por Igor Natusch
Obs.: A parte 1 da entrevista pode ser conferida aqui.
Há mais de 30 anos, Flavio Benites tem se destacado no mundo sindical em escala nacional e global. Hoje, atua como secretário de relações institucionais do IG Metall, da Alemanha, maior sindicato de metalúrgicos do mundo, com quase 2,3 milhões de filiados. Mas o advogado de formação trabalhou, nos anos 1980 e 1990, na equipe jurídica de órgãos como o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e a CUT Nacional, vendo e vivendo em primeira pessoa boa parte dos eventos que moldaram o mundo do trabalho brasileiro, tal como ele se mostra atualmente.
Em um cenário cheio de incertezas, onde o edifício da CLT ameaça desabar e as mudanças parecem acontecer mais rápido do que nossa capacidade de entendê-las e enfrentá-las, Flavio Benites certamente tem muito a acrescentar. O Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT aproveitou uma de suas visitas ao Brasil, em julho, para conduzir uma extensa entrevista, aqui dividida em duas partes. Em suas leituras e inquietações, a fala de Benites é rica em reflexões para todos e todas que analisam e debatem o mundo do trabalho em nosso país.
Também tomaram parte na entrevista os advogados Antônio Vicente Martins, Rogério Viola Coelho e Jefferson Alves. Nesta parte final, Flavio Benites fala sobre a digitalização dos processos de trabalho e a dificuldade, tanto do sindicalismo global quanto de leis trabalhistas antigas, como a CLT, de darem conta das muitas transformações no fluxo do capital e nas relações de trabalho. Além disso, fala sobre a Reforma Trabalhista recentemente implementada no Brasil, e traz um alerta sobre os riscos da ascensão de movimentos fascistas organizados, em uma situação onde as angústias dos trabalhadores são muito maiores que a atual capacidade das instituições democráticas para oferecer respostas.
DMT – Um dos temas mais caros a você é a questão da digitalização do trabalho. De que modo isso vem se desenvolvendo? E em que pé o Brasil está, ou pode se colocar, nesse panorama?
Flavio Benites – Essa introdução de processos de inteligência artificial vai muito além do trabalho. Ela incide também nas relações sociais e em decisões que são tomadas e influenciam na nossa vida, desde o sistema de saúde, ou através do uso de algoritmos selecionando se você vai ter determinada tarifa para fazer um seguro, ou se vai ser exibida determinada propaganda no seu aparelho celular. O processo de inteligência artificial gera, por um lado, a possibilidade de automatizar processos e viver melhor, mas, por outro lado, traz consigo mecanismos de alienação da autodeterminação da vontade. Porque a vontade começa a ser definida fora do centro de decisão, que é o cérebro. E são sistemas de inteligência artificial que decidem, inclusive em relação à política, em relação às pesquisas e às propostas políticas.
O processo de digitalização do trabalho, tratado de forma diversa da inteligência artificial, tem, e aí sim para as relações de trabalho, que é o que nos interessa aqui, uma importância que é fundamental. Porque, com a digitalização de mercadorias, dos produtos e dos processos de produção que levam ao produto, o resultado é muito menos postos de trabalho. Vai haver uma coexistência de processos não digitalizados, mas os processos de produção de mercadorias que hoje conhecemos vão ser digitalizados e automatizados de tal forma que o uso de mão de obra humana vai ser muito diverso do que é hoje. Vai haver aumento de postos de trabalho em determinados núcleos com maior especialização, postos que hoje não existem e que vão ser gerados pela introdução massiva de tecnologia digital e automatizante, mas esses postos de trabalho não vão compensar, de nenhuma forma, os postos de trabalho que vão deixar de existir. E qual é a única solução para isso? A redução do tempo de trabalho. E aí se coloca a discussão que nós temos na Alemanha hoje, que foi plasmada na última campanha salarial do IG Metall, e nesse sentido o IG Metall faz um papel vanguardista sensacional, contra tudo e contra todos: uma discussão que muda o paradigma da redução da jornada de trabalho para todos os trabalhadores, descoletivizando e individualizando o debate.
DMT – Como assim? De que forma?
