Sobre o manifesto “Democratizar, desmercantilizar, descontaminar”: uma análise

Democratizar a empresa, desmercantilizar o trabalho e descontaminar o meio ambiente constituem três aspectos discursivos de origem histórica e cultural diversa, que combinam e desencadeiam uma sinergia virtuosa para, finalmente, levar a uma abordagem civilizadora que coloca a pessoa no centro da vida produtiva.

Hugo Barretto Ghione

Fonte: Blog do autor
Tradução: DMT
Data original da publicação: 25/06/2020

Há várias maneiras de abordar o estudo do impacto da pós-pandemia nas relações de trabalho. A doutrina jurídica nacional (Uruguai) apresentou algumas, exibidas em artigos de revistas especializadas (a Derecho Laboral nº 277 dará conta dessas aproximações) e em apresentações de eventos, livros monográficos, comentários em blogs, etc. No entanto, em nossa opinião, resta explorar outras dimensões da análise, sobre as quais se ocupará a presente contribuição.

I

O enfoque utilizado na maioria dos tratamentos dados a partir da perspectiva do trabalho tem sido a descrição e análise das políticas trabalhistas implementadas para mitigar os efeitos mais perturbadores da pandemia em relação à redução do tempo de trabalho, aumento da precariedade, desemprego temporário e demissões em massa (que representam quase 14% dos trabalhadores com seguro-desemprego no Uruguai no mês de maio).

Em alguns estudos, é dado um passo a mais ao elaborar um exercício comparativo das respostas que os sistemas jurídicos se opuseram no campo da seguridade social, à limitação das formas de término da relação de trabalho e os mecanismos de diálogo que poderiam ser estruturados no trânsito da “anormalidade” pandêmica.

O uso de algumas medidas e o descarte de outras determina não apenas as condições que se materializarão para o retorno ao trabalho e a recomposição da produção e do emprego, mas também são insumos valiosos para vislumbrar o cenário da pós-pandemia (que alguns chamam a “nova normalidade”), compondo também um esboço de projeto ou de rumo que o mundo do trabalho seguirá no futuro, especialmente em países com governos que assumiram recentemente o cargo e não tiveram tempo suficiente para explicar seus modelos de aplicação no campo das relações de trabalho (Argentina, Espanha, Uruguai, por exemplo).

II

Outra linha de estudo que foi posta em prática no Uruguai é identificar as carências ou fraquezas em nossos sistemas de proteção social e trabalhista que a crise causada pela pandemia expôs e evidenciou.

Entre os elementos mais recorrentes desses inventários de vulnerabilidades está, sem dúvida, o caso dos trabalhadores autônomos, privados ou severamente restringidos em sua renda e ausentes de toda cobertura de desemprego ou outras contingências próprias da previdência social.

Essa questão também agrava o problema da indefinição dos limites do trabalho protegido diante de circunstâncias como o trabalho fornecido a empresas que usam plataformas tecnológicas e a diluição que isso implica nos vínculos trabalhistas.

Essas novas formas de configuração de negócios são vistas como uma espécie de mudança de paradigma que desloca consigo a proteção do trabalho até ela desaparecer no altar da modernidade, quando, estritamente, não se trata de outra coisa senão de novas formas de dependência trabalhista.

Seguindo a máxima de Leopoldo Marechal, “de todo labirinto, se sai por cima “, pode-se dizer que tudo se resume a ajustar os critérios para determinar a relação de trabalho, que em sua formulação mais tradicional (subordinação jurídica) ficou um pouco atrás das inovações na organização do trabalho.[1]

A recusa persistente de certa doutrina e jurisprudência majoritária de aplicar os vários critérios atualizados pela Recomendação nº 198 da OIT, especialmente em um sistema jurídico como o uruguaio, que não possui uma definição legal de contrato de trabalho (e, portanto, não adere a nenhum elemento específico para a diferenciação das atividades oferecidas por conta própria), constitui uma auto-limitação injustificada.

