Sindicalismo, o novo mundo do trabalho e a defesa das democracias. Entrevista especial com Flavio Benites (parte 1)

Flavio Benites. Fotografia: Acervo Pessoal

por Igor Natusch

Atual secretário de relações internacionais do IG Metall, maior sindicato metalúrgico do mundo, Flavio Benites é um nome a ser ouvido quando se trata do mundo do trabalho, tanto no Brasil quanto em escala global. Nascido em Porto Alegre em 1962 e formado em Direito pela UFRGS, Benites esteve no centro dos acontecimentos em um período decisivo para o sindicalismo e para os movimentos sociais no país: a transição entre os anos 1980 e os 1990, com a formação da CUT e as primeiras eleições presidenciais diretas após a ditadura, que consolidaram o PT como força política e Lula como seu grande líder. Trabalhou nos sindicatos dos Bancários, no Rio de Janeiro, e dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, e esteve também na CUT Nacional antes de mudar-se para a Europa e vivenciar a luta dos trabalhadores em outra dimensão.

Hoje, além das atividades de articulação e da representação sindical no chão da fábrica, Flavio Benites dedica-se a temas importantes para o futuro da classe trabalhadora no âmbito internacional – em especial, ao avanço da digitalização e seus muitos efeitos sobre o mundo do trabalho. O que não afasta sua atenção do Brasil e dos fenômenos que aqui ocorrem, tanto no que apresentam de particular quanto nas suas interligações com cadeias globais que exigirão, cada vez mais, novos esforços intelectuais e de militância.

A entrevista foi conduzida em uma das visitas de Benites a Porto Alegre, em julho, e contou com a participação dos advogados Antônio Vicente Martins, Rogério Viola Coelho e Jefferson Alves. Foi uma longa conversa, cheia de aspectos significativos, que o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT publicará em duas partes. Na primeira, Benites fala sobre sua visão do sindicalismo brasileiro, a partir das discussões que dominavam o cenário nos anos 1980 e 1990 – e, a partir desse ponto de vista, propõe leituras sobre o momento atual, em que o Brasil se vê confrontado com as incertezas geradas pelo iminente desmoronamento da CLT.

DMT – Na conversa que tivemos até aqui, antes da entrevista de fato, sobre as suas vivências no movimento sindical brasileiro, você mencionou mais de uma vez liberdade e autonomia sindical como bases de um sistema de relações de trabalho num contexto democrático. É algo em que você acredita muito, ao menos no momento inicial da sua trajetória, e que se esforça para ajudar a construir no sindicalismo brasileiro. Isso existia em São Bernardo, por exemplo? Essa liberdade e autonomia, ainda que não legalmente estabelecida, mas praticada?

Flavio Benites – Não. Existiam, digamos assim, impulsos, traços do que poderia vir a ser um sistema de liberdade e autonomia sindical. Em empresas montadoras, com um número maior de empregados, era assegurado, por meio de acordo coletivo, o direito de representação na empresa, uma representação dos trabalhadores dentro da fábrica. Com proteção contra a dispensa arbitrária, com representantes democraticamente eleitos, através de um estatuto de comissão de fábrica. E havia também essa tradição – porque não era outra coisa, era uma tradição –, compartilhada pelos empregadores e pelas associações empresariais, de não ter ajuizamento de dissídio coletivo para garantir a data-base. Todo mundo ajuizava o dissídio coletivo para não perder a data-base e, só depois disso, negociava. No ABC ninguém ajuizava dissídio coletivo. Se fosse perder a data-base, perdia. Mas acabava não perdendo, por força de negociação. Mas isso não tinha nenhum instrumento jurídico que assegurasse, era assim, na prática. Esses eram os dois elementos que existiam, e que poderiam levar a um futuro sistema de liberdade e autonomia sindical. Mas só.

DMT – O Brasil não teve essa mudança da estrutura sindical. O modelo sindical permaneceu intacto, com unicidade e imposto sindical (até recentemente obrigatório). Isso, por assim dizer, atrasou a organização dos trabalhadores? Ou o Brasil tem especificidades nesse sentido, que também devem ser preservadas e respeitadas?

Flavio Benites – Eu lembro de uma conversa que tive um dia, no térreo da CUT (em São Paulo), com o Miguel Rossetto e o Marcelo Sereno. O Miguel Rossetto era secretário de política sindical da CUT, e o Marcelo Sereno era membro da executiva nacional. Isso era 1995, o Fernando Henrique (Cardoso) já tinha vencido a eleição, estava no governo a galope com o Plano Real e a estabilidade da moeda, e estava sendo desencadeada uma ofensiva contra o sindicalismo, no sentido de liberalização das relações de trabalho, sobretudo no âmbito individual. Essa era a discussão da época. Eu lembro da gente conversando no café do Edifício Martinelli e, no meio da conversa, eu digo: “Miguel, o problema é o seguinte, o futuro chegou, o sistema vai perder”. Lembro que o Miguel disse “Não, não é que o futuro chegou, eles estão querendo fazer o futuro chegar, mas a gente ainda não chegou lá”. E a avaliação que eu tinha, e essa é a resposta para a sua pergunta, era de que aquele sistema que nós tínhamos, do Título V da CLT, com os direitos de unicidade, categoria profissional, poder normativo da Justiça do Trabalho, data-base, não ultratividade das convenções coletivas, ausência de representação no local de trabalho, papel da Justiça do Trabalho decisivo para constituição de normas coletivas, judicialização dos conflitos, individualização endêmica dos conflitos judiciais e, digamos, um assoberbamento do papel da Justiça do Trabalho… O meu pensamento era: esse sistema todo está nos estertores, ele não vai mais nos ajudar.

