Voto: um direito fundamental também do trabalhador e da trabalhadora

O que os empregadores estão dizendo, sem nenhum compromisso com respeito a direitos, é que continuarão fazendo o “favor” aos trabalhadores de lhes manterem empregados, mas só se estes lhes entregarem além do trabalho também a sua consciência

Jorge Luiz Souto Maior

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 05/10/2018

Há uma concepção deturpada, mas que está arraigada à experiência cultural, social, política e econômica do país, desenvolvida e reproduzida há longa data, de que as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros não são detentores de direitos; que os limites à exploração de seu trabalho, fixados em lei, são favores que lhe foram ofertados pelo Estado, em uma atuação combinada com os interesses dos patrões. Dentro dessa concepção, as intensas lutas implementadas pelos trabalhadores por melhores condições de trabalho são apagadas dos registros históricos, evitando-se, inclusive, que se integrem à memória nacional e da própria classe trabalhadora.

Com isso, o desrespeito aos padrões de comportamento impostos por lei aos empregadores sequer é concebido como uma ilegalidade. Descumprir a lei é um ato ilícito, mas não se for a lei trabalhista, que é não só descumprida como afrontada, abertamente, por uma grande parte de empregadores.

Traduzindo um misto de escravismo com liberalismo cínico, as relações de trabalho no Brasil, que se apresentam, quando é conveniente, como contratuais, se desenvolvem, concretamente, dentro de uma lógica que é ao mesmo tempo de submissão e concessão de favores.

É por isso, aliás, que não se concebe que os trabalhadores e trabalhadoras se organizem livremente em sindicatos, que realizem greves, ou que uma instituição estatal exerça o papel de impor coercitivamente o cumprimento das leis trabalhistas.

Esse modo de conceber as relações de trabalho na realidade brasileira, que, inclusive, foi explicitado, com todas as letras, nos argumentos em defesa da “reforma” trabalhista, nega aos trabalhadores e trabalhadoras a condição de cidadãos e cidadãs. Isso precisa ser reafirmado nas ocasiões em que a ordem jurídica garante aos trabalhadores o exercício de um direito político, nas eleições, para que não se tenha uma percepção de igualdade, nem mesmo neste instrumento restrito, do voto.

Nessas ocasiões, então, muitos empregadores querem ir além e exercer um domínio pleno sobre o “seu” empregado, negando-lhe, inclusive, a liberdade de consciência e de expressão, assim como o seu direito político.

Foi assim que, em 2002, formou-se um movimento de grandes empresas que exigiram trabalho em longas jornadas no dia destinado à eleição, de modo a dificultar o acesso dos trabalhadores às urnas. Não por acaso, no dia 06 de outubro de 2002, muitos foram os casos de atraso nas votações, com a formação de longas filas e grande tempo de espera.

Em 2014, mais precisamente nos dias 05 e 26 de outubro, a situação se repetiu, tanto que é fácil encontrar decisões na Justiça do Trabalho tratando do trabalho em dia de eleição (Processos 0010697-80.2015.5.15.0012; 0010506-35.2015.5.15.0012; 0010566-21.2015.5.15.0137).

Em março de 2016, uma grande rede obrigou os seus empregados a participarem de uma campanha em favor do impedimento da Presidente da República, o que, também, gerou atuação da Justiça do Trabalho, conforme consta do Processo 0010460-31.2016.5.15.0038.

Mas a jurisprudência não foi eficiente para coibir tais práticas abusivas, vez que reduziu a discussão ao direito do trabalhador receber, ou não, a dobra remuneratória pelo trabalho no dia da eleição, debatendo se este dia seria um feriado e não enfrentando, pois, a questão de fundo relativa ao direito à cidadania, ou seja, o direito ao voto.

Com isso, o que se vê, agora, é o aprofundamento da mesma lógica e, sem quaisquer limites, certos empregadores estão expressando, aberta e orgulhosamente, em eventos midiáticos, seu poder sobre os trabalhadores, ameaçando-os, dos mais variados modos, para que votem em um determinado sentido. Mas sob nenhum pretexto se pode admitir que as instituições ou o poder econômico interfira, mediante ameaça, no direito político mínimo que é o voto.

