Trabalho do futuro: construção do marco regulatório

O desafio da regulação jurídica, ao intentar “controlar o futuro”, é fazer do trabalho um produto da inteligência humana que garanta a harmonização prática entre desenvolvimento tecnológico, redistribuição de riqueza e poder e coexistência social com justiça e dignidade.

Arnaldo Boson Paes

Fonte: Conjur
Data original da publicação: 08/02/2021

Refletir sobre o futuro do trabalho não parece ser uma tarefa fácil. Talvez, antes disso, como questão anterior, se devesse perguntar se, a depender do futuro, haverá futuro para o trabalho ou até mesmo se haverá trabalho no futuro.

É que se dependesse de profecias e vaticínios tantas vezes repetidos, poder-se-ia dizer que essa reflexão tem um problema metodológico de difícil solução, visto que impossível falar sobre um objeto cuja morte foi anunciada.

É certo que grande parte das profecias não se confirma e uma delas, cujo discurso é recidivo, diz respeito ao tão apregoado fim do trabalho ou, no limite, o fim do trabalho como uma questão central. Talvez por isso o tema desperte tanto interesse e fascínio, ocupando um espaço permanente no imaginário do homem e de sua história.

Os postos de trabalho serão substituídos pela nova tecnologia? Qual o perfil das futuras ocupações? O atual padrão regulatório ajusta-se às novas formas de trabalho? Quais as soluções regulatórias mais adequadas para moldar o trabalho do amanhã? O marco jurídico deve ser mais flexível ou mais garantista?

As questões problematizadas acima são cada vez mais urgentes no contexto da “revolução digital”, da gig economy e da intensificação do trabalho por meio de plataformas digitais.

Multiplicam-se as atividades desenvolvidas por meio do marketplaces, com plataformas atuando como mecanismo de intermediação de negócios, que passam a coexistir com outras, em que serviços centrados no elemento humano são ofertados por meio de plataformas, que tanto podem assumir formas de trabalho autônomo como formas de trabalho subordinado [1].

Refletir sobre o futuro do trabalho é ajudar a construí-lo. Mas não se trata de discutir aqui um futuro distante, fictício ou especulativo. O futuro contemplado é, em essência, a evolução possível das realidades atuais.

O futuro a ser construído tem como ideia-força que a tecnologia deve ser dominada, regulada e utilizada em prol da sociedade, isso por uma razão bem simples: a centralidade deve estar no homem, e não na máquina.

A relação entre o homem e a tecnologia vem de longe. Mas a julgar pela extensão, continuidade e velocidade das últimas transformações, parece adequado dizer que “estamos ante un largo, un interminable proceso, no de uma revolución, sino de revoluciones sucesivas, de mutaciones, de evoluciones, de rupturas, de reequilibros… en cadena” [2].

Pode-se sustentar que “el cambio tecnológico transforma la forma en que producimos, consumimos, gestionamos, nacemos y morimos” [3]. O fenômeno tem gerado novos arranjos produtivos que, como se fosse uma verdadeira mudança de paradigma, implicam na redefinição da forma de organização da sociedade, bem como na consequente desfiguração dos modos de realização do trabalho humano.

Implosão de postos de trabalho, desaparecimento de profissões, formas precárias de contratação de trabalhadores por meio de plataformas, efeitos das novas tecnologias na saúde física e mental dos trabalhadores, invasão de privacidade em razão do monitoramento eletrônico, excesso de jornada de trabalho, ausência do direito à desconexão e enfraquecimento das entidades sindicais são apenas, entre outras, algumas das diferentes faces de uma mesma problemática.

O seu enfrentamento é cada vez mais necessário e, por essa razão mesma, desafia a construção de um marco regulatório capaz de, não sendo possível sua neutralização, arrefecer os possíveis danos a serem suportados pelo trabalho, visto sob uma dupla perspectiva: como valor social e como condição de possibilidade da existência do próprio ser humano.

