Trabalho informal sem direito à quarentena: “Se eu ficar em casa como vou sobreviver?”

Ambulante vende álcool em gel na Rua 25 de Março, zona central de São Paulo. Fotografia: Julia Dolce/Agência Pública

Após entrar em seis lojas do centro de São Paulo à procura de um recipiente de 60ml para vender álcool em gel, a ambulante Ana Santana, de 30 anos, desistiu. Conformada, ela explicou: “Todos os marreteiros estão vendendo álcool em gel. Eu precisava das embalagens deste tamanho porque já mandei fazer os rótulos”. Acostumada a vender chocolates na Linha 7-Rubi da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), ela acordou às 7 da manhã na terça-feira (17) para organizar a mercadoria com maior demanda no momento.

Ana faz parte do grupo de trabalhadores informais e autônomos que dificilmente conseguirão seguir a recomendação de isolamento voluntário feita pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para a população de países com casos confirmados do novo coronavírus. A indicação do órgão internacional tem como objetivo frear a curva de transmissão da doença Covid-19. No Brasil, os trabalhadores informais representam 41,4% do mercado de trabalho, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicados em janeiro deste ano. A porcentagem, que representa 38 milhões de pessoas, vem crescendo anualmente.

No caso da marreteira, o esforço em vender um dos produtos mais relacionados ao combate do coronavírus corre contra o relógio da quarentena da população paulistana. “O trem já está praticamente vazio perto do que é normalmente. Nós vamos vender pra quem?”, questionou. Ana explica que vai trabalhar em dobro nesta semana porque, além da redução dos clientes, terá que ficar em casa com as filhas nas próximas semanas. Mãe solo, ela tirou os primeiros dias do avanço das contaminações no país para ficar “para lá e pra cá”, tentando alcançar sua meta mínima diária de R$ 50 livres, vendendo cada álcool gel por R$ 5.

“As aulas foram suspensas, não tenho com quem deixar minhas filhas. Não podem ficar com os avós, minha mãe tem problemas de saúde. A babá da minha filha mais nova, que tem dois anos, mora com dois idosos, então não pode ficar”, explica, acrescentando que o planejamento provavelmente será o suficiente apenas para manter os mantimentos da casa, “porque contas não vou conseguir pagar nenhuma”.

Pela falta de álcool em gel nas lojas paulistanas, Ana calcula que conseguirá encontrar o produto para vender até amanhã (19). Para sua segurança, ela tem usado máscara de enfermagem no rosto mas se preocupa com o caminho que faz para chegar ao centro de São Paulo, passando pelo aeroporto de Guarulhos, onde tem contato com pessoas vindas de diversos países.

Evitar aglomerações, outra recomendação do Ministério da Saúde, tem sido difícil para vendedores ambulantes. A poucos quilômetros do centro, Maria Eva, de 47 anos, vende acessórios, como carteiras e película protetora para Carteira Nacional de Habilitação, em frente ao Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran) na Armênia, zona norte da capital paulista, que costuma ficar lotado.

Ela mostra no WhatsApp as mensagens que tem recebido sobre a epidemia do coronavírus, quando é interrompida por um colega, que também trabalha como ambulante, para ela trocar uma nota de R$ 50 reais. Ela abre a pochete, troca por duas notas de R$ 20 e uma de R$10. “Aqui toda hora a gente pega em dinheiro, então a gente está se protegendo como pode”, diz ela, com um pequeno frasco de álcool em gel na bolsa. “A gente fica com medo também, mas não tem o que fazer”.

Eva trabalha em frente ao Detran de segunda a sexta-feira, das 7h às 19h. “A hora que o Detran abre, eu começo a trabalhar. O Detran fecha, eu vou embora. É assim”, conta. Até a segunda-feira (16), o movimento parecia normalizado, o que não era a tendência dos próximos dias. “Se alastrar de verdade, se o Detran fechar…. Aí não tem como. Por enquanto, estamos indo até segunda ordem”, diz a vendedora. Um dia após nossa conversa, governo do estado anunciou que começaria a restringir a entrada de pessoas no prédio do órgão, por conta da epidemia.

