Sistema tributário brasileiro: mecanismo perfeito para gerar desigualdade social

Bruce Bastos Martins

Fonte: Jota
Data original da publicação: 12/08/2019

A partir de relatórios da RFB e da OCDE, é possível concluir que existem três fenômenos normativos no Brasil que contribuem para a desigualdade social, transferindo a riqueza dos cidadãos mais pobres para os mais ricos, de maneira sistêmica e institucionalizada: a) a pressão fiscal sobre o consumo; b) a pressão fiscal sobre o lucro do mercado de bens e serviços; e c) a pressão fiscal exercida sobre a propriedade herdada. Vejamos cada um deles.

I. A pressão fiscal sobre o consumo

A regressividade de nosso sistema tributário é, possivelmente, a grande questão a ser solucionada, principalmente por afetar de maneira negativa o poder de consumo das famílias, que é responsável por 60% do PIB1. E para entender a regressividade do sistema, é preciso entender como o Brasil distribui a carga tributária sobre três bases de riqueza: a) o consumo de bens e serviços; b) a renda, o lucro e os ganhos de capital; e c) a propriedade.

Segundo dados da RFB2, o Brasil foi o país, dentre todos os da OCDE, que menos tributou a renda, o lucro e os ganhos de capital, embora tenha sido o terceiro que mais tributou bens e serviços, conferindo uma primazia, no sistema, dos “tributos indiretos”, aqueles que participam diretamente na formação do preço. Quando uma sociedade é tributada sobre a cadeia de consumo, o que se faz é levar o ônus fiscal ao cidadão na forma de preço, como um fenômeno do mercado, mais suscetível a uma conformação política, ao invés de apresentá-lo propriamente como tributo a ser pago ao governo, enquanto fenômeno decorrente das instituições e das pressões sobre elas exercidas.

Em comparação com os países da OCDE, pode-se afirmar que, atualmente, o Brasil é o país mais regressivo de todos. Confira os gráficos abaixo:

Quando a pressão fiscal concentra-se no consumo, não apenas se reduz o poder de compra dos cidadãos, afetando a demanda econômica, sobretudo a dos mais pobres, que compõe a grande base da pirâmide social brasileira, mas igualmente, em um ambiente de juros altos, como é no Brasil, faz-se com que os recursos ociosos procurem o mercado de títulos, direta ou indiretamente, agravando a desigualdade social entre quem pode investir nesse mercado e quem não pode.

Por isso, a reforma tributária deve alterar a direção da pressão fiscal atualmente exercida sobre o consumo, para destiná-la à renda, ao lucro e aos ganhos de capital, conferindo, antes de tudo, maior progressividade ao sistema tributário brasileiro

II. A pressão fiscal sobre o lucro do mercado de bens e serviços

O atual sistema tributário não somente desestimula o investimento na pessoa jurídica, como também fomenta o investimento sobre operações financeiras, que muito pouco contribui para a geração de emprego no país.

Por razões históricas relacionadas ao combate à inflação, sobretudo no plano Real, os governos brasileiros, de lá para cá, criaram o seguinte cenário para o investidor perseguir o retorno ótimo: a) 34% de tributação sobre o lucro da pessoa jurídica; b) isenção tributária sobre a distribuição de lucros e dividendos; c) 7,5% a 27,5% de IR sobre a renda do trabalho; d) 15% e 20% de IR sobre as rendas variáveis com “swing trade” e “day trade”, respectivamente, contemplando faixa de isenção; d) 15% e 20% de IR sobre fundos de investimentos de longo e curto prazo, respectivamente; e e) 15% a 22,5% de IR sobre a aplicação financeira de renda fixa em geral (títulos públicos, por exemplo).

Neste cenário, os efeitos econômicos de se tributar 34% do lucro da pessoa jurídica, muito acima da tributação da renda e ganhos de capital da pessoa física, o que se consegue é reduzir o retorno do (re)investimento na pessoa jurídica, esta que emprega e produz, para estimular o investimento em operações financeiras de renda fixa ou variável, como pessoa física, em razão do retorno ser menos obstruído pelas alíquotas de 15 a 20% de IR.

A tributação de 34% da pessoa jurídica, portanto, onera sobremaneira a rentabilidade dela, razão que leva aos sistemas tributários mais desenvolvidos equalizar a pressão fiscal junto ao sócio, caso ele distribua os lucros, reduzindo-a para uma média de 20%, de sorte a fomentar o desenvolvimento da economia produtiva, estimulando que a pessoa física reinvista no mercado produtivo. O mercado de títulos da dívida pública, por exemplo, ante as políticas fiscal e monetário que temos, acaba sendo o principal destino da poupança privada brasileira, ou seja, da renda que excede as necessidades de consumo, sendo ela remunerada, na sua maior fatia, proporcionalmente, pelos tributos arrecadados no consumo, de cidadãos que não se beneficiam desse mercado de operações financeiras, constituindo a base da regressividade tributária.