Flavio Benites – O IG Metall conquistou, este ano, uma redução da jornada de trabalho que foi individual. A gente sai do patamar de reduzir o tempo de trabalho de toda uma planta – que é o que a gente sempre defendeu: reduz a jornada de trabalho e gera mais empregos; o acordo negociado pelo IG Metall em 2018 muda o paradigma, criando mecanismos de redução da jornada de trabalho para cada trabalhador. Então, por exemplo, é aberta a possibilidade de um trabalhador que tem filhos em idade escolar ou pré-escolar renunciar a um aumento de salário já obtido para poder ficar em casa. Por exemplo, foi estabelecido no contrato coletivo um pagamento extra de 27,5% do salário mensal, a partir do ano que vem. Este pagamento deve ser feito uma vez ao ano. E o trabalhador, se desejar, pode trocar esse aumento por ficar em casa o tempo equivalente, os dias que corresponderem a esse aumento (em regra, 8 dias por ano). Ou pode trabalhar um determinado período a menos por dia, reduzindo assim sua jornada diária. Determinados grupos de trabalhadores são beneficiados, por exemplo, quem tem pai, mãe ou familiar que precisa de cuidados, por doença ou senilidade. Ou também, quem trabalha em sistema de turnos de revezamento. Isso tudo ainda vai ser regulamentado, mas é esse é, digamos, o sentido básico do acordo.
Há outros aspectos que envolvem a redução do tempo de trabalho, mas se trata muito mais de uma organização do tempo de trabalho, que se dá em termos de liberdade e interesse individual do trabalhador atingido. Você tem, em um extremo da pirâmide, uma juventude que quer trabalhar mais. Eles trabalham 35 horas, e o IG Metall faz pesquisas perguntando se eles querem redução de horas e eles dizem não, eu quero trabalhar mais, eu quero trabalhar 40 horas, estou disposto a trabalhar até 50 horas. Porque vou casar, porque tenho que comprar um apartamento, porque eu tenho que guardar dinheiro para os primeiros anos da criação do meu filho, então eu não quero redução, eu quero ganhar mais. Eu estou na fase de dar o salto. Então, se o sindicato chega e diz “vamos reduzir a jornada de trabalho”, ele vai chegar e dizer “eu vou é sair desse sindicato, esse sindicato está empatando a minha vida!” Então, o sindicato tem que dar resposta também a esse setor, ao qual não precisava responder antes. Porque o IG Metall, como sindicato de metalúrgicos, representava trabalhador de macacão, do colarinho azul. E hoje mais da metade dos 2 milhões e meio de sindicalizados do IG Metall são trabalhadores e empregados de colarinho branco.
E aqui, só para fazer um parênteses, porque isso não é toda a Alemanha. Quando começamos a falar da Alemanha começa a parecer que é tudo muito claro, e não é tão claro assim. A planta da Volkswagen, onde eu faço meu trabalho sindical do dia a dia, é a maior planta da Volkswagen no mundo. Tem 65 mil trabalhadores, na linguagem brasileira, com carteira assinada e contrato por prazo indeterminado. Desses 65 mil, são mais de dois terços, mais de 43 mil trabalhadores que são “colarinho branco”. Não têm nada a ver com a produção, nem eletricista, nada. É gente como nós, aqui (entrevistado e entrevistadores).Trabalham nos setores de pesquisa e desenvolvimento, informática, vendas, compras, marketing, departamento jurídico, de pessoal, finanças, etc… O índice de sindicalização nessa planta é de 95%. Isso significa que nosso sindicato precisa responder às demandas de trabalhadores da produção, mas também – e cada vez mais – dos empregados de colarinho branco.
DMT – Nesse sentido, dá para debater a postura de combate à Reforma Trabalhista no Brasil, que está bem focada na defesa jurídica da CLT e na busca de inconstitucionalidades. Recentemente, o STF julgou constitucional a mudança na CLT que torna facultativo o imposto sindical. Isso quebrou a perna dos sindicatos, poucos têm chance de sobreviver. Uma medida da direita, que veio para realizar o seu sonho de destruir a antiga estrutura sindical! (risos). Está errado, na sua visão, esse foco? É uma questão capciosa!
