Sobre trabalhadores migrantes, refugiados e humanos

Em tempos de símbolos midiáticos que falam por si, o vídeo de uma jornalista derrubando propositalmente, durante um tumulto na Hungria, um homem migrante que carregava uma criança bem representa o que está acontecendo e o que ainda pode vir por aí.

Thiago Gurjão Alves Ribeiro

O drama dos refugiados sírios ganhou o noticiário nos últimos meses. A terrível cena do menino morto em uma praia da Turquia reforçou a comoção global, sendo mais uma morte entre os milhares de refugiados que tentam alcançar o continente europeu fugindo da guerra, da perseguição ou de outras situações que os forçam a buscar auxílio humanitário.

Se, por um lado, a comoção motivou uma série de gestos individuais de solidariedade e a cobrança por um maior engajamento das principais potências europeias quanto ao tema, a reação de determinados países causa extrema preocupação quanto à efetividade das normas internacionais que asseguram direitos humanos – supostamente – elementares.

E não menos preocupantes são algumas reações individuais. Em tempos de símbolos midiáticos que falam por si, o vídeo de uma jornalista derrubando propositalmente, durante um tumulto na Hungria, um homem migrante que carregava uma criança bem representa o que está acontecendo e o que ainda pode vir por aí.

O refúgio é um direito reconhecido em normas internacionais e, no direito brasileiro, regulado pela Lei nº 9.474/97. É assegurado a qualquer pessoa que sofra perseguição em seu Estado de origem ou residência habitual por força de sua raça, nacionalidade, religião, opinião política ou pertencimento a determinado grupo social. Por aqui, o Brasil tem acolhido refugiados sírios sem muita repercussão, mas o que tem causado certo furor é a chegada de muitos haitianos em território brasileiro.

Aos sírios tem sido reconhecido o status de refugiados no país, ao passo que aos haitianos são concedidos vistos de caráter humanitário pelo Estado brasileiro. A recepção dos haitianos tem sido marcada por extremos: esforços de acolhida e integração social por parte de pessoas, organizações sociais e algumas empresas, mas, em sentido oposto, alguns relatos de discriminação e violência.

Nesse contexto, em que dramas humanos e fluxos migratórios estão na ordem do dia, é preciso reconhecer que nos últimos tempos têm ganhado força por aqui discursos, ideias e práticas de clara natureza discriminatória. Em um fenômeno de difícil diagnóstico, ainda recente, fica a impressão de que parte da população brasileira experimenta um “mal-estar” com a maior visibilidade de grupos que tradicionalmente sofriam (e ainda sofrem) alguma espécie de exclusão, como homossexuais, negros, população pobre beneficiária de programas sociais e outros que têm assumido um maior destaque em nossa sociedade, seja pelo reconhecimento judicial de direitos, seja como consequência de políticas públicas a eles destinadas.

Como seria de se esperar, nesse perigoso cenário sobrou para os haitianos – estrangeiros, pobres e em sua maioria negros. Boatos preconceituosos em redes sociais e até vídeos com abordagens agressivas a haitianos têm sido divulgados. Há também notícias de agressões físicas, possivelmente de origem discriminatória.

Em um diálogo de “Tudo pode dar certo”, de Woody Allen, o personagem interpretado por Larry David, ao saber das atrações de determinado acampamento de férias, sugere que, em lugar daqueles divertidos “campos”, todo jovem seja levado a visitar antigos campos de concentração, para saber do que a humanidade é capaz. Não sei se mudaria alguma coisa caso fosse acolhida a sugestão do melancólico personagem na formação das atuais gerações. Talvez ajudasse aqueles capazes de compartilhar em redes sociais boatos de origem discriminatória contra haitianos, sem refletir sobre a gravidade dessa conduta e sua relação com outros atos de preconceito mundo afora.

De qualquer maneira, a alguns não custa lembrar, sempre, do que a humanidade é capaz quando se trata de discriminar o outro. A cinegrafista húngara e mesmo alguns brasileiros tampouco nos deixam esquecer.

Thiago Gurjão Alves Ribeiro é Procurador do Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso (MPT-MT) e coordenador regional da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo (CONAETE) do MPT.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *