Trabalhadoras no escuro: profissionais de enfermagem e o combate à pandemia do coronavírus

Cristina Pereira Vieceli

No dia 12 de maio, comemoramos o dia internacional das enfermeiras, enfermeiros e da enfermagem. A escolha da data é uma homenagem à enfermeira e estatística londrina Florence Nightingale. Criadora da enfermagem moderna, Nightingale ficou conhecida como a dama da lâmpada, já que usava este instrumento para atender os pacientes durante a Guerra da Crimeia. No Brasil, a lâmpada de Nightingale também compõe o símbolo das(os) profissionais da enfermagem, tanto enfermeiras(os) como as(os) técnicas(os) e auxiliares de enfermagem.

Além disso, por uma coincidência, o ano de 2020 foi escolhido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o Ano Internacional da Enfermagem e Obstetrícia. O objetivo da organização é sensibilizar a população mundial sobre a importância dessa profissão, bem como angariar investimentos para a formação, qualidade e segurança do trabalho. Segundo a OMS, existe no mundo uma carência de 9 milhões de profissionais ligadas(os) à enfermagem e obstetrícia, número necessário para atingir a cobertura universal de saúde em 2030¹. A importância dessas profissionais se torna mais evidente em períodos pandêmicos, – e neste, em particular – haja vista a necessidade de atendimento em unidades de tratamento intensivo (UTIs). Além disso, a facilidade de contágio do vírus coloca a vida das(os) profissionais que estão na linha de frente no combate ao vírus em risco iminente. 

Em texto publicado em março nesta coluna², relatei a participação majoritária das mulheres nessa profissão, que compreendem 85%, tanto do total de enfermeiras(os), como das(os) auxiliares e técnicas(os) de enfermagem. Além disso, há uma grande disparidade entre as remunerações por área. Enquanto as enfermeiras recebem em média 5,16 salários mínimos e as técnicas e auxiliares de enfermagem 2,42 salários mínimos, a remuneração média dos médicos nas especialidades mais remuneradas permanece em 11,85 salários mínimos. As diferenças, portanto, são na ordem de 56% entre as enfermeiras e 80% entre as técnicas e auxiliares de enfermagem quando comparadas aos médicos.

As atividades de enfermagem estão ligadas aos estereótipos femininos de que as mulheres teriam aptidão natural ao cuidado, dado a questão da gestação e maternidade, e que, portanto, somos satisfeitas em realizar este trabalho de forma gratuita ou por baixos salários e péssimas condições. Por ser considerado um trabalho “de mulher”, é desvalorizado, apesar de sua importância para a vida e saúde da população. Isso pode ser percebido não somente pelos baixos salários, como também por outras condições de emprego. 

Em 2015, a Confederação Nacional da Enfermagem (Cofen) em parceria com a Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), lançou a pesquisa “Perfil da Enfermagem no Brasil”³. Dentre os dados levantados, chama a atenção para o percentual elevado de profissionais que relataram sentir desgaste nas atividades. Os dados indicam que 64,2% das(os) técnicas(os) e auxiliares de enfermagem relataram sentir-se desgastadas(os) na profissão; esse percentual permaneceu em 71,7% entre as(os) enfermeiras(os). 

A profissão da enfermagem é caracterizada por extensas jornadas de trabalho. A mesma pesquisa identificou que 38,6% da equipe de enfermagem trabalhava mais de 41 horas semanais, dentre as quais 3,4% mais de 80 horas. Mesmo com jornadas prolongadas, em torno de 50% da equipe de enfermagem relatou que não tinham espaço para descanso no local de trabalho.  

Este ano, a profissão da enfermagem passou a ser mais visibilizada em função da pandemia. As(os) enfermeiras(os) no Brasil, assim como Florence Nightingale, trabalham no escuro, mas a condição atual não se caracteriza pela falta de iluminação física, e sim pelas condições de trabalho precárias, escassez de informações, descaso com a vida, falta de equipamentos, de medicamentos e de responsabilidade política dos nossos governantes. 

O embate político acerca das melhores medidas a serem tomadas durante a pandemia colocaram na mesa uma falsa dicotomia entre “economia e saúde”, “economia e a vida das pessoas”, levando à troca de dois ministros da saúde (enquanto escrevo ainda não temos um nome oficial para chefiar a pasta). Além disso, a saúde pública sofre com o contingenciamento de gastos, sufocada pelo Novo Regime Fiscal, decretado pela Emenda Constitucional n. 95/2016. 

Os resultados do Novo Regime Fiscal podem ser vistos já em 2017 pelos dados divulgados na Conta Satélite da Saúde pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Neste ano, houve uma queda de 17,07% nas despesas do governo ligadas à aquisição de medicamentos em relação ao ano anterior. Além disso, as despesas do governo voltadas para a saúde pública apresentaram um crescimento de 2,4%, porém, seguindo uma tendência de desaceleração, que ocorre desde 2014 (Gráfico 1). 