Flavio Benites – Eu queria dizer, em primeiro lugar, que eu não tenho condições de opinar sobre essa reforma trabalhista feita aqui no Brasil. Não tive oportunidade de me dedicar a ela, me inteirar realmente. São só coisas que eu ouço, então eu prefiro, neste momento, ainda não me manifestar de maneira cabal a respeito da reforma trabalhista. Mas eu acho que formas precárias de trabalho merecem e devem ser acolhidas pelo sistema jurídico – o que não quer dizer que eu defenda o trabalho precário, mas a verdade é que o trabalho precário existe na sociedade capitalista do nosso tempo.
Eu me lembro da primeira tese que eu apresentei num congresso trabalhista… Tese, eu digo aqueles textinhos, que a gente fazia para discutir nos congressos de advogados, da AGETRA, da ABRAT. Tinha a ver com a Lei 6.019/74, do trabalho temporário. E tinha também uma tese de um outro advogado, mais experiente, em que ele defendia o fim da legislação do trabalho temporário porque precarizava a relação de trabalho, e que, na opinião dele tinha-se que suprimir essa lei. E eu, talvez na minha ingenuidade e imaturidade, defendi o oposto, porque eu achava que a lei não só assegurava alguns direitos aos trabalhadores ditos temporários, que na verdade eram precários em relação a quem tinha um contrato de trabalho por tempo indeterminado na forma da CLT, mas que na verdade dava uma existência jurídica que correspondia à base material das relações de trabalho na sociedade brasileira. E que tinha que se lutar para defender aqueles trabalhadores com os instrumentos que a própria legislação dava, e não simplesmente negar algo que permitia a muita gente conseguir um emprego e um salário, porque muitos empregadores só davam emprego se fosse temporário, senão não iriam dar.
Essa é uma discussão de 1983, vale dizer. Hoje, eu continuo vendo as coisas da mesma forma, talvez até pela minha experiência na Espanha, que é um país que, através de sucessivas reformas trabalhistas, tratou, algumas vezes por consenso e outras sem consenso, de regulamentar e juridificar o fenômeno do trabalho precário. Então, com base nessa experiência, e sem querer dizer “por isso que eu acho que a reforma aqui está bem feita, precarizar não é tabu” etc, eu quero deixar claro que precarizar formas de contratação não é, em si, uma invenção do Ronaldo Nogueira ou do Michel Temer. Isso existe há muito tempo, em muitos lugares, não há nada de novo nisso.
DMT – Não seria, então, uma maquinação diabólica, uma articulação…
Flavio Benites – Não é a elite brasileira retrógrada, reacionária… Não é isso. São rios de tinta, mais de vinte anos que se discute isso. Claro que, se vai fazer bem para o mercado de trabalho, para a democracia brasileira, para os sindicatos… Isso é outra coisa, eu não sei, não tenho condições de avaliar. Teria que me dedicar a isso, e ainda não me dediquei. É uma questão complexa, e vocês brincaram que é uma questão capciosa, mas eu acho que não, que é muito séria essa questão da reforma trabalhista. Posso dizer que, pelas coisas que eu ouço, eu não identifico nessa reforma trabalhista um fio condutor, algo tipo “nós mudamos para que, a partir de agora, o que era aquilo passe a ser isso”. Tem muita propaganda sendo exibida na televisão, no jornal etc, e o que eu ouço me parece muito raso, quem defende a reforma faz a defesa de forma muito superficial. Parece que se trata de reduzir os custos do trabalho penalizando o trabalhador.
DMT – Um diferencial que pode ser apontado na Reforma Trabalhista brasileira, em oposição a exemplos como a Espanha e a própria Alemanha, e que depõe contra o modo como ela foi conduzida aqui, é que aqui não teve debate.
Flavio Benites – É grave, isso. É muito ruim. O Diálogo social, no âmbito das relações de trabalho é essencial à democracia.
DMT – O processo entre o início e o fim da proposta que, na prática, resultou na revogação da CLT, ocorreu em 60 dias. A medida provisória, emitida para suavizar pontos polêmicos da reforma, perdeu vigência quatro meses depois e caducou sem ser votada. E não se discute questões que apontam para essa modernização do mundo do trabalho face a uma realidade de digitalização de processos, nem a questão da liberdade sindical: na verdade, é eliminado o autofinanciamento das entidades sindicais, no formato que você critica em nossa conversa, mas sem apresentar um modelo novo.