A ambulante mora com seus seis filhos, que têm entre 15 e 21 anos, na região central da cidade. As vendas das carteiras geram a renda mensal da família de sete pessoas — o filho mais velho auxilia o trabalho da mãe, para complementar a renda familiar que ela faz nas ruas. “Se eu ficar em casa, como é que eu vou sobreviver, como é que eu vou me manter, se eu não estiver nas ruas para trabalhar? A televisão mandou a gente trabalhar de casa, mas eu me pergunto, eu vou trabalhar em casa em quê? Como é que eu vou vender isso aqui?”, questiona, indignada, apontando para a grande quantidade de produtos que recém-adquiriu.

Pacote de Paulo Guedes não beneficia trabalhadores informais

O ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou na segunda-feira (16) um pacote emergencial para injetar R$ 147,3 bilhões na economia com o objetivo de minorar os impactos da pandemia causada pelo coronavírus. No entanto, o governo federal foi bastante criticado por esquecer, em seu primeiro anúncio de plano emergencial, justamente o setor dos trabalhadores mais vulneráveis, os informais.

O economista Gilberto Libânio, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lembra que países da América Latina têm um grau de informalidade maior do que outros países europeus que são foco da epidemia, como a Itália. Segundo ele, além de problemas econômicos, isso pode dificultar até mesmo o cumprimento da orientação de isolamento social da OMS.

“A informalidade se torna um desafio e um obstáculo maior porque tem um conjunto muito grande da população brasileira que, frente a uma situação deste tipo, fica inteiramente desamparada do ponto de vista dos seus rendimentos. Nesse momento, a situação dessas famílias se torna economicamente muito vulnerável, muito dramática”, analisa o professor. “Ou seja, o fato de você ter uma economia com alto grau de informalidade pode ser um complicador do ponto de vista da própria efetividade de saúde pública para a contenção da epidemia”, analisa.

O professor defende a criação de um programa de renda mínima para compensar os impactos negativos sobre as populações mais economicamente vulneráveis nesse momento. “O problema que a gente tem aí é um problema político, em última instância. Você tem, por parte do Ministério da Fazenda, uma postura muito pouco flexível em relação a isso. Um discurso que está muito assentado na necessidade das reformas estruturais, como sendo o caminho atrás do qual a economia vai voltar a crescer”, aponta Libânio, destacando que o discurso, já complicado antes da pandemia, se torna “emergencial”.

No pacote de Guedes estão previstas, entre outras medidas, a antecipação para abril do pagamento de metade do 13º de aposentados e pensionistas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), no valor de R$ 23 bilhões; a ampliação de prazos e redução do teto de juros de empréstimo consignado de beneficiários do INSS; e o adiamento, por três meses, do pagamento de tributos federais para empresas, que pode chegar a R$ 22,2 bilhões. Além disso, o governo anunciou um reforço de R$ 3,1 bilhões no orçamento do Bolsa Família, recurso que que possibilitaria alcançar mais um milhão de famílias no programa.

Mas as ações previstas pelo governo não atingem quem está na informalidade, já que poucos contribuem com o INSS, alerta Adriana Marcolino, técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). “Aqui temos um problema de assistência. São mais de 20 milhões de trabalhadores por conta própria [categoria que inclui profissionais autônomos] e só um quarto desses trabalhadores recolhem para Previdência. É muito pouco. Os outros estão completamente descobertos”, explica a especialista.

Como resposta, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou que a equipe econômica do governo está elaborando uma proposta de criação de vouchers para os trabalhadores sem vínculo empregatício. “O que o Paulo Guedes falou para mim hoje é que a economia informal, ou que vive da informalidade, teria uma ajuda por algum tempo, algo parecido com um ‘voucher’. Está faltando definir o montante e como é que vai organizar o pagamento”, afirmou o presidente à Folha de S. Paulo.