Ideias como “flexibilidade”, “flexissegurança”, “empregabilidade”, “trabalhabilidade” e tantos outros conceitos têm sido manejados como respostas para adequar os mercados de trabalho aos novos contextos.

Mas a história registra que essas categorias, assim como as respostas que oferecem, têm-se revelado como insatisfatórias para atender às complexidades próprias dessas transformações, visto que, de sua aplicação pura e simples, o resultado mais evidente vem a ser a precarização estrutural do trabalho.

Superadas essas ideias, a regulação do mercado de trabalho da era digital deve ter como premissa que “o trabalho não é uma mercadoria”, conforme preconizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), de tal modo como que a regulação deve orientar-se para a garantia da qualidade do trabalho e a proteção da dignidade dos trabalhadores.

A construção do marco regulatório do trabalho do futuro é um caminho complexo, que exige esforço interdisciplinar, envolvendo múltiplas áreas do conhecimento. O Direito, por certo, desempenha papel relevante nessa trajetória. Cabe-lhe o desafio de contribuir para a construção de um marco doutrinário, normativo e jurisprudencial capaz de assegurar proteção jurídica e social aos trabalhadores do futuro.

Nessa perspectiva, uma abordagem sobre a regulação do trabalho do futuro deve ir além da discussão acerca do número de postos que poderão ser perdidos pela introdução de novas tecnologias. O debate deve-se concentrar na qualidade do trabalho, já fortemente impactado pela crescente utilização de ferramentas tecnológicas e sistemas de supervisão informatizados para gerir a mão de obra.

Com efeito, a tecnologia da informação e a inteligência artificial já permitem em grandes proporções a coleta e o processamento de dados sobre as atividades laborais. Dispositivos portáteis permitem registrar a localização e os movimentos dos trabalhadores em tempo real, medindo o seu ritmo e suas pausas. Permitem ainda o recolhimento de dados para avaliação da produtividade e da aptidão dos trabalhadores para execução de certas tarefas [4].

Sistemas de navegação por satélite permitem monitorar a localização e a velocidade dos motoristas de caminhão e veículos de entrega, bem como dos motoristas e entregadores que trabalham por apps. Podem também ser utilizados para medir a velocidade e a dedicação na execução das tarefas, podendo igualmente recolher informações sobre cálculo da pontuação e das avaliações atribuídas pelos clientes. Baixas pontuações ou desempenho aquém dos padrões podem ensejar a exclusão do trabalhador da plataforma.

Nessa mesma linha, decisões no ambiente de recursos humanos já são tomadas a partir de amplos conjuntos de dados, eventualmente coletados por meio de práticas invasivas e destinadas a identificar aspectos altamente pessoais [5].

Além disso, redes sociais, relógios inteligentes, wearables, webcam, programas de bem-estar e softwares que registram atividades online e offline, permitindo inclusive capturas de tela de computadores, têm sido utilizados para realizar a vigilância não apenas no ambiente laboral, mas também para ter acesso a informações relacionadas a atividades realizadas fora do local de trabalho, diluindo assim as fronteiras entre trabalho e vida.

Esses aspectos, entre outros, demonstram a necessidade da existência de um marco regulatório adequado para a proteção do trabalho do futuro. O nível de proteção deve-se ajustar à extensão e intensidade dos poderes de organização, direção e controle exercidos pelo tomador dos serviços sobre as atividades laborais.

A regulação não se presta apenas a salvaguardar os trabalhadores em razão de sua condição de dependência, pois servem principalmente para limitar e racionalizar o exercício unilateral dos poderes de gestão da mão de obra. Nesse sentido, a legislação laboral sobre remuneração, duração do trabalho, discriminação, privacidade, para citar apenas alguns aspectos, é ainda mais necessária com a crescente utilização das ferramentas tecnológicas.

Ademais, a regulação deve estar inserida no contexto dos direitos humanos fundamentais, de modo a responder à necessidade de que os poderes de gestão e vigilância do tomador dos serviços não impliquem violação à privacidade e à intimidade e prejudiquem a dignidade do trabalhador.