Felizmente, uma posição mais renovadora de nossas práticas jurídicas vem surgindo, como a de incorporar uma infinidade de indicações que oxigenam e diversificam as maneiras de apreender o fenômeno do trabalho dependente, que também se diversificou devido às mudanças em andamento nas formas de organizar o trabalho e a produção. Um exemplo dessas mudanças foi a decisão emblemática do Tribunal de Justiça do Trabalho do primeiro turno, que considerou os motoristas da UBER como dependentes.

Outra carência que denota a crise causada pela pandemia é a insuficiência de garantias para a manutenção do emprego, sustentada no Uruguai apenas pela ligeira “penalidade” de uma compensação por demissão modesta e pela aplicação do princípio de continuidade, tal como Plá Rodríguez formulou.[2]  Em suma, a “demissão livre” é admitida, com base em uma doutrina que não revisou essas concepções, apesar da evolução persistente do mundo do direito e das normas internacionais em vigor, como o caso do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na área de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[3].

Em um inventário incompleto, resta dizer, em todo caso, que as demandas dos atores sociais (em particular, das organizações de trabalhadores) tendendo a gerar instâncias de informação e consulta sobre as políticas trabalhistas dos governos, também são um espaço às vezes vazio de conteúdo, agravado pelas políticas de excepcionalidade, às quais Agamben já chamou a atenção.

No caso uruguaio, a robustez da negociação coletiva tripartite entrou em uma zona turbulenta, pois o movimento sindical mostrou dificuldades em articular uma alternativa válida à rodada de fixação do salário mínimo para 2020 que poderia ser razoavelmente discutida com os empregadores. Essa circunstância também pode ser vista como a ponta visível do iceberg de uma visão de mundo do novo governo de agrupamento que ainda mostra vieses de indefinição sobre a manutenção de mecanismos de negociação coletiva, conforme consolidado com a Lei nº 18566, de 11 de setembro de 2009, persistentemente questionada pelas câmaras empresariais e observado pelo Comitê de Peritos da OIT.

III

Uma terceira maneira de abordar o assunto em discussão é incorporar a perspectiva do “novo normal” ou da pós-pandemia na estrutura mais ampla do “futuro do trabalho” que tanto ocupou a Organização Internacional do Trabalho, que fez desse enfoque o centro de suas propostas na perspectiva do centenário.

No Uruguai, replicando outros debates em países como Argentina e Espanha, o trabalho a distância ou teletrabalho emergiu como um elemento único do período pandêmico, um tipo de novidade que nublou parte dos analistas, que rapidamente o viram como uma panaceia e como uma oportunidade de tornar mais flexível – dito isso em um sentido neutro – a organização do trabalho.

A aceleração do teletrabalho que a pandemia trouxe desloca a discussão para os problemas que ela desencadeia (compatibilidade com a vida familiar, invasão de privacidade, horários de trabalho desregulados, aumento dos custos dos trabalhadores, etc.) e para a eventualidade de sua regulamentação legal, um dilema debatido entre padronizar para se adaptar a novas condições ou desregular a proteção preexistente.

A renda básica universal tem sido outro instrumento plausível para consideração por alguns atores da sociedade civil, sem uma clara adesão por parte dos atores sociais, talvez pelos sindicatos entenderem que ela deixa o trabalho em segundo plano, ou por parte dos empreendedores a verem como de financiamento inabarcável.

IV

Sem esgotar os modos de abordagem do objeto de tratamento nesta contribuição, uma quarta maneira de observar o impacto da pandemia é avaliar o potencial que ela possui para questionar algumas “verdades” que são naturalizadas, incorporadas ou consolidadas no discurso atual e que há anos têm apoiado a estrutura atual do pensamento trabalhista de uma maneira um tanto acrítica.

Essa abordagem, que coloca sob suspeita as rotinas de nossa dogmática e teoria de uso, é a proposta no documento assinado por acadêmicos de mais de 300 universidades de todo o mundo, denominada “Manifesto. Democratizar, desmercantilizar, descontaminar”, uma contribuição localizada precisamente em um espaço bem-vindo do revisionismo crítico.

O documento parte de uma pergunta muito básica, mas inevitável, como as questões fundamentais tendem a ser: O que a crise nos ensinou?

Nada substitui uma boa pergunta para iniciar e incentivar o caminho da reflexão e do diálogo.