Nesta quarta-feira (18), Paulo Guedes concedeu uma entrevista ao site jornalístico Poder36o em que detalhou a proposta: o cupom terá valor do Bolsa Família, de aproximadamente R$191, terá duração de quatro meses e deve começar a ser distribuído em postos da Caixa Econômica Federal em até duas semanas.

Marcolino enxerga o “coronavoucher”, como o cupom tem sido chamado informalmente, com desconfiança. “A ideia do voucher tem um formato liberal e que está fora de um programa que é orquestrado com várias políticas”, diz. “Eu particularmente acredito que existem outros instrumentos do estado que podem, e já existem, colaborar com a renda. O programa como o Seguro Defeso, que é justamente para trabalhadores informais que não podem perder a pesca serem remunerados. A gente já tem programas existentes, na seguridade social brasileira e nas medidas de proteção ao trabalhador, que poderiam, com algumas modificações e ajustes, ser aplicados nesse momento”, completa. “Mas é importante, independentemente de como vai fazer essa transferência de renda, que de fato isso aconteça e que aconteça logo porque as pessoas já estão sentindo isso”, reitera.

Com relação à ampliação do Bolsa Família anunciada no pacote, ela afirma que a medida será insuficiente: “Antes de começar essa fase da crise, a fila do Bolsa Família já estava em 3,5 milhões de pessoas. Então, mesmo ampliando em um milhão de benefícios, isso sequer vai dar conta da fila que estava antes da crise do coronavírus começar”.

A economista cita como bom exemplo de contenção da crise econômica o anúncio do governo da Espanha em disponibilizar 200 bilhões de euros para minimizar os efeitos da recessão — o valor do investimento representa quase 20% do PIB do país. Outros países também anunciaram pacotes com medidas protetivas. Portugal e França, de acordo com Marcolino, propuseram medidas de proteção e de renda indireta, deixando de cobrar as contas de água, luz e gás. O Reino Unido, por sua vez, flexibilizou as regras do acesso ao chamado Crédito Universal, sistema de benefícios da seguridade social, para que informais sem uma renda mínima e que precisarem permanecer em casa por conta da epidemia possam obter o crédito.

Já a Alemanha, com 9.367 casos confirmados de coronavírus e 26 mortes, promete uma assistência financeira específica para artistas afetados por cancelamentos e pela queda do turismo.

Em Singapura, entre as medidas propostas pelo governo, no dia 18 de fevereiro, para proteger a economia do coronavírus, está um fundo de treinamento para freelancers e profissionais autônomos, que seriam pagos para assistirem aulas com o objetivo de melhorarem suas habilidades. Atualmente há 266 casos confirmados no país asiático.

Com 6.456 casos confirmados e 109 mortes por coronavírus, os Estados Unidos, por sua vez, também preveem um plano de vouchers, anunciado pelo presidente Donald Trump na terça-feira (17). A medida faz parte de um pacote de estímulo à economia estadunidense que pode chegar a US$1 trilhão, uma das maiores investidas fiscais da história do país. Ainda não há consenso sobre o valor que será enviado diretamente às famílias norte americanas, mas parlamentares como o senador republicano Mitt Romney, têm defendido o pagamento de US$1 mil por família.

O deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ) apresentou ontem um projeto que propõe a criação de uma renda de um salário mínimo para trabalhadores pobres que estão na informalidade, durante toda a duração da pandemia. O projeto propõe também a suspensão da cobrança de luz, água e gás para os pobres, a proibição do corte desses recursos e o auxílio doença para microempreendedores.

Apesar dos anúncios recentes do governo, os autônomos brasileiros não estão confiantes quanto à criação de medidas para sua segurança. A vendedora de coco Vera Silva, está pessimista. Há 12 anos trabalhando como ambulante na 25 de março, ela viu a sua renda diária cair, pela primeira vez, em quase 70%. “O governo só dá suporte para rico. Nunca deu e nunca vai dar. Pobre vai fazer o que? Não tem pra onde correr, quem vai pagar meu aluguel?”.

