Em defesa do Direito de Greve dos trabalhadores garis: o encontro do Carnaval com sua história

O Carnaval se institucionalizou e passou a ser objeto importante da lógica da produção capitalista e a classe operária brasileira, voltada a um trabalho cujo proveito não lhe permite concreta ascensão social, foi forjada e expulsa do domínio ideológico das festas populares. Eis que, em março de 2014, trabalhadores brasileiros, na condição mesma de trabalhadores, garis, resolvem se apresentar na festa do Carnaval e o fazem da maneira que podem, fazendo greve.

Jorge Luiz Souto Maior

Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 07/03/2014

1. O contexto histórico

A ideia de um país do Carnaval surge, na década de 30, com o propósito varguista de construir uma identidade nacional, buscando enaltecer o que o brasileiro tinha de próprio e positivo, deixando de revelar, no entanto, o objetivo em torno da formatação de uma sociedade capitalista, que pressupunha a constituição de uma nova classe operária com esse brasileiro, um sujeito naturalmente ordeiro e pacífico, e que, com a evolução dos tempos, embora ainda festivo e alegre, se apresentava como disciplinado e trabalhador, uma espécie de malandro regenerado, que portava virtudes religiosas e propensão ao casamento, pronto, portanto, para se integrar ao projeto de enriquecimento da Nação, contrariamente aos operários estrangeiros, que portavam ideias perniciosas à ordem brasileira.

O Carnaval, como veículo de aproximação com o povo, seria apropriado para que se fizesse um elogio de valores que interessavam ao governo.

Mas, como observa Eliana de Freitas Dutra, “Ainda assim, o carnaval popular seguiu sua trilha de riso, deboche e alegria na animada capital da República. Tributário de outras festas populares, como a Festa da Penha, o Carnaval conservou a herança dos ritmos trazidos da África pelos escravos, levados para essa festa popular religiosa. Os sambas de roda vindos da Bahia, tendo sobrevivido nos terreiros de samba, também migraram para o Carnaval, que ocupava locais como a Praça Onze, onde se divertiam as gentes dos subúrbios e desfilavam os blocos de sujos, os mascarados e os zé-pereiras, com seus tambores e bombos [1].”

Mesmo com toda propaganda, a música de boa parte de sambistas continuou se desenvolvendo, isso porque estava envolto em um dado cultural mais profundo, tendo sido integrado ao cenário das cidades, ecoando, também, o grito de liberdade dos ex-escravos. “A musicalidade circunscrita ao latifúndio – em si, expressão acabada de um documento de barbárie –, ao se libertar com a Abolição, invade a cidade: um grito ecoa pela Nação, animando a festa (carnaval), embriagando a atmosfera urbana com uma música popular envolvente, de grande ressonância nas diversas nervuras da sociedade [2].”

No samba, os protagonistas, vítimas da divisão escravista do trabalho, repudiam o trabalho explorado, promovendo uma inversão, onde “o operário é a principal personagem à sombra, ofuscado pela ruidosa e alegre consagração da figura do malandro [3].”

O Carnaval, assim, é uma festa que impõe a desordem num ambiente em que a ordem segrega. É a busca de outra ordem, outra harmonia, o que foi difundido, magistralmente, por Noel Rosa, seguindo a trilha traçada por João da Baiana, Donga, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha, sendo acompanhado no nordeste por Jackson do Pandeiro, em São Paulo, por Adoniram Barbosa e, no Rio, por Moreira da Silva, introdutor do breque, “um dos recursos mais maliciosos da canção brasileira, portador de distanciamento irônico” [4] e que proclamou: “Estou cansado dessa vida de otário/Afinal o meu salário já não chega para mim”.

Noel Rosa, que assumiu a postura de vida boêmia, percebeu bem a supressão do humano pelo trabalho fabril, que se procurava então estimular, como revelado em Três Apitos, de 1933:

Quando o apito da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
Ou está interessada
Em fingir que não me vê
Você que atende ao apito de uma chaminé de barro
Porque não atende ao grito
Tão aflito
Da buzina do meu carro
Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé no agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você
Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente
Impertinente
Que dá ordens a você
Sou do sereno poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe porque
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto ao piano
Estes versos pra você