Flavio Benites – Eu quero falar uma coisa sobre isso. Eu quero falar sobre a Alemanha, e logo passar para a análise do México. Na Alemanha houve há 15 anos um debate muito importante quanto à reforma do Direito do Trabalho – e notem que estamos falando aqui então, supostamente, de um outro sistema de relações de trabalho, com direitos de cogestão, liberdade e autonomia sindical, sindicatos fortes, representação sindical no local de trabalho garantida por lei etc. Na Alemanha, onde tem tudo isso, havia em 2002, digamos, um desincentivo muito grande à indústria alemã e ao setor de serviços para contratar trabalhadores. E o que os empresários fizeram? Eles foram para o debate com os sindicatos e com o governo, que na época era um governo social democrata, do chanceler Gerhard Schröder, e disseram o seguinte: “nós temos que flexibilizar as relações de trabalho para combater o desemprego e gerar novos investimentos”. E qual era a flexibilização que eles pregavam? Que os contratos coletivos deixassem de ser prerrogativa dos sindicatos e houvesse, na lei, uma cláusula de abertura que autorizasse os comitês de empresa (que não têm caráter sindical, mas que representam toda a planta, independente de filiação sindical, e estão garantidos por lei) a serem sujeitos da negociação coletiva. Então, a reivindicação empresarial era uma flexibilização da lei para descentralizar a negociação coletiva. Os sindicatos disseram: “não”. O governo social-democrata também rejeitou o plano. A proposta dos empresários então não foi aprovada.
O que foi feito em consequência disso? Se introduziu uma alteração no Artigo da lei que prevê a contratação por tempo determinado para, a partir de então, permitir ao empregador contratar trabalhadores também por prazo determinado sem estar obrigado a justificar o motivo pelo qual está contratando à prazo fixo. O empregador passou a poder contratar quem ele quisesse por tempo determinado, quando ele bem entendesse e sem justificativa. A lei passou a dizer que se pode contratar um trabalhador por prazo máximo de até dois anos, ou seja, por prazo determinado. Se o contrato durar mais de dois anos, passa a vigorar por tempo indeterminado. É possível prorrogar um contrato por tempo determinado, dentro do prazo de dois anos, até três vezes. E os sindicatos, na época, ficaram sem protestar contra essa medida, de caráter precarizante. Se chegou a um nível em que mais de 50% dos contratos firmados a partir de 2003 são por prazo determinado. Isso precarizou brutalmente as relações de trabalho e subverteu as relações de poder dentro da empresa. A discriminação não é apenas de caráter salarial: ela obriga você a dar o sangue, não querer ser sindicalizado, fazer hora extra para, dali a dois anos, ser então efetivado… E às vezes, ao final dos dois anos, o trabalhador é mandado embora. Essa é a realidade, na Alemanha, mas disto quase não se fala. E os sindicatos silenciaram diante desta mudança porque, por outro lado, não se mexeu na legislação trabalhista para abrir o monopólio da contratação que eles detêm. Só que esse “povo” (os trabalhadores que têm contrato por prazo determinado) não quer mais saber de sindicato. Isso significa que a reivindicação original dos empresários acabou sendo atendida, mas por outra via.
O edifício da CLT, por mais que vocês saibam o quanto eu sou crítico teoricamente dos princípios deste sistema… eu preciso reconhecer que, pelo menos, este sistema da CLT não é “o nada”, a anomia. O sistema de trabalho que se juridificou no México, depois da Revolução Mexicana, é muito pior que isso, especialmente quanto ao Direito Sindical. O nível de precariedade no trabalho é elevado e em muitos casos, desumano. Os sistemas de relações trabalho que nós temos nos demais países da América Latina são muito piores, do ponto de vista de avanços sociais. A exceção fica por conta do direito do trabalho uruguaio e alguns aspectos positivos da legislação argentina. Eu não quero aqui ser mal interpretado e que digam então que eu estou recuando, que agora eu acho que a CLT tem que ser defendida, não: eu quero apenas situar onde nós estamos. Não sou contra a CLT, não sou um inimigo figadal da CLT, nada disso. Para mim, trata-se aqui de um raciocínio político e de garantia de direitos. Os 75 anos de vigência da CLT marcaram profundamente as relações de trabalho no Brasil. Mas sua superação no cotidiano real do mundo do trabalho é inegável. O necessário processo de mudança de paradigma legal será difícil e profundo, porque tardio e até o presente sem diálogo social.