Trabalhadores de aplicativos

“Já levei uns quatro para o hospital hoje”, afirmou, sem cerimônias, o motorista do aplicativo 99 José Gerson (51 anos), por volta das 15h30 da terça-feira. “Eles falam que tão com suspeita de coronavírus. Não tem solução, os fregueses tão diminuindo já”, conta. O motorista havia iniciado suas corridas por volta das 9h da manhã, e não havia arrecadado nem metade do habitual. “Vou ter que ficar até mais tarde. Dependo dessa renda, já estava desempregado há muito tempo antes disso”, explica.

O motorista tem quatro filhos e sustenta dois, ainda estudantes, além da esposa. Com um álcool 70 no carro e as janelas abertas para garantir a ventilação do ar, ele conta que a Uber o orientou a não pegar passageiros em grandes aglomerações. Ele deixou a reportagem na 25 de março, rua comercial conhecida justamente por reunir milhares de pessoas diariamente. “Não tem como eu parar de trabalhar, não vou conseguir sobreviver”.

Veículos de notícias de todas as partes do mundo têm reportado a situação dos trabalhadores de aplicativos, a chamada economia Gig, em tempos de coronavírus. Para especialistas, os aplicativos já representavam uma precarização de direitos trabalhistas, e agora, deveriam ser ainda mais responsabilizados pelo sustento dos trabalhadores adoecidos.

A socióloga Ludmila Abílio, que pesquisa o fenômeno do crescimento dos trabalhadores de aplicativos, conhecido como uberização, diz que os aplicativos atuam como uma “terra de ninguém”. Ela afirma que, neste momento, é dever da população “demandar procedimentos de segurança e proteção para seus trabalhadores”.

“O recolhimento já traz em si uma reprodução das desigualdades sociais. E com a economia Gig você retira as redes de proteção e joga para o indivíduo a responsabilidade de sua sobrevivência, é uma perversidade do mundo do trabalho”, opina, alertando para o fato de que esse perfil de trabalhador raramente possui algum tipo de segurança financeira. “O que ele ganha ele tá pagando as dívidas, usando para viver”.

Abílio aponta também que, em um primeiro momento, os motoristas e entregadores de aplicativos estarão na “linha de frente” para “garantir” a quarentena do resto da população, estando também mais vulneráveis à contaminação pelo novo coronavírus. “Essas empresas dos aplicativos terão uma responsabilidade muito grande nesses momentos”.

A Uber tem mandado mensagens para seus motoristas e consumidores ao longo das últimas semanas, destacando as medidas que tem tomado diante da pandemia e com orientações para evitar a propagação do coronavírus.

A empresa afirma possuir “uma equipe global dedicada, que conta com a consultoria de um especialista em saúde pública” e disse que motoristas e entregadores diagnosticados ou que tiverem quarentena solicitada por uma autoridade de saúde pública receberão assistência financeira durante até 14 dias, enquanto sua conta estiver suspensa. Ou seja, o auxílio anunciado pela empresa não cobre profissionais que optarem pela quarentena como medida preventiva.

Além disso, a multinacional com sede nos EUA afirma que está formando parcerias com fabricantes de produtos de limpeza para fornecer desinfetantes aos motoristas, para manter os carros limpos.

O iFood também anunciou assistência financeira de até 14 dias aos entregadores ligados à plataforma. Já a Rappi afirma que, para “proteger nossa comunidade de entregadores parceiros, vai habilitar “uma opção de entrega em domicílio sem contato físico”, e que está “importando centenas de milhares de géis e máscaras antibacterianas”.

Mesmo com as orientações enviadas pelas empresas, Jorge Luiz, motorista da Uber há mais de dois anos, ainda se sente pouco amparado com relação às orientações para lidar com a epidemia pelo Covid-19. Na segunda-feira (16), dia em que conversou com a reportagem da Agência Pública, no centro de São Paulo, era a primeira vez que o motorista desligava o ar-condicionado e optava pela ventilação natural no carro, com as janelas abertas. Ele ouviu, pela televisão, que esta era uma medida de segurança para conter o vírus.