O problema é que na relação simbiótica entre sambistas e governo este aprendeu a se valer do “jogo de cintura” para dissimular, propositalmente, a realidade, apropriando-se da cultura da malandragem. Ou seja, promovendo aquilo que se poderia chamar de uma “malandragem oficial” e ao longo dos anos, submetendo o malandro do povo ao estágio extremo da necessidade e da marginalidade, impondo-lhe não apenas a miséria, mas também, repressão institucionalizada, que se intensificou no período da ditadura civil-militar de 1964 em diante, e acabou por manter-se como a única malandragem possível no cenário nacional, como denunciado por Chico Buarque, em 1977-1978, na música Homenagem ao malandro, feita para a sua peça, Ópera do Malandro:

Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais

Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais

Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal

Mas o malandro pra valer
– não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal

Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central

Em suma, o Carnaval se institucionalizou e mais tarde passou a ser objeto importante da lógica da produção capitalista e a classe operária brasileira, voltada a um trabalho cujo proveito não lhe permite concreta ascensão social, foi forjada e expulsa do domínio ideológico das festas populares.

Tudo isso se fez, no entanto, dentro da característica da cultura do disfarce, que restou, concretamente, como o caldo cultural do período. A institucionalização estatal da malandragem, além disso, foi incorporada pela classe dominante, fazendo com que as relações sociais se desenvolvessem na perspectiva da dissimulação. É comum, pois, no percurso histórico, verificar a classe dominante proferindo discursos sobre questões sociais, partindo de seu modo de ver o mundo, mas fazendo-o de tal forma que pareça estar, meramente, reproduzindo os interesses da classe dominada. E, não raro, utilizando-se dos meios de comunicação em massa, faz com que essa sua racionalidade seja posta nas falas dos trabalhadores e excluídos em geral.

É assim, por exemplo, que se tenta fazer crer que os direitos sociais são prejudiciais aos seus titulares, por serem artificiais, já que a natureza das coisas é determinada pelas possibilidades econômicas, que não podem ser alteradas já que o “status quo” precisa ser preservado, e que, de fato, deixar de aplicar os direitos é um benefício que se faz em prol do bem-estar dos trabalhadores. Utilizam, pois, da estratégia básica da malandragem, que é se apropriar da dialética entre ordem e desordem, pervertendo a regra do jogo e alterando até mesmo a perspectiva do outro.

O capitalismo amadureceu no Brasil por esses fatores, tendo sido criado um exército de mão de obra para satisfazer as necessidades da reprodução do capital, atendendo, inclusive, interesses econômicos internacionais, mas sem permitir a percepção dessa mudança, mantendo-se a visão do Brasil como o país da natureza abundante, onde tudo que se planta dá, que não está integrado por classes, que conta com um povo coeso e harmônico, de convivência pacífica, numa lógica corporativa, mesmo que não exista e se leve adiante um projeto de sociedade, imperando, em concreto, a ideologia do individualismo e do liberalismo.

Um país que se apresenta formado por pessoas pacíficas, ordeiras, tementes a Deus, felizes e irreverentes, mas que, em concreto, se desenvolve por intermédio de separação de classes com profunda desigualdade, que reverbera valores como o racismo e o machismo, e que se mantém por meio da violência institucionalizada, tratando como desajustados, marginais, os que tentam relevar e superar as injustiças sociais e as dissimulações em que a “ordem” se funda.

Um país no qual a ordem jurídica, que garante valores como a dignidade e a justiça social, chegando ao ponto de vincular o direito de propriedade ao cumprimento de sua função social, é apresentada como obra-prima da racionalidade, mas, que, nem de longe, enfrenta o desafio de atingir, em concreto, a realidade. As leis trabalhistas, por exemplo, foram criadas, mas nunca com o propósito real de serem aplicadas…

A violência da preservação das desigualdades se produz, repetidas vezes, por formas veladas, tentando fazer crer que toda busca de alterar a realidade social representa a instalação do caos, uma forma de quebrar a harmonia entre as classes, fazendo-se supor a felicidade de quem está sendo explorado e para quem, inclusive, faz bem continuar sendo explorado, mesmo com supressão de direitos.

O ataque recorrente que se faz à legislação trabalhista se insere neste contexto. Ora, os ataques partem exatamente daqueles que mais se beneficiam da legislação em questão, eis que serve para manter sob controle a classe operária, evidenciando, pois, uma atitude dissimulada, esperta, para se opor, de antemão, a possíveis reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de trabalho, constituindo ao mesmo tempo, de forma até contraditória, a falência entre nós de uma racionalidade liberal, deixando transparecer, mesmo sem querer, o resquício escravista e a lógica oligárquica. É como se dissessem: “Direito ao vagabundo, prá quê?”

2. O fato e o direito

E o que se viu em reação? Bom o que se viu foi o reflexo de toda essa história da institucionalização esperta da exclusão.

