Terceirização sem limites: a crônica de uma tragédia social anunciada

Gabriela Neves Delgado e Renata Queiroz Dutra

Fonte: Jota
Data original da publicação: 04/09/2018

No último dia 30/8/2018, o Plenário do STF acolheu a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 324, ajuizada pela Associação Brasileira do Agronegócio, e deu provimento ao Recurso Extraordinário (RE) nº 958.252, da Empresa Cenibra, de Minas Gerais, com repercussão geral, para estabelecer a tese de que “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho [sic] entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária das empresas contratantes”.

Votaram pela terceirização irrestrita os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux (relatores), Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cármen Lúcia. Contra a terceirização sem limites e defendendo a manutenção da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (Súmula nº 331 do TST) votaram Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello.

Durante o julgamento, restaram polarizadas duas teses: a tese derrotada, lastreada em estudos científicos do campo do Direito Constitucional do Trabalho, da Sociologia do Trabalho e da Economia do Trabalho no sentido de afirmar a proteção social ao trabalho e limitar a terceirização como mecanismo jurídico para evitar a precarização que esta engendra, num conteúdo argumentativo que afirma o caráter social da Constituição de 1988; e a tese vencedora, propaladora da “modernização da economia”, da liberdade de contratação e da promessa de criação de empregos, capitaneada pela maximização das liberdades de iniciativa extraídas do art. 5º, II, da Constituição de 1988 (princípio da legalidade). Os defensores da corrente vencedora entendem que os efeitos precarizantes levantados pelos demais julgadores seriam externalidades e não contingências do processo de terceirização, devendo ser reprimidos os efeitos nocivos, porém não a terceirização em si.

O julgamento realizado pelo STF não se referia à nova legislação trabalhista, advinda das Leis nº 13.429/2017 e 13.467/2017, mas sim às situações anteriores à vigência dessa normatividade. Interessante, todavia, não ter constado do julgamento que o resultado que ali se discutia, em certa medida, antecipava os efeitos liberalizantes introduzidos na ordem jurídica pela denominada reforma trabalhista, que também previu a terceirização de atividades fins e meio, indistintamente.

São amplamente conhecidos os efeitos precarizantes da terceirização do trabalho, que já foram vastamente mapeados por pesquisas científicas dos mais diversos campos do conhecimento1. Os impactos da contratação terceirizada no patrimônio jurídico dos trabalhadores, bem como os prejuízos por esta causados à saúde do trabalhador, à afirmação de identidade social no trabalho, à organização coletiva dos trabalhadores e ao fortalecimento dos seus processos negociais são reiteradamente confirmados por pesquisas científicas. as quais restaram referidas nos votos condutores da tese vencida no julgamento.

É nesse sentido a constatação de que o Direito não pode fechar os olhos à realidade, que deve ser compreendida como parte constitutiva do próprio Direito. Assim, Delgado e Amorim já apresentaram a compreensão de que, embora formalmente não suprima direitos trabalhistas, a terceirização já se mostrou suficiente para torná-los rarefeitos, na medida em que reduz sua importância econômica e sua exequibilidade, distanciando o trabalhador da unidade produtiva que por ele deveria se responsabilizar2.

Ao contrário do que sustentaram alguns ministros, a garantia de direitos sociais não se materializa num processo formal e abstrato de reconhecimento de direitos, mas na concretude dos processos de cidadania e inserção social que o trabalho regulado proporciona. Esse trabalho, certamente, não é o trabalho terceirizado, assim como direitos fundamentais e democracia não são formas vazias, mas precisamente um conteúdo jurídico-político firmado por meio do pacto democrático de 1988.

Não foi esse o entendimento acolhido pelo STF, que capitaneia, mais uma vez, a tese menos protetiva do caráter social da Constituição de 1988. A pergunta que fica é: se diante dos limites colocados pela Súmula nº 331 do TST, já era difícil conter o avanço da precarização e da intermediação fraudulenta de mão de obra nas relações de trabalho, o que podemos esperar do cenário do trabalho no país a partir do momento que o STF autoriza a prática da terceirização de todas as atividades empresariais? O que dizer do advento dessa decisão, em um contexto de crise econômica, no qual a ordem do mercado tem sido o corte de custos independentemente do que esses custos representem?

As perspectivas de aprofundamento das desigualdades sociais e empobrecimento dos trabalhadores são óbvias. A lista de “coincidências” é grande e, por si só, faz concluir pela inexistência de “acaso”, mas sim de uma causalidade inevitável entre os fenômenos da terceirização e da precarização: estamos falando de salários menores, jornadas mais extensas (e intensas), maior rotatividade no mercado de trabalho, mais acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, mais ocorrências de redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo, mais ocorrências de trabalho infantil, menores taxas de sindicalização e mais fragilidade nos processos negociais coletivos.