Além disso, nesse caso, a resposta que vem não é exótica ou elaborada, mas, pode-se dizer, está ao nosso alcance. Trata-se de recorrer a três tópicos conhecidos; um deles quase esquecido e os outros dois quase invisíveis:

a) As pessoas não podem ser reduzidas a recursos;

b) Para evitar essa reificação, os trabalhadores devem poder participar das decisões das empresas;

 c) Essas duas transformações permitirão uma terceira, que é agir coletivamente para salvar o planeta do colapso climático.

A ordem na qual esses três fatores são considerados não é trivial, pois tem a ver com um ponto de vista centrado na pessoa, que se dignifica através do trabalho e da participação nas decisões da empresa.

Como o documento acadêmico cria essa tripla sinergia?

Reconhecendo que os trabalhadores são parte integrante da empresa e que precisamente o período da pandemia revelou aqueles que são frequentemente discriminados e mal remunerados (migrantes, jovens, informais), que são os que se levantam diariamente para prestar serviços vitais, indo até a porta – propriamente dita – de outros para fornecer vários bens, possibilitando, assim, que outra parte da população – que está em condições de fazê-lo – permaneça confinada, protegendo-se de doenças.

Esse corte entre aqueles que mantêm a vida e a produção (enfermagem, distribuição, transporte, assistência, etc.) através de trabalho anônimo, evoca a imagem das massas desconhecidas de trabalhadores em Metrópolis, o filme de Lang, que trabalhava e habitava um submundo, condenado a passear e viver nas sombras para tornar possível a vida na superfície.

A sociedade deve reconhecimento àqueles que contribuem com sua energia, a quem o Manifesto chama significativamente de “investidores em emprego”, uma verdadeira descoberta semântica, em contraponto (ou complemento, como você desejar ver) com o investidor de capital, quem define as regras e os objetivos na busca da rentabilidade.

Dessa forma, o texto revisa, retorna ao tópico da reforma da empresa, que havia sido abandonado (ou resignado, pode-se dizer) em seu tratamento pela dogmática do trabalho e até pelos atores que representam os interesses dos trabalhadores.

Em outra direção, ele também retorna para mostrar que o trabalho não deve ser considerado uma mercadoria, em um eco claro dos documentos fundadores da OIT que foram tomados – embora um pouco abafados – pela Declaração do Centenário para o Futuro do Trabalho (2019).

Há, no entanto, um entrave mais antigo do que a própria OIT nessa rejeição do trabalho como mercadoria, e esse é o pensamento crítico que vê nos conceitos de mercantilização do trabalho e alienação duas noções básicas da subordinação da pessoa que trabalha pelo interesse do capital. A melhor vertente do pensamento social da Igreja também conflui para a crítica da mercantilização para defender a dignidade do trabalho em sua dimensão objetiva e subjetiva e sua “hominização”, como dizia Capón Filas.

O remédio para a desmercantilização da pessoa que trabalha é, para os acadêmicos, consagrar a garantia do emprego, uma noção de contrapeso às “verdades” da modernidade neoliberal e o determinismo tecnológico que, como um todo, impõe uma desregulamentação do trabalho.

Finalmente, e tomando como referência crítica o que ocorreu nos países europeus para o surgimento da crise de 2008, o Manifesto exige que o Estado não intervenha no resgate de empresas de maneira incondicional (como ocorreu na oportunidade mencionada), mas antes que se exigido “mudar a orientação estratégica das empresas intervenientes”, a fim de que modifiquem seus processos produtivos para não prejudicar o meio ambiente, objetivo que pode ser alcançado democratizando a empresa, pois deixaria de ser gerenciada com rentabilidade e lucro como fins exclusivos daqueles que – apenas – contribuem com capital.

Por fim, democratizar a empresa, desmercantilizar o trabalho e descontaminar o meio ambiente constituem três aspectos discursivos de origem histórica e cultural diversa, que combinam e desencadeiam uma sinergia virtuosa para, finalmente, levar a uma abordagem civilizadora que coloca a pessoa no centro da vida produtiva.

