Sobre a consciência de classe

De acordo com o teórico alemão Karl Marx, a questão da consciência de classe é muito mais do que um conceito; trata-se, fundamentalmente, de um processo, uma categoria da existência.

Sandro Barbosa de Oliveira

Fonte: Sociologia Ciência e Vida
Data original da publicação: 29/03/2017

Antes de se definir como forma teórica, o conceito de consciência de classe representa o processo complexo do conjunto de relações sociais de uma determinada sociedade. Cada sociedade precisa ser compreendida na dinâmica de sua formação social. Por tal condição, iniciar qualquer reflexão pelo conceito de consciência é inverter a análise com relação a realidade social estudada, aspecto que leva pesquisadores e movimentos a apreender as formas de representação, mas não lhe permitiria se apropriar do conteúdo das relações ocultas sobre tais formas sociais.

Desde o século XIX e ao longo do século XX o debate sobre as classes sociais foi polêmico e se dividiu em momentos e vertentes distintas. O conceito de classe teve um caráter fundamental e às vezes central na Sociologia. Sua importância se percebe na tradição marxista, essencial para o entendimento dos conflitos sociais; e na tradição weberiana, ao permitir a compreensão da situação socioeconômica dos indivíduos. Entretanto, após a última reestruturação produtiva do capital, o conceito de classe social passou por um período de baixas e fortes negações a partir dos teóricos do “fim das classes” e da chamada crise do marxismo.

No contexto da crise do marxismo, as abordagens do marxismo vulgar deram margem para crítica que emergiu nas décadas de 1970 e 1980 à centralidade do trabalho e ao paradigma da produção de valor, que influenciou gerações de cientistas sociais e demonstrou uma “diáspora” no campo do conhecimento entre os teóricos da produção e do mundo do trabalho com os teóricos da linguagem, da vida cotidiana e do “mundo vivido”. Isso refletiu a fragmentação das ciências especializadas e os campos do conhecimento nas ciências sociais.

Por isso, os teóricos da linguagem e do mundo vivido fizeram um deslocamento de problemática da centralidade do trabalho ao mundo da vida e do cotidiano, ao desconsiderarem que o trabalho é central no capitalismo porque é historicamente determinado, e de que há uma distinção fundamental feita nas obras de Karl Marx, sobretudo, em O capital, entre trabalho socialmente necessário e atividade prática transformadora, que envolve pensar a produção social da vida para além da forma trabalho abstrato. Essa atividade transformadora está sob domínio do trabalho abstrato, e aparece como núcleo fundamental de entendimento da sociabilidade criadora e inventiva, que demonstra as dimensões do trabalho concreto através da prática sensível mediada pelas múltiplas dimensões de realização do valor (forma mercadoria) através da troca.

Nesse sentido, esse artigo pretende discutir a consciência de classe enquanto processo e não apenas como conceito, já que para Marx os conceitos expressam categorias da existência, e em qualquer sociedade são produzidas as categorias que permitem ensaiar uma explicação de sua dinâmica. Voltar a Marx é importante porque para ele não interessa explicar o fenômeno e suas leis como forma definida, mas compreender a lei de sua transformação, de seu desenvolvimento e as mudanças de uma forma para outra mediante a lógica do real e não do real da lógica.

Então, analisar o processo de consciência permite compreender a construção do conhecimento social, porém, tal processo se distingue pela mediação do fenômeno da ideologia. Tal como definiu Lefebvre (1991), é preciso entender o conhecimento como um fato, porque desde a vida prática mais imediata e simples nós conhecemos objetos, seres vivos e seres humanos. Enquanto fato, todo conhecimento, antes de se elevar ao nível teórico, começa pela experiência e vida prática. Todavia, compreender a especificidade do processo de consciência de classe exige entendê-la na dinâmica de formação social mediante a perpétua interação dialética entre sujeito (o homem que conhece) e objeto (seres conhecidos), para enxergá-la em seu movimento e não como algo dado. Ademais, as determinações da sociedade de classes perpassam a apropriação do conhecimento e da riqueza social, definidas por relações de propriedade e divisão do trabalho que se configuram na infraestrutura material da sociedade e na mediação entre as relações sociais de produção e o desenvolvimento das forças produtivas.