Anunciada a intenção dos garis em fazer greve, para auferir melhores condições de trabalho, o sindicato e o empregador se anteciparam e fizeram um acordo, em 03 de março. Esse acordo, segundo afirmam os garis, foi bem aquém das pretensões da categoria. Os garis resolveram, então, deliberar pela greve e tiveram que fazê-lo sem a presença do sindicato, o qual já havia se posicionado sobre o tema.

A partir daí o que se viu foi a utilização de todo o aparato estatal para destruir os trabalhadores, até o ponto de alguns deles terem sido chamados de “marginais e delinquentes” pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro.

Ora, enquanto os garis se submetem a trabalhar, realizando uma atividade extremamente dura, durante várias horas por dia, ganhando R$ 803,00 por mês, chacoalhando nos trens da Central, são considerados cidadãos ordeiros, pacíficos, virtuosos. Alguns desses, inclusive, como se anunciou, trabalham como gari há 30 (trinta) anos. Mas, se resolvem se valer da ocasião do advento do Carnaval para pressionar o empregador, visando mudar um pouco a sua “sorte” na vida, são espertalhões, “chantagistas”, como afirmou o presidente da COMLURB.

Os garis, então, ao se revelarem como trabalhadores, com consciência de classe, deixando de ser figuras alegóricas, espécies de balões de ensaio para estudos antropológicos, tiveram a oportunidade de perceber a forma concreta como o Estado, na qualidade de empregador, se relaciona com trabalhadores. O Estado se recusou a conversar e impôs aos garis, por efeito de uma estratégia jurídica, a volta ao trabalho. Com a recusa, tratou, imediatamente, de “dispensar”, “mandar embora”, os garis, fazendo-o por meio de mensagem pelo celular. A tecnologia a serviço da perversidade. E foi além. Foram utilizados dispositivos, em desuso, do Código Penal, pertinentes aos crimes contra a organização de trabalho, instituídos, não por acaso, durante o Estado Novo, para prender dirigentes sindicais que estavam tentando se opor que colegas furassem a greve.

Com relação à ação dos garis trabalhadores o Estado agiu rapidamente, mostrou eficiência, utilizando-se dos instrumentos e instituições jurídicas à sua disposição para a retomada da ordem, chegando a conduzir trabalhadores à prisão, sob a pecha de “marginais”. Mas, esse mesmo Estado não foi eficiente para, primeiro, negociar de boa-fé com os garis e não consta que tenha demonstrado a mesma eficiência quando os direitos dos trabalhadores, em geral, deixam de ser respeitados por alguns empregadores, que insistem em se valer da ilicitude para frustrar a concorrência e majorarem, indevidamente, os seus lucros.

No mesmo caderno do jornal que traz a notícia da greve dos garis, pondo em destaque uma grande foto do lixo nas ruas e a prisão dos “marginais”, há uma nota, pequena, que informa: “90 mil crianças estão à espera de vaga em creche em SP”. Claro que se trata de outro Estado da Federação. O que se está dizendo, e os exemplos seriam inúmeros para ilustração, é que a eficiência do Estado para reprimir o cidadão que luta por direitos, visando à melhoria de sua condição social, é inversamente proporcional quando o assunto é a concretização dos direitos sociais assegurados, constitucionalmente, a esses mesmos cidadãos.

E, juridicamente falando, está tudo errado.

Primeiro, o acordo, para ter validade jurídica precisava ter sido submetido à assembleia dos trabalhadores, já que o preceito democrático é o que rege, fundamentalmente, nosso Estado de Direito. Essa, ademais, é a previsão expressa do artigo 612, da CLT: “Os sindicatos só poderão celebrar Convenções ou Acordos Coletivos de Trabalho, por deliberação de Assembleia Geral especialmente convocada para esse fim, consoante o disposto nos respectivos Estatutos, dependendo a validade da mesma do comparecimento e votação, em primeira convocação, de 2/3 dos associados da entidade, se se tratar de Convenção, e dos interessados, no caso de Acordo, e, em segunda, de 1/3 dos mesmos.”

No caso da greve, ainda que dependa do sindicato para ser deflagrada, não se pode negá-la como fato social, respaldado pelo direito, quando haja distensão notória entre os trabalhadores e a direção do sindicato, até porque é dever das entidades de representação, dado o preceito democrático, convocar assembleias para deliberações, sendo que a greve, nos termos da lei, concretamente, não está condicionada ao direcionamento da diretoria e sim à vontade da categoria expressa em assembleia geral, “que definirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços”, sendo certo também que, por ilação lógica, somente a assembleia pode decidir pelo fim da greve (art. 4º., da Lei n. 7.783/89).