V

Assim, as considerações finais pretendem apenas recapitular o que consideramos ser os perfis essenciais do desafio que o Manifesto dos acadêmicos representa.

A primeira das chaves, ligada à democratização da empresa, avança em construções mais recentes, como a do trabalho decente e da sustentabilidade dos negócios, reintroduzindo um debate que, como foi dito, havia sido esquecido, abandonado ou renunciado após as mutações sociais, políticas e culturais dos últimos 40 anos.

Em segundo lugar, a desmercantilização do trabalho se materializa na garantia de emprego, retirando o trabalho da pressa da oferta e da demanda, que nesse movimento ou agitação do jogo de fatores coloca o trabalhador como objeto de troca, contrariando sua humanidade e dignidade.

Por fim, o cuidado com o meio ambiente é apresentado a partir de uma racionalidade baseada em determinações do mundo do trabalho, pois faz com que sua superação dependa das dinâmicas que podem ser desencadeadas desde a democratização da empresa e a desmercantilização do trabalho. Portanto, o futuro da vida no planeta ainda precisa ser elucidado nas vicissitudes que ocorrem na área das relações de trabalho, mais do que em outras circunstâncias proveniente de outras esferas da política, sociedade ou consumo.

Os acadêmicos dizem isso com total clareza sobre o final de seu desenvolvimento:

O Estado (…) para além do cumprimento de rígidas regulamentações ambientais, deve impor condições de democratização em relação à governança interna das empresas. Porque as empresas mais bem preparadas para promover a transição ecológica serão, sem dúvida, aquelas com governos democráticos: aquelas em que tanto investidores em capital como de trabalho podem fazer ouvir suas vozes e decidir em conjunto sobre as estratégias para pôr em prática.

A solução do cuidado ambiental está na democratização da empresa e na humanização do trabalho, parece ser a mensagem final do documento dos especialistas.

Por esse motivo, apesar de um certo eurocentrismo que sofre, o Manifesto oferece uma visão para continuar trabalhando e discutindo que se apoia em projetos inacabados para relançá-los e, assim, desafiar o pensamento e a transformação.

Notas

Apresentação no evento “Impacto da pós-pandemia nas Relações Trabalhistas”, da Ordem dos Advogados da Capital Federal – Argentina, 24 de junho de 2020.

[1] Barretto Ghione, Hugo. “La determinación de la relación de trabajo en la Recomendación 198 y el fin del discurso único de la subordinación” revista Derecho Laboral T. L núm. 225 p. 81

[2] Plá Rodríguez, Américo. Los Principios del Derecho del Trabajo. Edición al cuidad de Hugo Barretto Ghione. FCU, 2015

[3] Con esa fundamentación hemos venido postulando la existencia de un despido causado en nuestro país: ver “Dos tópicos desactualizados sobre el despido: la doctrina del abuso de derecho y el despido libre”, en rev. Derecho Laboral T. XLI núm. 270 y en   “Derecho del Trabajo y poder directivo del empleador: un replanteamiento”, ponencia principal de las XXII Jornadas Uruguayas de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social en homenaje al Prof. Oscar Ermida Uriarte, FCU (2011). En sentido análogo, pero con algunos matices puede consultarse en el mismo volumen las ponencias de Rosina Rossi, Juan Raso Delgue (que sostuvo esa posición en un temprano artículo en revista Derecho Laboral), Ignacio Zubillaga, Ma. del Luján Charrutti y las contribuciones de Federico Rosenbaum sobre la causalidad del despido en el núm. 23 de los Cuadernillos de la Fundación Electra y de  Virginia Antúnez, “Derecho al trabajo y libertad de empresa” en revista Derecho Laboral T. LXII, núm. 275 y Manuel Echeverría, “La estabilidad en el empleo como derecho humano y límite al poder del empleador”, en revista Derecho Laboral T. LXI, núm. 271

Hugo Barretto Ghione é professor de Direito do Trabalho e Seguridade Social e Diretor do Instituto de Direito do Trabalho e Seguridade Social da Universidade da República (Uruguai). Membro do Comitê Editorial da revista Derecho Laboral. Membro do Centro Europeu e Latino-Americano de Diálogo Social e da Equipe Federal do Trabalho.

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