Daí a necessidade de criar ou atualizar regras destinadas a tutelar os trabalhadores contra práticas abusivas de fiscalização de suas atividades, potencializadas por sistemas de vigilância com alta tecnologia. Inserida no contexto dos direitos humanos fundamentais, eventual limitação de qualquer deles somente se legitima quando for indispensável para o exercício de outros direitos humanos fundamentais, observando-se em todo caso a máxima de proporcionalidade [6].

A normatização sobre dados recolhidos acerca do desempenho profissional e das características pessoais dos trabalhadores, bem como sobre a forma como são coletados e tratados, tem sido até aqui negligenciada pelas legislações nacionais [7].

Além de proteger a intimidade dos trabalhadores, o modo como o trabalho é orientado pela utilização das novas tecnologias deve ser regulado a fim de assegurar que a busca de maior produtividade não implique riscos para a saúde e segurança no trabalho.

O exercício do poder disciplinar, a partir de dados coletados pelo monitoramento mecânico ou por processos algorítmicos, sobretudo quando envolvam questões como o aumento do ritmo de trabalho ou a intensificação da produção, deve ser objeto de adequada regulação.

Critérios de avaliação transparentes, acessíveis aos trabalhadores, precisam estar garantidos, a fim de evitar resultados arbitrários ou discriminatórios, cuja decisão final deverá sempre ser tomada por humanos [8].

A regulação deve orientar-se também para assegurar proteção contra dispensas individuais, na medida em que a perda do emprego implica consequências pessoais, sociais e econômicas manifestamente negativas, que devem ser ao menos mitigadas. Nesse ponto, os tratados internacionais sobre direitos humanos, a exemplo da Convenção nº 158 da OIT, podem desenvolver papel decisivo, sobretudo para contemplar proteção contra dispensa arbitrária.

Nas dispensas coletivas, para atenuar as perdas maciças de postos de trabalho em decorrência da intensificação do uso de novas tecnologias nos processos produtivos, impõe-se uma regulação que assegure uma adequada e efetiva participação dos atores sociais na gestão desses processos.

Contrariamente ao discurso de que a regulação implicaria restrição à inovação, deve-se partir do princípio de que o diálogo social pode traduzir resultados altamente positivos nas perspectivas econômicas e sociais. Procedimentos de informação e consulta aos trabalhadores já estão institucionalizados em diversos instrumentos, a exemplo da Convenção nº 158 da OIT e da Diretiva 2002/14 do Parlamento Europeu e do Conselho.

A normatização deve ser dotada de grande plasticidade, de modo a adequar-se às amplas, intensas e rápidas inovações tecnológicas. Além do relevante papel a ser desempenhado pelas legislações nacionais, regionais e internacionais, dotadas de maior abrangência e generalidade, é fundamental potencializar o exercício dos direitos coletivos, em especial da negociação coletiva.

Por meio de uma regulação detalhada e específica, a negociação poderia, entre outros aspectos, dispor sobre uso da tecnologia digital, recolhimento de dados, utilização de algoritmos para orientar e disciplinar a força de trabalho, propriedade e gerenciamento dos dados e garantir que as decisões que afetem os trabalhadores, quando baseadas em dados coletados por meio da inteligência artificial, sejam adotadas por humanos [9].

A regulação do trabalho, a ser construída por instrumentos diversos, em âmbitos também diversos, deve ser complementada por meio de múltiplas iniciativas dos governos. O manejo de incentivos fiscais para estimular estratégias empresariais tecnológicas sustentáveis precisa ser potencializado. O incremento espetacular de produtividade e riqueza decorrente do uso intensivo da alta tecnologia precisa ser redistribuído de forma socialmente justa.

Além do mais, a desoneração dos encargos incidentes sobre os salários, tendo como contrapartida o aumento da carga tributária sobre atividades baseadas na automação em grande escala, permitiria devolver à sociedade ao menos uma parte dos enormes financeiros auferidos por gigantescas organizações empresariais.