Em razão disso, é preciso reduzir a tributação sobre o lucro da pessoa jurídica, compensando este movimento com uma tributação sobre a distribuição dos lucros aos sócios, atualmente isenta por conta do art. 10 da Lei nº 9.249/1995.

A tributação deve privilegiar o desenvolvimento da economia produtiva e o retorno do trabalho, tornando-os mais atraentes que as operações financeiras e o retorno do capital, pois, desde a publicação da obra3 do economista francês, Thomas Piketty, se sabe que a desigualdade social é acentuada quando essa relação de retorno é invertida.

III. A pressão fiscal sobre a propriedade herdada

A despeito do que pensa, o Brasil está entre os países com a menor tributação sobre a propriedade, sobretudo a herdada. Confira o gráfico trazido pelo referido documento da RFB:

Além do mais, no Brasil a alíquota média de tributação sobre a propriedade herdada é de 3,86%, ou seja, quase 1/10 da alíquota média de tributação na Inglaterra (40%) e 1/3 no Chile (13%). Na França, essa alíquota atinge 60%, enquanto na Alemanha, Suíça e Japão ela atinge 50%. Nos EUA, para ficar em um último exemplo, a alíquota média é de 29%.

Aumentar a pressão fiscal sobre a propriedade herdada, no Brasil, diante do cenário de calamidade financeiras dos Estados, contribuiria para o ajuste fiscal, saneando, desta forma, parte das suas contas públicas. O produto da arrecadação pode chegar até 0,5% do PIB, a exemplo dos países nórdicos, conforme o gráfico abaixo disponibilizado pela Comissão Europeia (2014)4:

Por outro lado, no Brasil, em 2016, esse percentual atingiu apenas 0,1% do PIB. Confira:

Essa base de riqueza deve receber a devida atenção, uma vez que é por meio dela que se incentiva a filantropia, tal como a que se vê nos EUA, bem como se equilibram as oportunidades de concorrer no mercado de trabalho entre cidadãos que, por regra, no Brasil, iniciam a vida com estoques de riquezas profundamente assimétricos pelos quais cada qual financia o tempo inativo necessário para a sua capacitação.

IV. Conclusão

Em razão da maior pressão fiscal ser exercida sobre o consumo, como é no Brasil, os que ganham menos neste país, além de não se utilizarem dos benefícios de uma carteira de ativos financeiros, com a qual se protege os investimentos contra a inflação, ainda transferem quase a metade da sua riqueza gerada para os que ganham mais, estes que podem se beneficiar dos títulos públicos, por exemplo, cujos rendimentos são tributados proporcionalmente menos, como vimos, pois a pressão sobre a renda de aplicação financeira e ganho de capital é menor, estimulando o ciclo de uma economia do rentismo.

O sistema tributário que temos atualmente é a engenharia perfeita para produzir desigualdades sociais. Ela premia muito mais o retorno do capital do que o retorno do trabalho. A proposta de reforma tributária que visa unificar os tributos sobre o consumo (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) é incontestavelmente importante no combate da irracionalidade do sistema tributário, sobretudo na redução do custo para o cumprimento das obrigações tributárias acessórias. Mas não me parece atacar o problema maior do nosso sistema: a regressividade.

Incontestavelmente a tributação deve ser simplificada e proporcionar racionalidade para a tomada de decisão do retorno ótimo pela alocação dos recursos. No entanto, uma agenda microeconômica, parece-me, deve estar atenta a uma agenda macroeconômica, de estímulo da demanda agregada e de ajustes fiscais.

Notas:

1 Aliás, não é por acaso que o crescimento para o ano de 2019 está projetado para menos de 1%: segundo dados oficiais, a causa principal que permitiu o Brasil sair de suas recessões foi o consumo das famílias, sem a qual o nível de investimento, que caiu 30% desde 2016, não é retomado. Os níveis de investimento atuais não estão sequer satisfazendo a depreciação dos ativos.

2 http://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-2017.pdf

3 O capitalismo no século XXI.

4 https://ec.europa.eu/taxation_customs/sites/taxation/files/docs/body/2014_eu_wealth_tax_project_finale_report.pdf

Bruce Bastos Martins é mestrando em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de Florianópolis/SC. Pós-graduado pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (IBET/SC). Pós-graduado em Direito da Aduana e Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Sócio da Lobo & Vaz Advogados Associados.

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