Já em relação ao álcool em gel, que segundo especialistas é a melhor maneira de se higienizar as mãos na impossibilidade de lavá-las, o motorista preferiu não aderir. Ele recebeu, via corrente de WhatsApp, um vídeo que relacionava o uso do produto a uma interferência no teste de bafômetro. “O vídeo circulou e pode até ser mentira, eu não fui a fundo. Então eu não vou comprar álcool em gel, moça. Se ele pode me prejudicar…”, disse. No caso, o vídeo disseminou uma informação falsa, como apontou checagem da Agência Lupa: o uso da substância para higienizar as mãos não é detectado na realização dos testes.

Confrontado com a checagem, Jorge afirma que vai compartilhar a informação em grupos de motoristas que pretendem, como ele, continuar trabalhando no período de epidemia. Ele só cogita parar de sair às ruas para trabalhar se a coisa “ficar feia”. O motorista, de 45 anos, trabalha todos os dias, de domingo a domingo, e faz cerca de 20 viagens por dia. “Não tem o que fazer, dá medo, mas eu preciso tentar ganhar o meu pão. Só se eu souber que eu tô com o negócio, que aí eu vou dizer ‘pára tudo’, vou deixar as contas estourarem e depois a gente vê o que faz.”

O mesmo dilema enfrenta o entregador Leonardo Fagundes Dias, de 21 anos. Sua única fonte de renda hoje é por meio dos aplicativos Uber Eats, Rappi e iFood. Ele pondera que, pode haver aumento das entregas, pelo aumento do número de pessoas em casa. Mas optou não sair às ruas na quarta-feira (18), por pressão de seus familiares.

“É bastante complicado, essa pandemia pegou de surpresa mesmo”, afirma Dias. “Eu não tenho outra fonte de renda e a minha sorte é que eu ainda moro com meus pais, senão eu estaria bastante lascado”. O jovem ainda não sabe se vai parar ou não de trabalhar nas próximas semanas. “Se os restaurantes, shoppings, fast food e outros estabelecimento fecharem, aí eu acho que isso acaba impossibilitando trabalho com os aplicativos”.

Trabalhadores de aplicativo estão organizando uma paralisação na próxima segunda-feira (23), para protestar por maiores garantias de direitos. Entre as pautas que serão reivindicadas, no caso dos entregadores, estão as dívidas por cancelamentos dos próprios clientes, o excesso de peso nas cargas e a melhoria dos fretes.

Que horas ela volta

Os direitos de um dos empregos mais comuns no país, e com uma das maiores taxas de informalidade, tem estado no centro do debate: o caso das empregadas domésticas. O assunto teve início principalmente após uma coluna do jornalista Lauro Jardim no jornal O Globo, no qual ele relatava a situação de um dos primeiros brasileiros a contrair o Covid-19, no Rio de Janeiro. O homem, de 72 anos, estava de quarentena junto à família, mas a empregada doméstica continuava trabalhando na casa, de máscara e luvas.

Mesmo quando não há confirmação ou suspeita de coronavírus entre os patrões, as empregadas domésticas correm risco, como outros trabalhadores, mas não têm direito à quarentena. Marília Ferraz*, diarista de 49 anos, segue trabalhando na casa de diferentes clientes ao longo desta semana, na região metropolitana de São Paulo e na própria capital, mesmo após o prefeito Bruno Covas (PSDB) ter decretado estado de emergência na cidade. Ela conta que uma das patroas, para quem passa roupa, disse, nesta mesma semana, que não havia motivo para ela se resguardar em casa. “Até o momento creio que não vou parar. Ela falou para eu usar álcool em gel, mas que não era para eu parar porque se não a roupa ia acumular”.

Marília tem 49 anos, tem problemas respiratórios e vive em São Bernardo do Campo, assim como essa sua cliente, que trabalha em uma loja no centro de São Paulo. “Eu tenho medo do vírus, mas fazer o que? Eu preciso trabalhar, senão eu não ando, não compro meus remédios, não faço nada. Ninguém me dá nada”, lamentou. A diarista também trabalha como cuidadora de uma mulher de 84 anos três noites por semana. Ela ainda aguarda resposta sobre as medidas que a família da idosa tomará.