Entretanto, mais do que as evidências sociais concretas dos efeitos desse arranjo contratual precário e do comprometimento que advém à Ordem Constitucional de 1988 a partir da última decisão do STF, algumas perguntas imediatas surgem quando os profissionais do Direito se colocam diante do desafio de aplicar a decisão (vinculante) do Supremo Tribunal Federal. É que a terceirização interfere em pressuposto basilar do Direito do Trabalho brasileiro – a relação bilateral de emprego. Uma vez afastada essa base, que passa a poder ser subvertida pela generalização da contratação trilateral, inúmeras perguntas que a tese vencedora no STF não se ocupou em responder se colocam para o Direito do Trabalho após o dia 30/8/2018.

Quando o Supremo autoriza a terceirização das atividades-fim das empresas tomadoras, levantando o obstáculo específico colocado pela Súmula nº 331 do TST, o que nos diz sobre a vigência dos artigos 2º e 3º da CLT? Sim, aqueles dispositivos que estabelecem os pressupostos fático-jurídicos para a configuração da relação de emprego, os quais devem ser aferidos a partir da primazia da realidade, princípio basilar do Direito do Trabalho. Caso terceirizada uma atividade-fim, e, diante dela, sejam identificados, entre o trabalhador contratado de forma terceirizada e a empresa tomadora de serviços, a presença de pessoalidade e subordinação jurídica ao tomador de serviços, deverá o intérprete do Direito afastar o efeito concreto dos artigos 2º e 3º da CLT, que é o reconhecimento do vínculo empregatício direto? E, em caso afirmativo, quais passam a ser então os critérios para aferição da existência da relação de emprego? Difícil sustentar o edifício do Direito do Trabalho, quando solapam o seu alicerce, sem colocar nada no lugar…

Outro ponto que foi desconsiderado na decisão do Supremo diz respeito à possibilidade de fraude nas relações terceirizadas, com a dinâmica de intermediação da força de trabalho obreira. Importante lembrar que desde o processo de institucionalização do Direito do Trabalho, nas primeiras décadas do Século XX (com a Constituição da OIT de 1919 e a Declaração de Filadélfia de 1944, por exemplo), há proibição da intermediação de mão de obra, segundo o princípio de que “o trabalho não é uma mercadoria”. Por certo, a terceirização de atividade-fim mercantiliza o trabalho humano, por se apresentar como uma relação de trabalho desprovida de proteção normativa, aproximando realidades de fraude e de trabalho regulado. Nesse contexto, qual seria então o papel que a decisão do STF atribuiria ao art. 9º da CLT? Para além disso, em respeito ao domínio de proteção da pessoa humana, como se cumpriria a força supralegal dos tratados de direitos humanos em matéria trabalhista nos casos de fraude com intermediação de mão de obra?

Mais importante, considerando que o enquadramento sindical em nosso país é eleito pela atividade econômica do empregador e que não existe liberdade sindical plena (uma vez que o princípio da unicidade persiste afirmado no art. 8º, I, da CF/88), como se dará o enquadramento sindical da massa de terceirizados que passará a existir após essa decisão? Teremos um sindicato geral dos terceirizados no Brasil, com força para negociar com todos os ramos de atividade econômica? Ou o Supremo assumirá, como desdobramento do seu julgado, a necessidade de concretizar a liberdade sindical plena no país, nos termos da Convenção nº 87 da OIT, e autorizará que os trabalhadores terceirizados elejam o sindicato mais representativo ao qual desejem se filiar? Ou, ainda, se filiarão os trabalhadores terceirizados ao sindicato dos empregados da empresa tomadora de serviços? Qual sindicato terá legitimidade para conduzir negociações coletivas (inclusive com aptidão para rebaixar direitos trabalhistas, na esteira da jurisprudência do próprio STF, como demonstra o RE 590.415, da Relatoria do ministro Luís Roberto Barroso) em nome da nova massa de trabalhadores terceirizados?

Que dirá o Supremo Tribunal Federal das dispensas coletivas de empregados contratados diretamente para recontratação de outros trabalhadores, de forma terceirizada? Note-se que em tempos de crise, o tema das dispensas coletivas tem batido às portas do Poder Judiciário trabalhista, que teve sua jurisprudência civilizatória confrontada pelo liberalizante art. 477-B inserido na CLT pela Lei nº 13.467/2017. Se o objetivo do STF era garantir empregos, como solucionará esse conflito? Enfrentará as dispensas coletivas que a sua própria decisão pode inspirar?