DMT – Voltando à questão da digitalização do trabalho, e ao estágio em que o Brasil se encontra nessa realidade. De que forma o país pode se preparar para esse advento, que vai se tornar cada vez mais intenso com o passar do tempo?
Flavio Benites – Tem um ponto sobre o qual, até agora, eu não ouvi nada em torno da Reforma Trabalhista, que é a qualificação e requalificação da mão de obra. Sem um mega investimento público, não vai ser possível. Se hoje me convidassem para trabalhar em um escritório, eu teria que me requalificar. Com o meu entendimento de advocia, eu não consigo atualmente nem entrar num escritório. Há milhares de “Flavios” por aí, que passaram pela mesma desqualificação. E tem que pegar esses sujeitos e dizer: “não vamos te reensinar a fazer petição, isso não adianta mais, você vai aprender a fazer outra coisa”. E isso ocorre não só na advocacia, logicamente. Em outras profissões também, tanto lá em cima, quanto na ponta de baixo da pirâmide. E aí é preciso pensar no que se vai fazer com esses trabalhadores para que eles possam ter uma forma socialmente adequada de sair do mercado de trabalho e se aposentar. Nós temos que cuidar dos últimos anos de vida dessas pessoas, que elas possam ir para casa e não sejam marginalizadas socialmente. Agora, aos 34 anos, o trabalhador está, de fato, na mesma situação que os mais velhos, ou seja, também pode ser atingido pela desqualificação laboral. No entanto, o trabalhador de 34 anos tem que ser requalificado, caso contrário ele torna-se inútil para o mercado de trabalho. E o sistema social não conseguiria financiar uma solução para aposentá-lo já com essa idade. Estes trabalhadores terão que ser requalificados. O sistema público e também as empresas, através do diálogo social com os sindicatos, precisam dar resposta à esta demanda.
E aí entra a discussão sobre qual é a vocação, quais são os perfis do Brasil. O Brasil vai ter um perfil industrial forte? O que vai acontecer em toda essa discussão em torno à Petrobras, à Embraer etc? Vai privatizar o petróleo? Não é só o problema de privatizar o patrimônio público, mas também o que isso significa em termos de jazida de empregos e de atividade econômica. Vamos ter condição de desenvolver a tecnologia para a exploração e beneficiamento do petróleo, do gás natural, etc, ou essa tecnologia vai vir de fora? Quanto a isso, é preciso ter em conta que a digitalização dos processos de produção externaliza parte do processo que gera o valor agregado. Então, o valor agregado não está mais somente na fabricação do carro, por exemplo: o valor agregado virá cada vez mais de fora da fábrica que produz os automóveis. E onde estão essas empresas (que agregam valor)? Estão em Singapura, vão estar na Amazônia brasileira, vão estar no Congo, extraindo cobalto, vão estar no Quênia, vão estar no deserto de Gobi, porque lá tem cobalto também. Quem vai fundar sindicato no deserto de Gobi? Não tem nem gente lá. Quem vai ter acesso a essas jazidas naturais (no caso, para a produção de baterias para carros elétricos)? Serão os Estados, o ente público? Ou vai ser o capital privado, que já se apropriou, antecipadamente, dessas jazidas? Quer dizer, toda essa discussão, todo esse processo de ruptura tecnológica e de mudança radical e acelerada de paradigmas produtivos tem que ser debatido profundamente, com participação dos agentes sociais no âmbito da esfera pública, do diálogo social. Este deve ser o caminho para mudanças democráticas e sustentáveis na regulação do trabalho assalariado. Em última análise, os rumos deste processo têm muito a ver com as possibilidades de defender a democracia e as conquistas civilizatórias alcançadas pela humanidade.
[…] Obs.: A parte 2 da entrevista pode ser conferida aqui. […]