O acordo feito pela direção do sindicato não vincula, portanto, a categoria. E, vale reforçar: ainda que a greve se exerça por meio do sindicato, o direito de greve não pertence ao sindicato, como revela, expressamente, o artigo 9º., da CF, reproduzido, ipsis literis, no art. 1º., da Lei n. 7.783/89: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.” (grifou-se)

Ao que consta, assembleia dos trabalhadores, mesmo não tendo sido chamada pelo sindicato, rejeitou o acordo e deliberou pela greve, não havendo, portanto, ilegalidade alguma no ato dos trabalhadores de deixarem de comparecer ao trabalho depois disso, pois essa é, de fato, a essência da greve, qual seja, a paralisação do trabalho.

Desse modo, a atitude do prefeito do município do Rio de Janeiro ao determinar a “dispensa” de trabalhadores, fazendo-o ainda da forma vexatória como o fez, ou seja, por envio de mensagem pelo celular, configura uma flagrante ilegalidade, além de ser uma agressão à condição humana e jurídica dos trabalhadores, atitude que, adotando a própria lógica argumentativa trazida à tona pelo prefeito, pode ser enquadrada como ato de “marginal ou delinquente”, vez que em desrespeito à ordem jurídica.

Verdade que há uma decisão judicial, declarando a ilegalidade da greve e determinando a imediata suspensão do movimento, mas o que consta da decisão é uma penalidade pecuniária. Ou seja, a determinação de suspensão da greve “sob pena de multa diária no caso de descumprimento”.

A jurisprudência trabalhista admite a dispensa por justa causa no caso de participação em greve declarada abusiva ou ilegal, mas esse efeito, conforme prevê essa mesma jurisprudência, depende da individualização da conduta, exigindo-se uma participação ativa e a prática de atos que possam, em si, quebrar, de forma indelével, o vínculo de boa-fé, extrapolando, pois, a própria greve, uma vez que a ordem jurídica internacional é bastante rígida quanto à rejeição de qualquer prática do empregador que possa se aproximar de uma discriminação sindical. Essa noção está muito clara no entendimento do TST, no sentido de que: “A simples adesão ao movimento paredista não constitui falta grave, porquanto somente atos de violência desencadeados por força desta paralisação conduzem ao reconhecimento da justa causa” (RR 546287/ 99, Relator desig. Ronaldo José Lopes Leal) e de forma ainda menos restritiva no STF: “A simples adesão à greve não constitui falta grave” (Súmula 316).

Pela simples ausência ao trabalho, no caso da greve declarada ilegal e, assim mesmo, somente depois de transitada em julgado a decisão, o empregador, portanto, poderia, no máximo, efetuar o desconto dos salários, sendo que uma justa causa somente adviria pelo abandono do emprego, que exige um completo desinteresse pela continuidade no trabalho (art. 482, da CLT), do que não se trata, evidentemente.

O empregador não pode, simplesmente, recusar a dinâmica dialética e coletiva que se produz na base da categoria dos trabalhadores, efetuando a dispensa de trabalhadores, com ou sem justa causa, em ato de represália ou com o propósito de desmantelar e amedrontar a classe trabalhadora. Oportuno lembrar que a Convenção 98 da OIT, ratificada pelo Brasil, dispõe que “os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego”, além da condenação do Brasil junto ao Comitê de Liberdade Sindical, ocorrida em 2009, em função das dispensas arbitrárias feitas pelos governos do Rio de Janeiro e de São Paulo por ocasião de greves dos trabalhadores metroviários (Caso nº 2.646).

A prática em questão não é apenas ilegal, do ponto de vista das normas de proteção do direito de organização sindical dos trabalhadores e do exercício do direito de greve, mas também uma ofensa à condição humana dos trabalhadores.

Neste sentido, impõe-se a imediata reintegração desses trabalhadores, ilegalmente dispensados, sem prejuízo da possibilidade de buscarem, judicialmente, uma indenização pelo dano moral experimentado. O que não apagará, de todo modo, mais um caso de violência institucionalizada contra a classe trabalhadora, que cumpre, portanto, deixar consignada.

