Suprema Corte Britânica julgou ilegais normas semelhantes às da reforma trabalhista

Pedro Henrique Koeche

Em julho deste ano, a Suprema Corte do Reino Unido julgou um recurso apresentado pelo UNISON – Sindicato dos Servidores Públicos do Reino Unido -, o segundo maior sindicato britânico. Embora distante mais de 8.000 quilômetros do Brasil, a matéria julgada não é estranha ao recente debate jurídico brasileiro: tratava-se, no julgamento, de discussão acerca da legalidade de normas que pretendiam inviabilizar o acesso dos trabalhadores britânicos à Justiça, objetivo recentemente incorporado à legislação brasileira através da reforma trabalhista.

Através da Empolyment Tribunals and the Employment Appeal Tribunal Fees Order 2013, o governo britânico fixou taxas para o acesso de trabalhadores aos tribunais trabalhistas. Alegadamente buscava, através de tais taxas, transferir parte dos custos dos tribunais trabalhistas para os trabalhadores, dissuadir demandas improcedentes e estimular acordos prévios; qualquer semelhança com as propaladas “boas intenções” da nova legislação trabalhista brasileira não é mera coincidência.

O valor de tais taxas dependia do tipo da demanda ajuizada. Para o ajuizamento de demandas mais simples, passou-se a cobrar dos trabalhadores taxa no valor de 390 Libras Esterlinas (custo equivalente a mais de 1.500 reais), e para demandas mais complexas – envolvendo, por exemplo, questionamentos acerca de demissões injustas, equiparação salarial e discriminação de trabalhadores -, passou-se a cobrar o montante de 1.200 Libras Esterlinas (valor equivalente a quase 5.000 reais).

Não é preciso grande conhecimento jurídico para compreender que a “modernidade” levada à legislação britânica através da referida taxação buscava, ainda que de forma dissimulada, dificultar o acesso dos trabalhadores ao Poder Judiciário. Como que num arroubo de inspiração, os legisladores brasileiros aprovaram, através da reforma trabalhista – transformada na Lei nº 13.467/17 após a sanção presidencial -, dispositivos legais que possuem o mesmo objetivo.

Dentre os diversos artigos que buscam afastar a jurisdição trabalhista dos conflitos decorrentes de relações de trabalho, alguns já foram alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta no último dia 28 de agosto pelo Procurador Geral da República. Na ADI 5766, o Ministério Público Federal aponta a inconstitucionalidade do “caput” e do § 4º recém incorporados ao art. 790-B da Consolidação das Leis do Trabalho, do novel § 4º do art. 791-A da CLT e, ainda, do novo § 2º do art. 844 da referida lei.

Os dispositivos em questão impõem ao trabalhador a responsabilidade pelo pagamento de honorários periciais em caso de a perícia ser desfavorável à sua pretensão, mesmo que o obreiro seja beneficiário da justiça gratuita (art. 790-B, caput e § 4º); a obrigação de pagamento de honorários sucumbenciais ao advogado da empresa reclamada, mesmo que o trabalhador seja beneficiário da justiça gratuita, podendo a reclamada buscar recursos no recebimento de valores decorrentes de qualquer demanda trabalhista (art. 791-A, § 4º); e, por fim, a necessidade de pagar as custas processuais de reclamatória em que tenha faltado à audiência, mesmo que seja beneficiário da justiça gratuita (art. 844, § 2º). Veja-se que os artigos mencionados obrigam o trabalhador ao pagamento de custas processuais e de honorários advocatícios mesmo que se tenha reconhecido no próprio processo a sua incapacidade financeira de arcar com estes valores.

Mas para além dessas evidentes barreiras ao exercício do direito fundamental de acesso à Justiça, a reforma trabalhista ainda incorporou outros dispositivos que buscam afastar a jurisdição trabalhista das relações de trabalho. É o caso da nova redação do § 3º do art. 790 da CLT (que visa limitar a concessão do benefício da justiça gratuita apenas aos trabalhadores que recebam salário igual ou inferior a 40% do limite máximo do benefício do RGPS – hoje equivalente a cerca de R$ 2.200,00), do novel art. 507-B da lei (que prevê a possibilidade de assinatura de uma quitação anual do contrato de emprego, impedindo, assim, posteriores questionamentos judiciais por parte do trabalhador) e do novo § 3º do art. 8º da CLT (que busca impedir a Justiça do Trabalho de declarar a nulidade de cláusulas de acordos e convenções coletivas de trabalho que gerem prejuízos aos trabalhadores, limitando a jurisdição ao exame dos requisitos formais dos instrumentos coletivos)

Como bem apontado pelo Procurador Geral da República Rodrigo Janot, os dispositivos legais incorporados pela reforma trabalhista violam os princípios constitucionais da isonomia (previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal), da ampla defesa (art. 5º, LV da CF), do devido processo legal (art. 5º, LIV, da Carta Magna) e, sobretudo, da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF).

Pois foi justamente com base no direito fundamental de acesso à Justiça que a Suprema Corte do Reino Unido declarou ilegais as “taxas” estabelecidas para o ajuizamento de demandas trabalhistas e a interposição de recursos nessas lides. Na ocasião, a corte decidiu, à unanimidade, que a imposição de tais taxas implicava no afastamento da jurisdição dos tribunais trabalhistas britânicos, ainda que muitos dos direitos trabalhistas previstos na legislação britânica e europeia só sejam efetivamente aplicados através de julgamentos por parte dos tribunais trabalhistas – a realidade não é diferente da brasileira, em que muitos empregadores deliberadamente resistem ao cumprimento de obrigações decorrentes de normas trabalhistas, seja sabendo que grande parte dos trabalhadores não ajuizarão demandas exigindo seus direitos, seja contando com o fato de que a correção dos créditos trabalhistas na Justiça é ínfima.

Ao julgar o caso, a Suprema Corte Britânica considerou o fato de que a imposição de taxas para o ajuizamento de demandas levou a uma dramática e persistente queda no número de ações levadas aos tribunais trabalhistas, sendo que muitos trabalhadores deixaram de buscar seus direitos com receio de perderem as ações e ainda serem obrigados a arcar com custas processuais. O tribunal destacou, ainda, que o direito de acesso à justiça não é restrito às ações procedentes, sendo que o desrespeito de direitos trabalhistas não deveria passar a ser aceito como consequência do justificado medo de trabalhadores em pagar taxas judiciais.

Daí decorreu que a Suprema Corte Britânica decidiu por privilegiar o direito fundamental de acesso à justiça, declarando a ilegalidade de normas que impunham graves óbices ao ajuizamento de demandas trabalhistas. Resta saber se o Supremo Tribunal Federal se curvará à propalada “modernidade” – afastada pelo ordenamento jurídico de países ditos modernos – ou se trilhará o mesmo caminho da Suprema Corte Britânica, de modo a proteger o direito dos trabalhadores brasileiros à tutela jurisdicional.

Pedro Henrique Koeche Cunha é advogado trabalhista, pós-graduando em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

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