças a processo judicial movido pelo belga Jean-Marc Bosman, em 1995. A decisão, conhecida como “Lei Bosman”, alteraria todo o regramento de transferências do esporte, então ainda em fase inicial de sua globalização.
Mais famoso por seu processo do que por sua carreira, Bosman não era um grande ícone do futebol europeu. Nascido em Liége, foi revelado pelo grande clube da cidade, o Standard, antes de migrar para o RFC Liége, à época disputando a primeira divisão belga. Em 1990, após dois anos sem sucesso no segundo clube da cidade valona e já sem contrato, o meia tentaria se transferir para o francês USL Dunquerque.
À época, a balança da relação de trabalho entre clubes e jogadores, na maioria dos países, pendia muito mais para os empregadores. Mesmo sem contrato vigente, os atletas não eram livres, pois o clube que desejasse contratá-los deveria acertar um valor de transferência com o antigo clube.
Na Bélgica, caso o acordo não acontecesse, o clube anterior era obrigado a oferecer um novo contrato ao jogador. No caso de Bosman, o time francês não aceitaria o pedido do RFC Liége, encerrando a tentativa de movimentação. O clube belga, por sua vez, ofereceria um novo contrato para o meia com um salário reduzido em 70%, alegando que não o utilizaria mais em seu time principal. Incomodado com a situação, Bosman então levaria o caso para os tribunais europeus, que cinco anos depois lhe dariam ganho de causa baseados nos tratados que dão base à União Europeia.
A decisão modificou profunda e rapidamente o futebol europeu e, na sequência, todo o futebol mundial. A primeira alteração foi o banimento das multas para jogadores sem contrato que, pela primeira vez, seriam livres para escolher o seu destino. Inicialmente, a liberdade só acontecia nas transferências entre países da União Europeia, sustentada em artigo do Tratado de Roma que proibia restrições à livre movimentação de trabalhadores entre as nações signatárias. Nos anos seguintes, a medida seria adotada pelo órgão máximo do futebol, a Fifa, e seguida por outros países, universalizando a movimentação livre de jogadores sem contrato.
A justiça europeia também negaria, no caso Bosman, as restrições então existentes para jogadores estrangeiros na Europa. Até 1995, a maioria das ligas de países da União Europeia ainda possuía restrições para quaisquer estrangeiros. O campeonato europeu de clubes, hoje Liga dos Campeões, por exemplo, permitia apenas três estrangeiros em cada time (além de dois adicionais, caso fossem da base do clube). Pelo mesmo princípio da livre movimentação de trabalhadores, os tribunais determinariam que esse tipo de restrição não poderia mais ser aplicado a atletas de países da União Europeia, tornando-os todos iguais em termos de nacionalidade naquelas nações.
Ambas as interpretações acelerariam as mudanças que começavam a se ensaiar no futebol mundial. Primeiro, com a possibilidade de trocar de clube de graça ao fim do contrato, o poder nas negociações migraria dos empregadores para os atletas, que passariam a demandar maiores salários e bônus. Já em 1996, na primeira janela de transferências com as novas regras, jogadores com muito mais renome do que Bosman se valeriam da possibilidade. Campeão europeu com o Ajax, o volante holandês Edgar Davids seria o primeiro atleta famoso a utilizar as regras de Bosman para se transferir de graça para a Juventus, da Itália.
Por outro lado, sem contar mais como estrangeiros, os jogadores europeus se espalhariam pelos países do bloco. Além disso, as vagas de estrangeiros até então ocupadas por eles passariam a ser destinadas a futebolistas de outras regiões, como o leste europeu, a África e a América do Sul, transformando os times em seleções de diversos países. Já em 1999, por exemplo, o Chelsea, de Londres, seria o primeiro time inglês a entrar em campo sem nenhum jogador do próprio país.
Em 2003, a justiça europeia também expandiria sua interpretação, em decisão batizada de “Lei Kolpak”. A decisão, proferida em caso movido pelo jogador eslovaco de handebol Maros Kolpak, estendeu a liberdade de movimentação para todos os esportes e para todos os países signatários de pelo menos um acordo de associação com a União Europeia.
Ainda que tenha alterado o paradigma dos esportes no mundo, Bosman, por sua vez, nunca se beneficiou financeiramente da decisão. Marcado pelo caso, só atuou novamente por pequenos clubes na Bélgica e na França, praticamente encerrando sua carreira competitiva.