Um setor infectado: propostas para as doenças do sistema agroalimentar

Fotografia: MPT-RS/Flickr

Altíssima densidade humana em frigoríficos, para aumentar produção, ajudou a espalhar covid-19. Mas substituir trabalhadores não resolverá. Reduzir o perigo à saúde exige diminuir consumo de animais e fazer transformação profunda no sistema.

Ricardo Abramovay

Fonte: Uol
Data original da publicação: 05/06/2020

De todas as mudanças que a atual pandemia vai trazer para a vida social, a mais urgente e difícil de ser enfrentada refere-se a nossos hábitos alimentares e, particularmente, ao consumo de carne. É um setor que se apoia na densidade de pessoas que operam o abate e o processamento dos animais. E, também, na densidade dos animais nas fazendas e granjas, em espaços cada vez menores.

Essas duas densidades articulam-se organicamente. As fábricas se rentabilizam à medida que aumentam sua capacidade de processamento de animais, abatidos em unidades cada vez maiores. O número de porcos criados, nos Estados Unidos, em fazendas com mais de cinco mil animais, passou de 5% em 1982 para 73% em 2017.

O processamento da carne é feito em fábricas caracterizadas pelo ambiente frio, fechado e pela proximidade que os trabalhadores guardam entre si, para que a linha de produção possa avançar com rapidez. Nos anos 1970, uma fábrica padrão processava 3.000 frangos por hora. Em 1980, o total passa a processar 8.000 animais, chegando hoje a 15 mil aves por hora.

A aceleração da linha produtiva diminui a distância entre os trabalhadores. Não é por outra razão que, não só nos Estados Unidos, mas também na Austrália, Irlanda, Alemanha, Espanha, França, no Canadá e também no Brasil, as localidades campeãs em casos de covid-19 são aquelas dominadas por frigoríficos. No Rio Grande do Sul, um terço dos infectados têm vínculos com os frigoríficos.

Na Europa, a maior parte dos trabalhadores do setor são imigrantes do Leste, pessoas que, muitas vezes, nem falam o idioma do país em que se encontram. Nos Estados Unidos, 44% deles são latinos e 25% são negros.

A recomendação das autoridades sanitárias nos EUA foi de tornar mais lenta a linha de produção, para que a densidade de trabalhadores possa ser reduzida e, com ela, o risco de contaminação pelo novo coronavírus. Distância não inferior a 1,8 metro entre os trabalhadores deveria ser respeitada.

Nada indica, porém, que a orientação seja seguida. Até porque o governo Trump autorizou a reabertura de plantas que haviam sido fechadas, desde que os trabalhadores tenham equipamentos de proteção e sem qualquer garantia quanto ao distanciamento.

Essa foi também a decisão da Justiça do Trabalho, ao permitir a reabertura de uma planta de abate de aves da JBS em Ipumirim, no oeste catarinense. A juíza do caso recusou a obrigatoriedade de separação mínima de 1,5 metro entre os trabalhadores, pois isso inviabilizaria a cadeia produtiva. Em contrapartida, impôs uso de máscara com viseira de acrílico.

É bastante questionável se a proteção será eficaz. O ambiente gelado e o trabalho extenuante são dificilmente compatíveis com o uso correto de máscaras de proteção. O que chama a atenção na sentença não é a convicção de que as medidas tomadas serão capazes de conter a pandemia, mas a alegação de que o fechamento do frigorífico seria prejudicial à arrecadação do município e ao meio ambiente, uma vez que as aves não recolhidas dos aviários seriam abatidas em condições sanitárias precárias.

Ampliar a densidade de animais nas fazendas e granjas exige linhas produtivas cada vez mais rápidas e, portanto, com riscos de saúde crescentes aos trabalhadores. Tornar mais lentas as linhas de produção faz aumentar os custos, podendo inviabilizar as empresas.