Interação sujeito-objeto

Nessa interação sujeito-objeto, o problema da consciência foi discutido por Marx no conjunto de sua obra e está presente em diversos escritos. Seu pensamento tornou-se referência crítica de todas as formas de alienação e referência privilegiada de compreensão da história, da técnica, da ideologia e do devir na modernidade, ao abrir as possibilidades históricas que a filosofia especulativa havia encerrado em formas de consciência enquanto representação de um mundo às avessas. Nesse aspecto, Marx (2007) analisou a interrelação entre ideias dominantes e relações materiais dominantes, que definiriam o caráter da alienação e da ideologia na sociedade de classe, ao dizer: “[…] E se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida […]”

Em tal contexto, a dimensão da consciência foi apresentada de maneira sistemática pela primeira vez em A ideologia alemã. Redigida em conjunto com Engels, Marx (2007) expôs que somente depois de analisar quatro aspectos das relações históricas originárias foi possível descobrir que o “homem” também possui consciência. Para o autor, desde o início a consciência é produto social e, naturalmente, mera consciência do meio sensível mais imediato. Com efeito, ele analisa que a cada divisão social do trabalho havia uma nova determinação das relações de produção e dos indivíduos entre si. Ao demonstrar que o modo de produção capitalista está assentado numa contradição central que é o caráter social da produção (e da riqueza) e a sua apropriação privada por indivíduos (e classes) particulares, explicita a relação entre divisão social do trabalho e a propriedade privada dos meios de produção, aspectos que definem a divisão das classes e o assalariamento da força de trabalho. Em Os manuscritos econômicos filosóficos, Marx mostrou as condições para que a atividade humana aliene em vez de humanizar sob três níveis: 1) alienação da natureza; 2) alienação de si mesmo; 3) alienação de sua espécie.

Tal descoberta pôs abaixo os fundamentos da filosofia especulativa alemã (que via apenas como sujeito histórico o conhecimento de modo especulativo) e o empirismo imediato da economia política clássica inglesa. Para Marx, ainda em A ideologia, o pressuposto dessas relações é que os seres humanos precisam estar em condições de viver para poder “fazer história”, mas para viver eles precisam, antes de tudo, “de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais”. Então, define como primeiro ato histórico a produção dos meios que satisfaçam tais necessidades: a produção da própria vida material, condição fundamental de toda a história ainda hoje. Nesse sentido, a consciência não é desde o início uma consciência “pura”, já que o “espírito” sofreu desde sua origem a maldição de estar “contaminado” pela matéria e, por essa razão direta, a consciência sempre será resultado tardio da matéria. Por isso, as ideias e a própria ideologia só podem ser compreendidas mediante as relações sociais de produção.

Resolvida a questão da consciência, ao definir uma nova concepção de história, de ser humano e de produção da vida, Marx e Engels partiram para compreender os processos de formação das classes sociais e de suas respectivas formas de consciência. Para tanto, buscaram compreender como os seres humanos produzem e reproduzem a vida na sociedade capitalista, cujo entendimento da relação entre capital e trabalho exigia uma lógica concreta que permitisse a apreensão de sua dinâmica e contradição. Isso só foi possível após compreender sua origem e o seu desenvolvimento. Foi então que em A miséria da filosofia e O manifesto do Partido Comunista, eles apresentaram uma síntese do estudo que realizavam e suas principais teses em âmbitos político e econômico naquele momento. Em O manifesto, partiram de uma análise histórica e distinguiram as diversas formas de opressão e dominação de classe desde a antiguidade até a sociedade burguesa. Em A miséria, Marx (1985) esboçou uma primeira formulação sobre a constituição do valor, ao demonstrar que as contradições entre capital e trabalho não se resolveriam em equilíbrio tal como propusera Proudhon, mas sim pela superação das condições reais que geram tais contradições para uma forma superior de sociabilidade.

Como desdobramento, Marx formulou uma teoria social revolucionária e inovadora mediante por meio de três críticas fundamentais: 1) crítica à filosofia especulativa; 2) crítica à economia política; 3) crítica à política e ao Estado. Tal teoria foi fundamentada com a exposição de um método de análise em O dezoito brumário de Luis Bonaparte, ensaio no qual Marx realizou uma análise da conjuntura política, da luta de classes e do golpe de Estado na França; em Contribuição à crítica da economia política, onde fundamentou de modo explícito sua análise de apreensão das conexões internas da economia política; e em O capital, onde apresentou de maneira sistemática o seu método de exposição dialético. Em outras palavras, Marx apresentou os métodos de investigação (pesquisa) e de exposição (apresentação) enquanto momentos constitutivos do método dialético (ver Müller, 1982), o que lhe permitiu apreender as determinações do conteúdo do objeto no próprio objeto (apreensão imanente); analisar o movimento de suas contradições (unidade de contrários); e reconstruir como práxis a crítica do objeto com base nas contradições.