Caso a escolha seja parar de acompanhar a idosa, a diarista já antecipa que não vai continuar recebendo esta parte da sua renda. “Não tem perspectiva de continuarem me pagando, então já vou ser prejudicada”.

A proposta de dispensar diaristas e empregadas domésticas e manter sua remuneração ao longo das semanas de pico do coronavírus tem sido divulgada na internet. Em redes sociais, a campanha “dispense e pague sua diarista” pretende conscientizar justamente sobre os riscos, tanto econômicos quanto para a saúde, que tal classe trabalhista lidará nas próximas semanas.

O Brasil é o país com o maior número de trabalhadoras domésticas no mundo. São 6,24 milhões de mulheres no ramo, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) de 2018. Em 2016, o número de empregadas domésticas com carteira assinada atingiu seu pico, mas até 2018, já havia encolhido 11,2%, o referente a 1,82 milhões de pessoas migrando para a informalidade, passando a trabalhar, principalmente, como diaristas.

A babá Renata Augusta dos Santos, 51 anos, apesar de ter a carteira assinada pelos patrões e, portanto, não configurar autônoma, vive uma situação emblemática para sua classe trabalhista. Os patrões acordaram com Renata que ela deverá ficar de quarentena na casa deles, trabalhando e dormindo durante a semana, e voltando para casa somente durante o final de semana. Dessa forma, eles esperam diminuir os riscos para a família, principalmente o bebê de quem ela toma conta.

“Para eu não sair e voltar todo dia e ficar correndo um certo risco, eu entro segunda e vou embora na sexta-feira. Acho que tomando os cuidados necessários, tá bom”. A funcionária já dormia cerca de três vezes por semana na casa dos patrões, no Cambuci, na região central da capital paulista, voltando para casa, na região da Pedreira, Diadema, zona metropolitana de São Paulo, nos demais dias.

Renata explica que seus patrões trabalham com informática e voltaram de uma viagem para o Chile há duas semanas. Eles testaram negativo para o novo coronavírus. Para Renata, a solução de ficar de quarentena longe de sua casa, onde vive com o marido de 59 anos, foi razoável, uma vez que ela ganhará os adicionais referentes às horas extras trabalhadas.

Ontem (17), foi registrada a segunda morte suspeita de ter sido causada pela Covid-19 no Brasil. A vítima, uma idosa de 63 anos, trabalhava como empregada doméstica no Rio de Janeiro, e esteve em contato direto com sua patroa, recém-chegada da Itália e cujo teste para o novo coronavírus havia dado positivo.

Na Bahia, três dos primeiros casos confirmados do vírus tiveram como origem uma transmissão entre uma patroa e uma empregada doméstica. A patroa, primeiro caso do novo coronavírus no estado, é uma mulher de 34 anos moradora de Feira de Santana e foi contaminada em uma viagem para a Itália, em fevereiro. Ela transmitiu o vírus para uma mulher de 42 anos que trabalha em sua casa, que transmitiu a doença para sua mãe, uma idosa de 68 anos. Seu marido, de 73 anos, foi contaminado após contato domiciliar com a esposa e a filha.

A virologista Betânia Drumond, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pontua que os trabalhadores informais devem se precaver principalmente ao utilizarem do transporte público, evitando utilizar seus celulares fora de casa e tomando cuidado extra com a higienização.

Além disso, ela destaca a importância de não haver conversa próxima entre empregados e patrões. “No caso de cuidadoras de idosas, elas têm que evitar o contato próximo. Não é recomendado que pessoas que tenham sintomas de doenças respiratórias tenham contato com idosos”, reitera. Em relação aos motoristas de aplicativos, Drumond reitera a necessidade de higienizar as mãos a cada passageiro, deixar as janelas do carro bem ventiladas e também considerar o uso de máscaras no transporte de pessoas possivelmente contaminadas.

Fonte: Agência Pública
Texto: Julia Dolce e Rute Pina
Data original da publicação: 18/03/2020

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