O mesmo impasse está sendo contornado na Dinamarca, onde a empresa que controla um dos maiores abatedouros de porcos do mundo teve apenas 10 casos de covid-19, num contingente de 8.000 trabalhadores. E nenhum deles veio dos frigoríficos da companhia. Lá são pouquíssimos os trabalhadores dentro das fábricas, já que toda a produção foi robotizada, como se pode ver neste vídeo.

JBS já está planejando ampliar o uso de robôs em suas unidades em várias partes do mundo. Da mesma forma que ocorreu, no sudeste do Brasil, com a cana-de-açúcar, em que a mecanização cortou postos de trabalho, a robotização de uma atividade tão perigosa e desgastante quanto o trabalho nos frigoríficos é uma tendência incontornável e que só será limitada enquanto houver mão de obra barata e pouco organizada, submetida a condições precárias.

Isso quer dizer então que o caminho para uma carne segura está no avanço tecnológico representado pela robotização? A resposta depende da maneira como são e serão criados os animais que abastecem as fábricas.

A robotização elimina a densidade de trabalhadores nas unidades produtivas, mas não a densidade nas criações animais. E o que as evidências científicas mostram de maneira cada vez mais incisiva é que a incidência tão recorrente de doenças infecciosas nas últimas décadas tende a aumentar, conforme aumenta a densidade das criações animais.

Os animais domesticados sempre foram, desde o início das atividades agropecuárias, os mais importantes vetores de transmissão de doenças infecciosas. Conforme aumenta a densidade dos animais e das sociedades humanas, ampliam-se as chances de os animais de criação se tornarem transmissores de doenças infecciosas.

Reduzir o perigo exige transformação profunda no sistema agroalimentar. O mundo consome em média um terço a mais de proteínas do que o necessário a uma vida saudável. E, nesse total, a proporção de proteínas de origem animal é cada vez maior. O resultado é prejudicial à saúde.

Dois senadores californianos, o democrata Cory Booker e o republicano Ro Khanna, estão propondo que a lei agrícola norte-americana imponha moratória na construção de novas unidades de operações concentradas de alimentação animal (CAFOs, no acrônimo em inglês). Mais que isso: até 2040, eles querem que o setor passe por profundo processo de descentralização.

Proposta semelhante está contida no relatório lançado por uma rede que reúne fundos de investimentos na indústria agroalimentar, num montante superior a US$ 20 trilhões, a FAIRR. O diagnóstico é que a concentração industrial, as condições de trabalho e os riscos socioambientais ameaçam a própria saúde financeira das empresas. Não é por outra razão, aliás, que um dos mais importantes fundos de investimento do mundo, o Goldman Sachs, afirma que a única commodity global com horizonte tão precário quanto o petróleo é a carne.

Temas evidentemente estratégicos para a sociedade brasileira farão parte do debate “Uso da Terra no Mundo Pós Pandemia” que a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, em parceria com o Pacto Global, promoveu por ocasião de seu quinto aniversário, na última segunda-feira (8 de junho). Assista, abaixo:

Nota: Após a publicação do artigo, a ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal) entrou em contato com o UOL. Argumentou que “a proporção maior de casos de Covid-19 entre colaboradores de frigoríficos apenas demonstra que as agroindústrias têm monitoramento muito superior ao realizado na sociedade”, e que “caberia ao articulista apresentar, também, a proporcionalidade de testes realizados nos frigoríficos em relação ao que ocorre nos demais setores da sociedade”. Afirmou ainda que “as medidas adotadas pelas empresas brasileiras durante a pandemia preservam a saúde dos colaboradores, e seguem guias elaborados em parceria com instituições como o Hospital Albert Einstein, bem como as recomendações interministeriais feitas pelo Ministério da Saúde, Secretaria do Trabalho e Ministério da Agricultura”; que “antes mesmo da adoção da quarentena, o setor frigorífico brasileiro se antecipou e implantou medidas preventivas para proteger e minimizar, ao máximo, o risco nas unidades de produção”.

Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto e Energia da USP. Autor de “Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza” (Ed. Elefante/Outras Palavras). 

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