Análise das classes sociais

No que se refere à análise das classes sociais, Marx já havia apontado em O manifesto duas classes sociais principais no capitalismo modernoburguesia e proletariado, classes vistas como antagônicas, dentro do modo de produção capitalista. Em O dezoito brumário, demonstrou a existência de seis classes sociais: burguesia, pequena-burguesia, campesinato, aristocracia fundiária, proletariado e lumpemproletariado. No capítulo sobre “classes” de O Capital, Marx apresentou três classes sociais: proprietários do capital (os burgueses); proprietários da simples força de trabalho (os operários assalariados); e os proprietários de terra (os latifundiários), com suas respectivas rendas: lucro, salário e renda da terra.

Nessas formulações, Marx realiza uma análise imanente dos conflitos sociais mediante a formulação da categoria luta de classes. Para o autor, é através da luta de classes que se pode compreender a sociedade e seus conflitos sociais, tendo em vista que ela é o motor da história. Essa luta cotidiana permite visualizar as determinações das relações que ocorrem entre as diversas classes. Ao ressaltar que os homens fazem história, mas não sobre condições escolhidas por eles, Marx deixou as pistas para compreender o desenvolvimento das classes no movimento real. Com referência a sua teoria, foi possível observar os seguintes aspectos para compreender as relações de classes: 1º) a posição dos indivíduos de uma determinada classe no processo produtivo; 2º) a relação entre as classes no processo de valorização do capital; 3º) a ação política das classes com relação aos seus interesses e alianças de classe. Esses três momentos distintos e simultâneos demonstram a relação contraditória entre relações de produção e forças produtivas (infraestrutura econômica) e determinadas formas de consciência social (superestrutura política, jurídica e ideológica). Nesse sentido, a constituição efetiva de uma classe, com referência aos seus interesses, pressupõe o conjunto de relações sociais e seus antagonimos com outras classes, numa mediação entre a estrutura do modo de produção capitalista e suas lutas em momentos de crise social, as quais se manifestam em conjunturas políticas específicas e demonstram a conjunção entre suas condições objetivas e subjetivas, que pode ameaçar a dominação de classe.

Foi a partir dessa concepção de conhecimento que Marx desmascarou a igualdade formal e fictícia nas relações de mercado, ao criticar a concorrência que isola os indivíduos uns dos outros. O isolamento dos indivíduos entre si se tornou um campo fértil para a dominação ideológica de classe, o que levou a concepção restrita de classe social atualmente amparada na vertende da estratificação social por renda e/ou consumo (referenciada na vertende weberiana), o que faz desaparecer o conjunto de relações sociais que constitui as formas de exploração e dominação no processo de trabalho. É por isso que, no caso da classe trabalhadora, é preciso a tomada de consciência social do processo de trabalho, para romper com a ideologia dominante e desenvolver sua consciência de classe na luta pelo poder político contra a dominação de classe da burguesia. Somente nessa luta é que tal classe desenvolve uma forma de consciência necessária com vista à sua emancipação.

Atualmente, do ponto de vista da classe trabalhadora, talvez a questão central esteja em como desenvolver um processo de tomada de consciência social e política de classe para além do capital (que seja imanente a formação da classe) diante de organizações diversas (sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos), que estão fragmentadas e com métodos e pressupostos distintos, ora convergentes e ora conflitantes, haja vista que os pontos de partidas e as necessidades aparecem de maneiras distintas. Nessa luta, há uma necessidade de objetivar a derrocada da exploração e a superação das condições atuais de desigualdade e estranhamento, sem reproduzir as formas de dominação e hierarquia tipicamente capitalista. É preciso encontrar a síntese entre o vanguardismo e o autonomismo, e não perder de vista a formação e a organização da classe com referência as contradições das relações sociais de produção.

À guisa de conclusão, e como mensagem aos movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos e organizações de classe, Marx deixou para a classe trabalhadora uma contribuição incomensurável assentada em três aspectos de sua práxis social: teoria do valor, na qual permitiu desvendar as sutilezas da produção de mais-valia (trabalho excedente) e os mecanismos de realização e reprodução da acumulação; teoria da exploração, na qual explicita a expropriação sofrida por trabalhadores nos processos de produção do capital; e teoria das classes, em que expõe a dinâmica da luta e suas dimensões econômicas, políticas e sociais, ao reabrir a história a partir de suas tendências e criticar a dominação de classe sob a forma de Estado político. Por fim, Marx pensou a vida, a história e a sociedade do ponto de vista do trabalho, ao considerar que a classe trabalhadora seria a única a por fim a oposição e a exploração de uma classe sobre a outra, o que nos permite afirmar que para ser efetivamente revolucionária uma organização precisa fundamentar-se no conteúdo classista das lutas sociais.

Sandro Barbosa de Oliveira é cientista social, educador popular e professor. Atualmente doutorando em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Participa do Grupo de Estudos sobre Trabalho e Marxismo da UNICAMP coordenado pelo professor Dr. Sávio Cavalcante.

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