À guisa de conclusão, a despeito dos avanços cada vez mais crescentes das novas tecnologias, sempre será reservado ao trabalho o lugar que ele merece, e para o qual sempre foi vocacionado desde os tempos imemoriais: o de centralidade, uma vez que se confunde com o próprio sentido do humano.

Isso porque, mesmo num contexto de ampliação e intensificação do uso das novas tecnologias, da digitalização, da robotização e da inteligência artificial, é difícil imaginar um cenário em que o trabalho humano e, no limite, o próprio homem será substituído pela máquina, justamente ela que, com o apoio do Direito, só existe em razão do ser humano.

O desafio da regulação jurídica, ao intentar “controlar o futuro”, é fazer do trabalho um produto da inteligência humana que garanta a harmonização prática entre desenvolvimento tecnológico, redistribuição de riqueza e poder e coexistência social com justiça e dignidade.

Referências

— BRAUDEL, Fernand. Civilización material, economia y capitalismo. Tomo III. Madrid: Alianza Editorial, 1984.

— CARELLI, Rodrigo de Lacerda. O trabalho em plataformas e o vínculo de emprego: desfazendo mitos e mostrando a nudez do rei. In: CARELLI, Rodrigo de Lacerda; CAVALCANTI, Tiago Muniz; FONSECA, Vanessa Patriota da (org). Futuro do trabalho: os desafios da revolução industrial na sociedade. Brasília: ESMPU, 2020.

— DROCKÈS, Emmanuel. Os empregados das plataformas. In: CARELLI, Rodrigo de Lacerda; CAVALCANTI, Tiago Muniz; FONSECA, Vanessa Patriota da (org). Futuro do trabalho: os desafios da revolução industrial na sociedade. Brasília: ESMPU, 2020.

— STEFANO, Valerio De. Automação, inteligência artificial e proteção laboral: patrões algorítmicos e o que fazer com eles. In: CARELLI, Rodrigo de Lacerda; CAVALCANTI, Tiago Muniz; FONSECA, Vanessa Patriota da (org). Futuro do trabalho: os desafios da revolução industrial na sociedade. Brasília: ESMPU, 2020.

— UGUINA, Jesús R. Mercader. El futuro del trabajo en la era de la digitalización y la robótica. Valencia: Tirant lo Blanch, 2017.

Notas

[1] As atividades desenvolvidas são as mais diversas, sujeitando-se a regimes jurídicos muito diversificados, a exemplo daquelas desenvolvidas por plataformas como a Amazon, Mercado Livre, Airbnb, GetNinjas e Uber. Para melhor compreender as distinções, conferir CARELLI, Rodrigo de Lacerda. O trabalho em plataformas e o vínculo de emprego: desfazendo mitos e mostrando a nudez do rei, 2020. Para aferir os fundamentos para aplicação do regime da relação de emprego a certos trabalhadores de plataformas, veja-se DROCKÈS, Emmanuel. Os empregados das plataformas, 2020.

[2] BRAUDEL, Fernand. Civilización material, economia y capitalismo, 1984, p. 470.

[3] UGUINA, Jesús R. Mercader. El futuro del trabajo en la era de la digitalización y la robótica, 2017, p. 21.

[4] STEFANO, Valerio De. Automação, inteligência artificial e proteção laboral: patrões algorítmicos e o que fazer com eles, 2020, pp. 25-34.

[5] Idem, ibidem.

[6] Idem, ibidem.

[7] No Brasil, tal regulamentação ocorreu apenas recentemente e de modo parcial, por meio da Lei nº 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)

[8] STEFANO, Valerio De. Automação, inteligência artificial e proteção laboral: patrões algorítmicos e o que fazer com eles, 2020, p. 50.

[9] Idem, p. 52.

Arnaldo Boson Paes é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região (Piauí), doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em Direito das Relações Sociais pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM/Espanha), mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e em Direito das Relações Sociais pela Universidad de Castilla-La Mancha, especializado em Direito pela Universidad de Castilla-La Mancha e pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí e é professor universitário da Uninassau (Teresina).

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