O que dirá o Supremo quando a legitimação de empresas que não assumem os riscos inerentes ao exercício da sua atividade econômica começar a causar instabilidades concorrenciais e problemas consumeristas, desestabilizando ainda mais a economia? Isso porque, na esteira do entendimento de Calixto Salomão Filho, na terceirização não há coincidência entre os centros jurídicos de imputação de responsabilidade e risco pelo desempenho independente da atividade. Arremata o autor que todo agente econômico que atua no mercado sem assumir riscos/responsabilidades configura risco ao próprio funcionamento das relações concorrenciais do sistema capitalista e da sociedade3.

O STF, na decisão de 30/8/2018, infelizmente não ofereceu respostas, nem pacificou conflitos, tampouco trouxe segurança jurídica. Abre caminho para um período de incertezas jurídicas que terá que ser respondido por meio de profunda reconstrução dos pilares de proteção ao trabalho no Brasil. Abre caminho ainda para o aprofundamento de processos de precarização que a exploração ilimitada do trabalho engendra e coloca em xeque um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, do qual deveria ser defensor: a valorização social do trabalho.

A construção jurídica nacional terá que aprender, por meio de um remédio amargo, que não é possível interpretar a “valorização social do trabalho” como um enunciado retórico de uma ordem jurídica que, na verdade, é regida por imperativos econômicos. Relembraremos, a duras penas, que os limites do Direito e da Economia são colocados em diferentes searas justamente porque aquilo que o Direito pode assegurar em termos de padrões civilizatórios, democracia e preservação de garantias fundamentais, não pode ser oferecido pelas meras movimentações econômicas. Será preciso experimentar o empobrecimento de quem trabalha para entender, como afirma Laura Carvalho, que “A proteção aos mais vulneráveis sempre pode caber no orçamento, mas o genocídio jamais caberá na civilização”4.

Por fim, é importante registrar que as reflexões que movem esse artigo, embora lastreadas em preocupações de natureza econômica e sociológica profundas que emanam do compromisso com a realidade social brasileira, tem assento exatamente na leitura atenta e técnica da Constituição Federal, que não pode ser interpretada pinçando-se o art. 5º, II, como se ele não estivesse inserido num sistema jurídico conformado pelos artigos 1º, III e IV, 3º, 6º, 7º a 11, 170, § 1º, III, da Constituição, que se compromete equanimemente com a dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o combate às desigualdades sociais e regionais, a justiça social, a busca do pleno emprego e a função social da propriedade.

———————————-

1 ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018; COUTINHO, Grijalbo Fernandes. Terceirização: máquina de moer gente trabalhadora. São Paulo: LTr, 2015; DELGADO, Gabriela Neves; AMORIM, Helder. Os limites constitucionais da terceirização. São Paulo: LTr, 2014; DELGADO, Maurício Godinho Delgado. Curso de direito do trabalho. 17ª ed. São Paulo: LTr, 2018; DRUCK, Graça. Trabalho, Precarização e resistências. Caderno CRH. Salvador: EDUFBA, v. 24, p. 35-54, 2011; DRUCK, Graça; BATISTA, Jair. Precarização, Terceirização e ação sindical. In: DELGADO, Gabriela. PEREIRA, Ricardo. Trabalho, Constituição e Cidadania. São Paulo: LTr, 2014. Pp. 31-45; DUTRA, Renata Queiroz. Trabalho, regulação e cidadania: a dialética da regulação social do trabalho. São Paulo: LTr, 2018; PAIXÃO, Cristiano; LOURENÇO FILHO, Ricardo. Impactos da terceirização no mundo do trabalho: tempo, espaço e subjetividade. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho. vol. 80, nº 3, jul/set 2014, p. 58-74; TEIXEIRA, Marilane Oliveira; ANDRADE, Helio Rodrigues de; COELHO, Elaine Dávila (Orgs.). Precarização e terceirização: faces da mesma realidade. 1ed.São Paulo: Sindicato dos Químicos, 2016, v. 1, entre outras relevantes pesquisas.

2 DELGADO, Gabriela Neves; AMORIM, Helder. Os limites constitucionais da terceirização. São Paulo: LTr, 2014.

3 Palestra proferida por Calixto Salomão Filho, professor Titular de Direito comercial e concorrencial da USP, em 7/11/2014, no Seminário Internacional “Direito do Trabalho e Sindicalismo: Dilemas e Desafios Atuais na Europa, América Latina e Brasil”, na cidade de São Paulo – SP. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Bqe3etgctMk Acesso em 2/9/2018, 20h36min.

4 CARVALHO, Laura. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Ed. Todavia, 2018, p. 160.

Gabriela Neves Delgado é professora associada de Direito do Trabalho da UnB. Líder do Grupo de Pesquisa “Trabalho, constituição e cidadania” (CNPq/UnB).

Renata Queiroz Dutra é professora adjunta de Legislação Social e Direito do Trabalho da UFBA. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa “Trabalho, constituição e cidadania” (CNPq/UnB).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *