Ato final da República Nova reuniu 200 mil trabalhadores em defesa das reformas de base.

Guilherme Daroit
O clima político já era turbulento no Brasil quando mais de 200 mil trabalhadores conclamaram um comício no Rio de Janeiro, em março de 1964. Organizado pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), órgão central do sindicalismo nacional, o ato em frente à Central do Brasil marcaria a última cartada do governo João Goulart, às voltas com a oposição de setores dominantes da economia e deserções em sua base de governo. Naquela noite, aos trabalhadores, Jango anunciaria o início da reforma agrária no Brasil, além de indicar o avanço nas reformas urbana e eleitoral, que seriam interrompidas semanas depois com o golpe militar.
O Comício das Reformas, como também ficou conhecido, era planejado desde janeiro, e seria o primeiro de uma série de atos que aconteceriam em diversas regiões do país. Com os atos, o governo, apoiado pelos sindicalistas, pretendia demonstrar ao Congresso o apoio popular às propostas de reforma no Brasil, escolhidas como a principal bandeira de Jango. Outros encontros aconteceriam em Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife, e culminariam com um grande comício em São Paulo, no Dia do Trabalhador.
Para o ato na Central do Brasil, a convocação foi distribuída ainda em fevereiro de 1964, convocando trabalhadores do campo e da cidade, estudantes e intelectuais. Ao todo, de 200 mil a 300 mil pessoas compareceriam à Praça da República, no Rio de Janeiro, para ouvir o discurso de João Goulart, que apostava na mobilização popular para levar à frente os projetos, tendo perdido grande parte do apoio legislativo nos meses anteriores. Também participariam do evento nomes como o ex-governador gaúcho Leonel Brizola, provável candidato à sucessão de Jango, o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, e o secretário-geral do Partido Comunista, Luís Carlos Prestes, demonstrando o arco de alianças que sustentava Jango naquele momento.
Tendo adotado como bandeira a profunda reforma no país, João Goulart já despertava a contraposição de empresários, proprietários e oficiais, entre outros setores da sociedade. Ao longo da organização do comício, esses setores e a oposição tentariam evitar que o ato acontecesse, criando dificuldades no trânsito e campanhas contra o comparecimento. Na madrugada do dia 13, o palco sofreria ainda uma tentativa de incêndio, e haveria relatos de ameaças de ataques a tiros no comício.
Mesmo assim, Jango subiria ao palco ao lado da primeira-dama, Maria Thereza, e, em seu discurso, oficializaria duas medidas. A primeira delas dizia respeito à nacionalização das cinco refinarias particulares que existiam no Brasil, a partir daquele momento encampadas para o patrimônio da Petrobras.
O segundo ato anunciado no evento, entretanto, seria mais marcante. O Decreto nº 53.700, daquele mesmo dia, ficaria conhecido também como Decreto da Supra (Superintendência da Reforma Agrária), órgão criado por Goulart dois anos antes para encaminhar a redistribuição de terras no campo. Em seu discurso, Jango argumentaria ainda não ser “a carta de alforria do camponês abandonado”, mas o primeiro passo para a solução do problema agrário.
Pelo decreto, seriam desapropriadas as áreas rurais em um raio de dez quilômetros das rodovias e ferrovias federais, além das terras recuperadas pelos investimentos da União em obras de drenagem e irrigação, resguardadas as propriedades que não chegassem a 500 hectares. As áreas desapropriadas seriam repartidas em lotes de no máximo 100 hectares, e preferencialmente vendidas em pagamentos por 20 anos para as famílias campesinas que não possuíam propriedade, com prioridade para as mais numerosas, de maior experiência e radicadas na própria região do terreno.
Jango sustentaria, em seu pronunciamento, que aquela não era ainda a reforma agrária desejada, pois a desapropriação pressupunha o pagamento à vista aos latifundiários. A sua ideia, seguindo exemplos de outros países do mundo, consistia na compra com títulos públicos, com pagamentos ao longo do tempo, sem desembolso de recursos imediatos, projeto que demandaria mudanças constitucionais. O presidente também defendera que a reforma agrária faria bem para os empresários, pois aumentaria a produção e reduziria o preço dos produtos agropecuários no país.
Além das desapropriações, Goulart também indicaria, no comício, o andamento das reformas eleitoral (permitindo o voto a analfabetos e militares de baixa patente) e universitária (encerrando a prática das cátedras). Mais diretamente, o presidente anunciaria ainda um decreto regulamentando o preço dos aluguéis urbanos, disciplinando os preços e proibindo os contratos em dólares, preparando o terreno para a reforma urbana que fazia parte do projeto de mudanças de seu governo.
A força e as bandeiras do Comício da Central repercutiram em todo o País já a partir do dia seguinte. Sustentados no medo de uma ameaça comunista por conta das reformas de base, a oposição e setores conservadores organizariam atos para contrapor o comício, as chamadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. A primeira passeata aconteceria já em 19 de março, em São Paulo, com cerca de 300 mil pessoas, e destravaria uma série de outras caminhadas pelo Brasil nos dias seguintes. Em 1º de abril, menos de 20 dias após o Comício da Central, Jango seria deposto por um golpe militar.