Trabalho perpétuo: o viés de gênero e o ideal de juventude no capitalismo flexível

Bárbara Castro

Fonte: Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 99, p. 169-199, set./dez. 2016.

Resumo: Este artigo propõe a ideia de trabalho perpétuo como categoria analítica para aprofundar a compreensão das dinâmicas de espoliação e exploração do trabalho no capitalismo contemporâneo. O que se pretende demonstrar é como a flexibilização dos contratos de trabalho produz trabalhadores e trabalhadoras que não podem dispor da interrupção de suas trajetórias produtivas, seja pela ausência ou pela intermitência da seguridade social. Essa disponibilidade ininterrupta para o trabalho exige um trabalhador ideal, que atualiza e aprofunda as desigualdades de gênero e idade já presentes no mercado de trabalho. Para construir esse argumento, serão apresentados dados empíricos, recolhidos de entrevistas em profundidade realizadas com profissionais homens e mulheres do setor de Tecnologia da Informação (TI) atuantes nas cidades de Campinas e São Paulo.

Sumário: Capitalismo flexível e organização empresarial do setor de TI no Brasil | O PJ e a ideologia empreendedora | Gênero e juventude: a produção do trabalhador ideal no capitalismo flexível | Trabalho perpétuo: aposentadoria, adoecimento e maternidade | Bibliografia

Ao reler as entrevistas realizadas para minha pesquisa de doutorado, identifiquei um fator presente em todo o texto da tese como preocupação de fundo, embora nunca claramente enunciado (Castro, 2013). Trabalhadores homens e mulheres do setor de Tecnologia de Informação (TI) então entrevistados me contavam, nas entrelinhas de suas histórias de vida, sobre a incapacidade de interromper suas trajetórias produtivas, fosse essa interrupção para cuidar da saúde, tirar licença-maternidade, desfrutar do descanso remunerado nos finais de semana, feriados e férias, ou mesmo para se aposentar.

Apesar da heterogeneidade de interrupções possíveis em uma trajetória de trabalho, recortadas por sexo, idade e condições de saúde, os entrevistados e entrevistadas que precisavam ou gostariam de parar de trabalhar compartilhavam de um problema comum. Eles descreviam o ato de suspender o trabalho remunerado por um tempo e/ou de maneira definitiva como uma impossibilidade para a reprodução de suas vidas – ou, quando conseguiam, como uma realidade vivida de maneira precária.

Essa impossibilidade pode ser explicada pela soma de três fatores: a organização empresarial do setor, a construção de um trabalhador ideal, que atenda às necessidades dessa organização, e a ausência de uma rede de proteção trabalhista e social.

Como veremos, o setor de TI é altamente pulverizado, composto predominantemente de micro e pequenas empresas focadas na prestação de serviços. A elevada competitividade decorrente desse desenho as leva a oferecer os menores custos e prazos para seus clientes. Para atender a essa dinâmica, é preciso que os trabalhadores estejam disponíveis o tempo todo para as empresas e/ou clientes, realizando jornadas que ultrapassam as oito horas previstas em lei e atuando ininterruptamente em finais de semana e feriados. Essa rotina exaustiva é comum no setor e forma uma identidade profissional pautada numa ideia traduzida como flexibilidade: ser trabalhador de TI é trabalhar muito e estar disponível sempre (Castro, 2013).

No caso em questão, essa ideia de disponibilidade se ampliava para além das jornadas de trabalho intensas e extensas, típicas do capitalismo flexível. O sentido de disponibilidade total do trabalhador para as empresas, já tão bem apresentado por outros autores, se alarga da jornada de trabalho para a extensão da vida, na medida em que se articula à profusão de contratos flexíveis que fraudam relações trabalhistas e são abundantes no setor. A rede de proteção trabalhista e social, ao se encurtar, prolonga e/ou torna imprevisível o tempo de trabalho necessário à reprodução da própria vida.

Era essa a experiência que esses trabalhadores e trabalhadoras compartilhavam em suas trajetórias heterogêneas, mas que não era racionalizada no seu cotidiano ou fora verbalizada nas entrevistas. Os contratos flexíveis, em especial o PJ, também eram incorporados como parte de sua identidade profissional, e eram elogiados como vantajosos perante os encargos da CLT (Castro, 2015). O elogio se amparava na ideologia empreendedora, que deslizava da ideia da gestão de sua própria empresa, aberta para receber a remuneração do trabalho, para a gestão de si e de seus direitos, criando o consentimento necessário para a manutenção da contratação realizada à margem da lei.

O problema social em questão é o de que o capitalismo flexível, ao privatizar a gestão e negociação dos direitos trabalhistas, cria a ilusão de que a conquista desses direitos depende das habilidades de negociação de cada pessoa e não da proteção do Estado ou da luta classista. No entanto, se a certeza de ser um bom ou uma boa negociadora e gestora desses direitos era fala recorrente entre os entrevistados e entrevistadas, ela era questionada quando a estrutura de desigualdade na relação patrão e empregado se sobrepunha à narrativa da agência individual como mecanismo que dá conta de regular, sozinha, direitos trabalhistas e sociais. Era justamente nesses momentos, nos quais os direitos negociados individualmente não eram garantidos – ou ameaçavam não ser – que as hierarquias se revelavam, e que a noção do trabalho perpétuo, que aqui elaboro, ganhava vida.

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Bárbara Castro é professora do Departamento de Sociologia da Unicamp. Campinas, SP. Brasil.

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