Agindo desse modo, os empregadores não estão exercendo a sua liberdade de expressão, destinada ao convencimento, ou, meramente, expondo uma constatação de ordem econômica, como se possa querer acreditar. O ato significa uma ameaça pela qual se busca, no fundo, o domínio da consciência dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, representa um atentado ao Estado Democrático de Direito, definido no artigo 1º da Constituição Federal. Este Estado se fundamenta na cidadania (inciso II) e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV). Ora, só se exerce efetiva cidadania com o livre exercício do voto. O voto, aliás, configura-se como a forma de preservação da “soberania popular” (art. 14, da CF). Além disso, nos termos dos dispositivos citados, a livre iniciativa deve preservar valores sociais e o exercício da cidadania, evidentemente, é um deles.

Na essência, reproduzindo a mesma lógica de sempre, o que esses empregadores estão dizendo, sem nenhum compromisso com respeito a direitos, é que continuarão fazendo o “favor” aos trabalhadores de lhes manterem empregados, mas só se estes lhes entregarem além do trabalho também a sua consciência.

É fácil perceber isso quando se verifica o teor dos “argumentos” apresentados, que fazem questão de apontar para a possibilidade da perda dos empregos ou que oferecem a benesse de um dia de folga caso o candidato escolhido pelo patrão vença. Não é uma constatação econômica (até porque desprovida de qualquer dado empírico), é, isto sim, uma ameaça, no primeiro caso, ou, uma “compra indireta” do voto, no segundo.

Não se trata de qualquer tipo de integração dos trabalhadores à empresa, mas do ato de tirar proveito da fragilidade dos empregados para que estes reproduzam os interesses que são próprios do patrão, ainda mais quando se lembra da precariedade jurídica em que os trabalhadores se encontram nessa relação, sobretudo diante do advento da denominada “reforma” trabalhista, que foi, aliás, aprovada com o enorme apoio desses mesmos empregadores.

Estão, inclusive, confessando a inexistência de boa-fé, de sua parte, nessa relação, pois condicionam a preservação do vínculo à prática de um ato dos trabalhadores que é invasivo da privacidade destes, sendo esta um direito fundamental irrenunciável (art. 11 do Código Civil). Ou seja, na perspectiva desses empregadores, o que mantém a relação de emprego não é uma lógica contratual, de pessoas iguais e livres, que se vinculam para uma troca de mercadorias (força de trabalho e salário), mas o estado de submissão e sujeição pessoal do trabalhador, não tendo o menor pudor em romper a relação e conduzir os empregados ao estágio da extrema necessidade pelo mero fato de que um interesse particular seu, alheio ao vínculo jurídico, não seja satisfeito.

Fosse diferente disso, esses empregadores não garantiriam aos trabalhadores apenas a sua não remessa (como se arremessam coisas) ao desemprego. Apontariam para uma efetiva integração, com estabilidade no emprego; co-gestão; redução da jornada de trabalho; aumento de salário; preservação e respeito de todos os direitos trabalhistas constitucionalmente consagrados; recusa das formas precárias de vinculação previstas na “reforma” trabalhista; rechaço da terceirização e do trabalho intermitente; favorecimento à organização sindical; respeito ao direito de greve etc.

Se não é isso o que estão propondo, o que se tem, então, é meramente o aprofundamento da lógica de exploração, chegando ao ponto culminante de se extrair do trabalhador não apenas o seu trabalho, mas também, em uma sociedade sem direitos, o que se poderia conceber como o último reduto do ser político do trabalhador, o seu voto!

As instituições democráticas devem reagir a isso, evidentemente, com a necessária eficácia e urgência, pois desse atentado ao Estado de Direito resultam danos de natureza pessoal, social e política.

Jorge Luiz Souto Maior é desembargador no TRT-15 e Professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP).

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