Reconhecida a ilegalidade do ato cometido pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro, que atingiu, também, a mesma esfera dos crimes contra a organização do trabalho, as perguntas que se devem fazer os trabalhadores são: por que, afinal, a polícia não vai lá prender o prefeito, se ele cometeu o mesmo crime que acusam ter cometido os três garis? Que folia é essa? Indagações que, aliás, fazem lembrar a perplexidade exposta na música Pelo Telefone, de 1917, atribuída à Donga:

O chefe da polícia
Pelo telefone
Manda me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar

No caso específico dos garis, a reflexão, que passa pelo aspecto do reconhecimento de que a greve tem algo de Carnaval, por representar a “desordem” numa ordem que oprime (e talvez por isso o riso de Renato Luiz Lourenço, o “Sorriso”, não tenha sido tão verdadeiro quanto agora), prossiga com uma bela conversa com Drummond [5]:

Amigo lixeiro, mais paciência.
Você não pode fazer greve.
Não lhe falaram isto, pela voz
do seu prudente sindicato?
Não sabe que sua pá de lixo
é essencial a segurança nacional?

A lei o diz (decreto-lei que
nem sei se pode assim chamar-se,
em todo caso papel forte,
papel assustador). Tome cuidado,
lixeiro camarada, e pegue a pá,
me remova depressa este monturo
que ofende a minha vista e o meu olfato.

Você já pensou que descalabro,
que injustiça ao nosso status ipanêmico, lebloniano,
sanconrádico,
barramárico,
se as calçadas da Vieira Souto e outras conspícuas
vias de alto coturno continuarem
repletas de pacotes, latões e sacos plásticos
(estes, embora azuis), anunciando
uma outra e feia festa: a da decomposição
mor das coisas do nosso tempo,
orgulhoso de técnica e de cleaning?

Ah, que feio, meu querido,
essa irmanar de ruas, avenidas,
becos, bulevares, vielas e betesgas e tatatá
do nosso Rio tão turístico
e tão compartimentado socialmente,
na mesma chave de perfume intenso
que Lanvin jamais assinaria!

Veja você, meu caro irrefletido:
a Rua Cata-Piolho, em Deus-me-livre,
equiparada à Atlântica Avenida
(ou esta àquela)
por idêntico cheiro e as mesmas moscas
sartrianamente varejando,
os restos tão diversos uns dos outros,
como se até nos restos não houvesse
a diferença que vai do lixo ao luxo!

Há lixo e lixo, meu lixeiro.
O lixo comercial é bem distinto
do lixo residencial, e este, complexo,
oferece os mais vários atrativos
a quem sequer tem lixo a jogar fora.
Ouço falar que tudo se resume
em você ganhar um pouco mais
de mínimos salários.
Ora essa, rapaz: já não lhe basta
ser o confiscável serviçal
a que o Rio confere a alta missão
de sumir com seus podres, contribuindo
para que nossa imagem se redobre
de graças mil sob este céu de anil?

Vamos, aperte mais o cinto,
se o tiver (barbante mesmo serve)
e pense na cidade, nos seus mitos
que cumpre manter asseados e luzidos.

Não me faça mais greve, irmão-lixeiro.
Eu sei que há pouco pão e muita pá,
e nem sempre ou jamais se encontram dólares,
jóias, letras de câmbio e outros milagres
no aterro sanitário.

E daí? Você tem a ginga, o molejo necessários
para tirar de letra um samba caprichado
naqueles comerciais de televisão,
e ganhar com isto o seu cachê
fazendo frente ao torniquete
da inflação.

Pelo que, prezadíssimo lixeiro,
estamos conversados e entendidos:
você já sabe que é essencial
à segurança nacional
e, por que não, à segurança multinacional.

Notas

[1] DUTRA, Eliana de Freitas. Cultura. In: HISTÓRIA do Brasil Nação: 1808-2010. Direção Lilia Moritz Schwarcz. Vol. 4. Olhando para dentro: 1930-1964. Coordenação Ângela de Castro Gomes. São Paulo: Fundación Mapfre/Objetiva, 2013. p. 264.

[2] HISTÓRIA geral da civilização brasileira. Tomo III, Vol. 11: O Brasil republicano. Direção de Boris Fausto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 614.

[3] HISTÓRIA geral da civilização brasileira. Tomo III, Vol. 11: O Brasil republicano. Direção de Boris Fausto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 614.

[4] HISTÓRIA geral da civilização brasileira. Tomo III, Vol. 11: O Brasil republicano. Direção de Boris Fausto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 621.

[5] “Conversa com o lixeiro”, In: Amar se aprende amando, obra publicada em 17/11/79.

Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e de um dos artigos da coletânea Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013).

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