Terceirização e trabalho análogo ao escravo: coincidência?

A adoção da terceirização potencializa a capacidade de exploração do trabalho e reduz a probabilidade de atuação dos agentes que poderiam impor limites.

Vitor Araújo Filgueiras

Fonte: Repórter Brasil
Data original da publicação: 24/06/2014

Dois dos fenômenos do chamado mundo do trabalho mais divulgados, pesquisados e debatidos no Brasil nas últimas duas décadas são a terceirização e o trabalho análogo ao escravo. Eles estão envoltos em ferrenha disputa no bojo das relações entre capital e trabalho, assim como no conjunto da sociedade, pois constituem, respectivamente, estratégia central no atual perfil predominante de gestão do trabalho e o limite do assalariamento no capitalismo brasileiro.

Estamos na iminência de possível inflexão da regulação da terceirização e do trabalho análogo ao escravo. Quanto a este último, foi promulgada este mês emenda à Constituição que prevê a expropriação de propriedade na qual for flagrada exploração de trabalhadores nessas condições. Contudo, empregadores e suas entidades representativas estão tentando aproveitar a regulamentação dessa emenda para alterar o conceito de trabalho análogo ao escravo.

Sua intenção é restringir o crime à coerção individual direta e absolver todas as formas de opressão típicas da coerção do mercado de trabalho, que são aquelas próprias do capitalismo. Assim, se reduziriam drasticamente os limites à exploração do trabalho.

Terceirização no STF

Quanto à terceirização, o Supremo Tribunal Federal decidiu reconhecer repercussão geral à decisão que será tomada em processo sobre o tema, que servirá como precedente fortíssimo à atuação de todo o Judiciário, demais instituições de regulação do trabalho e, em especial, às empresas. O ministro Luiz Fux deu provimento ao recurso patronal de embargos declaratórios em recurso extraordinário com agravo regimental em 2013 (baixe a decisão em PDF), no que foi integralmente acompanhado pelos demais componentes da Turma, para reconhecer repercussão geral ao tema da terceirização de atividade-fim, em 1º de abril de 2014 (baixe a decisão em PDF; acompanhe os desdobramentos da ARE 713211 MG direto no site do STF).

As empresas que terceirizam buscam, dentre outros objetivos, externalizar custos e diversos riscos (dos adoecimentos laborais ao próprio sucesso do negócio). Além disso, tentam transferir (afastar) a incidência da regulação exógena (Estado e sindicatos) do seu processo de acumulação, externalizando ao ente interposto o encargo de ser objeto de qualquer regulação limitadora.

A adoção da terceirização pelas empresas potencializa a capacidade de exploração do trabalho e reduz a probabilidade de atuação dos agentes que poderiam impor limites a esse processo. É exatamente nessa combinação de fatores que reside a relação entre terceirização e trabalho análogo ao escravo.

Supremacia empresarial

Ao incrementar a supremacia empresarial sobre o trabalhador, e diminuir as chances de atuação de forças que limitam esse desequilíbrio, a gestão do trabalho por meio da terceirização engendra tendência muito maior a ultrapassar as condições de exploração consideradas como limites à relação de emprego no quadro jurídico brasileiro.

Dos dez maiores resgates de trabalhadores em condições análogas à de escravos no Brasil em cada um dos últimos quatro anos (2010 a 2013), em 90% dos flagrantes os trabalhadores vitimados eram terceirizados

Assim, a terceirização tende a promover o trabalho análogo ao escravo mais do que uma gestão do trabalho estabelecida sem a figura de ente interposto, se vinculando às piores condições de trabalho apuradas em todo o país.

Dos 10 maiores resgates de trabalhadores em condições análogas à de escravos no Brasil em cada um dos últimos quatro anos (2010 a 2013), em 90% dos flagrantes os trabalhadores vitimados eram terceirizados, conforme dados obtidos a partir do total de ações do Departamento de Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) do Ministério do Trabalho e Emprego.

Note-se que esses dados não discriminam setor da economia, porte das empresas, ou regiões do país. Poder-se-ia alegar que seriam terceirizações espúrias, constituídas por empresas informais, ou pessoas físicas, como “gatos”. Ou seja, não estaríamos tratando da “verdadeira” terceirização, mas apenas da “má”.

Trabalho escravo

Para analisar a procedência dessa eventual alegação, vejamos os dados concernentes aos resgates nos quais os trabalhadores eram formalizados, casos típicos da presumida “verdadeira” terceirização. Entre os resgates ocorridos em 2013, nos oito maiores casos em que a totalidade dos trabalhadores eram formais, todos eles eram terceirizados formalizados por figuras interpostas. Já no grupo de resgates com parte dos trabalhadores com vínculo formalizado, das dez maiores ações, em nove os trabalhadores resgatados eram terceirizados.

Entre esses resgates com terceirizados formalizados figuravam desde médias empresas desconhecidas, até gigantes da mineração e da construção civil, do setor de produção de suco de laranja, fast food, frigorífico, multinacional produtora de fertilizantes, obras de empresas vinculadas a programas do governo federal.

O setor que mais tem se destacado em número de flagrantes de trabalhadores em situação análoga à de escravos nos últimos anos confirma essa incidência de trabalho terceirizado nos resgates. Dos 22 flagrantes ocorridos em construções em 2011 e 2012, 19 ocorreram com terceirização, incluindo desde pequenas empresas, até gigantes do setor.

Assim, há fortes indícios de que terceirização e trabalho análogo ao escravo não simplesmente caminham lado a lado, mas estão intimamente relacionados.

Vitor Araújo Filgueiras é doutor em Ciências Sociais (UFBA), pós-doutorando em Economia (UNICAMP), pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT) da UNICAMP e auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego.

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