Gráfico 1 – Variação das despesas do governo voltadas para a saúde pública e medicamentos para uso humano, 2011 – 2017

Fonte: Elaboração da autora com base na Conta Satélite da Saúde, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

A queda das despesas governamentais, tanto com a saúde pública, como também na aquisição de medicamentos, impacta no atendimento da população, principalmente a de baixa renda. Apesar da importância do Sistema Único de Saúde (SUS), há uma necessidade urgente de ampliar os investimentos em saúde pública. Evidência disso é que em 2017 as despesas de saúde do governo brasileiro representaram 3,9% do PIB. Em comparação, a média dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) era de 6,5%⁴.  

O baixo investimento em saúde no país, somado à instabilidade política, impacta no atendimento das(os) profissionais da enfermagem. A equipe de enfermagem brasileira está morrendo em quantidades alarmantes. Segundo reportagem divulgada pelo El País, desde o início da crise pandêmica o Brasil já perdeu mais profissionais de enfermagem do que a Itália e a Espanha juntas⁵. 

O Conselho Nacional de Enfermagem, lançou um portal com o controle de dados sobre a mortandade desses(as) profissionais. Pelos dados do Observatório da Enfermagem⁶, até o dia 27 de maio morreram 156 profissionais no país, dentre os quais 63,46% eram mulheres, a maior parte com mais de 40 anos. A região sudeste do país registrou 46,79% dos óbitos, seguida da região Nordeste (26,28%) e Centro-Oeste (21,15%). 

Comparativamente, no início de maio, a International Council of Nurses (ICN) estimou que no mundo há cerca de 260 mortes de enfermeiras(os). Ou seja, apesar dos dados do Cofen abrangerem todas(os) as(os) profissionais de enfermagem, não somente as enfermeiras, há uma grande possibilidade do Brasil liderar, de longe, o maior número de mortes dessa especialidade no mundo. 

Um dos fatores que se atribui a alta mortalidade de profissionais da enfermagem no Brasil, além da falta de recursos e de equipamentos de proteção individual, é a alta idade média da categoria. De acordo com dados do Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2018, 47,9% dos vínculos de empregos formais ligados à enfermagem se concentravam nas faixas etárias de 30 a 49 anos, e 37,1% possuía acima de 40 anos. Com relação às atividades de auxiliar e técnico de enfermagem, 34,4% possuía entre 30 a 39 anos e 50% acima de 40 anos. No caso do total dos vínculos de empregos formais no País, 31% possuía 30 a 39 anos e 41% acima de 40 anos. Os vínculos com até 29 anos concentravam 28% da classe trabalhadora formal (Tabela 1). Ou seja, existe uma maior incidência desses profissionais entre as faixas etárias mais maduras. Isso deve ser visto com atenção pelo governo, haja vista a maior vulnerabilidade desta camada populacional de vir à óbito ao contrair  a COVID-19.

Tabela 1 – Distribuição dos vínculos de empregos formais ligados às famílias de enfermagem, auxiliar de enfermagem e total, Brasil, 2018

Fonte: Elaboração própria com base no Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS)/Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)

As perdas com as(os) profissionais ligadas(os) à saúde são multifatoriais, pois impactam tanto no combate à pandemia, como também nas suas famílias e pessoas amadas, ao Estado e à toda a sociedade, pela perda do investimento em profissionais qualificadas(os) que poderiam permanecer atendendo a população. 

A valorização do trabalho da enfermagem não deveria ser pauta somente durante o período pandêmico, quando este se torna mais visibilizado. É um trabalho essencial para a manutenção da saúde e cuidados da população e, por conseguinte, as(os) profissionais que o exercem devem fazê-lo de forma segura, em condições dignas. No entanto, o que enxergamos é o descaso pela morte das(os) trabalhadoras(os) consonante com um grande apagão democrático e institucional.

Notas

*Agradeço a revisão e sugestões de Róber Iturriet Ávila.

**Indico sobre esse assunto o podcast “Cuidar, verbo coletivo”, Episódio 3: trabalho das profissionais da enfermagem.

[1] https://www.who.int/news-room/campaigns/year-of-the-nurse-and-the-midwife-2020

[2] http://www.dmtemdebate.com.br/covid-19-nao-e-neutro-ao-genero/

[3] http://www.cofen.gov.br/perfilenfermagem/index.html#apresentacao

[4] Conta Satélite de Saúde: Brasil 2010-2017.

[5] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-06/brasil-ja-perdeu-mais-profissionais-de-enfermagem-para-o-coronavirus-do-que-italia-e-espanha-juntas.html

[6] http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/


Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutoranda em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, colunista do site DMT e integra o coletivo Movimento Economia Pró-Gente.

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