DMT – Então, quando você fala isso, já está detectando uma crise no modelo sindical existente, um esgotamento.

Flavio Benites – Eu fui identificando, aos poucos, esse esgotamento do sistema. Mas eu diria que os mecanismos previstos no Direito coletivo de trabalho no Brasil não são, e não foram, em si, responsáveis pelos atrasos ou pelos problemas que temos no movimento sindical.

Esses dias, tive uma conversa com um companheiro lá de São Bernardo, o Tarcísio Secoli, e nós falamos sobre os ENTOES. Uma sigla absolutamente esquecida, mas criada no calor das manifestações e das greves no final dos anos 1970, comecinho dos anos 1980, junto com o processo de criação do PT e da CUT. Eram os Encontros Nacionais de Trabalhadores em Oposição à Estrutura Sindical. Esses sindicalistas que fizeram greves no final dos anos 1970 – e muitos foram demitidos, presos, apanharam etc. – chegaram à conclusão: “olha, nós precisamos de uma nova estrutura sindical”. Não existia ainda a ideia de criação de uma central sindical, mas existia a ideia de se fazer alguma coisa. A ideia era, antes da criação da CUT, de formular conceitos e gerar um entendimento comum de como poderia ser uma nova estrutura sindical que superasse os marcos da CLT. A CUT foi fundada, o pessoal do PCB, PCdoB e outros não aceitaram e ficaram dentro da CGT, da chamada CGT do Joaquinzão, e nós tivemos então essa dualidade no início dos anos 1980 com a fundação da CUT em 1983 e, logo em seguida, com a criação formal da CGT. Então, ficaram esses dois grupos, essas duas centrais, e a CUT seguiu nessa discussão dos ENTOES, de formular bases teóricas, jurídicas e políticas de uma nova estrutura sindical, com base nos princípios de liberdade e autonomia.

Mais ou menos nessa época, comecei a notar que o sistema estava nos estertores – e essa era a minha visão a partir de São Paulo, porque o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC tinha a possibilidade de conversar e dialogar com outros sindicatos, também de outras regiões. Então a gente percebia, primeiro, a dificuldade que era falar sobre liberdade e autonomia sindical. A gente chegava em um debate em Porto Alegre, em Salvador ou Curitiba e os companheiros nos diziam: “isso vale para vocês lá no ABC, com a Volkswagen e a Ford, aqui o mundo é diferente, aqui é na porrada! Isso não leva a lugar nenhum, nós precisamos de imposto sindical, da unicidade, senão vamos rachar”. Era muito difícil fazer essa discussão, havia um ceticismo muito grande com tudo que tinha a ver com liberdade e autonomia sindical. E as chapas da CUT foram cada vez mais ganhando sindicatos locais, era uma coisa massiva.

Na véspera do congresso da CUT de 1997, que foi em São Paulo, foram feitas pesquisas oficiais, por institutos independentes, com sindicalistas, com dirigentes sindicais de várias categorias, de várias regiões. Quem é a favor de acabar com a unicidade sindical? Minoria. Quem é a favor de acabar com imposto sindical? A minoria, a maioria queria que continuasse. Quem é a favor de acabar com o poder normativo? A minoria. E aí, quando chegava no debate, quem era a favor da criação da organização local de trabalho? Ficava uma coisa meio a meio. Quem defendia a importância de criar uma organização no local de trabalho dizia “olha, tem que ser uma organização SINDICAL no local de trabalho”. Eu não entendia bem o alcance desse último ponto do debate, mas eu não gostava dessa posição, porque eu não achava que a organização tinha que ser sindical. Na minha forma de ver, tinha que ser independente e dos trabalhadores, independente de afiliação sindical para poder representar todos os trabalhadores da empresa. Mas era a minha visão apenas, e de alguns outros. Ou seja, havia um ceticismo dentro do próprio sindicato cutista, sobre o que se queria com essa organização, com a representação dos trabalhadores no local de trabalho. Uma das dúvidas dos sindicalistas era: “quem serão esses representantes? Será que eles não vão tirar nosso papel?”

Quando começaram a sair os resultados dessas pesquisas internas, na véspera do Congresso da CUT de 1997, eu já não morava no Brasil. Eu vim ao Brasil como convidado, para participar das discussões que preparavam o Congresso em São Paulo. Eu recebi os resultados, vi e pensei: “aqui não tem mais discussão”. Porque agora não eram mais a CGT ou a Força Sindical que não queriam mudar o Título V da CLT, era o nosso povo que não queria mudar. Naquele momento chegou-se a esse ponto. Depois que, ao longo dos anos, muitas eleições sindicais foram vencidas por chapas de oposição cutistas, o resultado foi o sepultamento político da ideia dos ENTOES. Ninguém mais queria mudar a estrutura sindical, porque nós estávamos dentro da estrutura sindical, e passamos – nesse sentido, como sindicalismo cutista e petista avançado, esclarecido e crítico da sociedade – a defender o status quo. E o status quo do sistema é o do Título V da CLT, e ele passou a ser defendido com unhas e dentes por quase todos nós.

DMT – Mas essa defesa da CLT, em especial na atualidade, tornou-se bastante forte também na esfera jurídica. Ganhou um conteúdo mais teórico, inclusive.

Flavio Benites – Na segunda metade dos anos 1990, o Carlos Maria Cárcova criou não uma teoria, mas um enfoque, que se propagou e, para mim, foi um equívoco grave. Principalmente grave, porque teve um certo alcance na esquerda. Se tivesse ficado na insignificância não teria sido um problema, mas teve muitos adeptos e com isso adquiriu influência. O enfoque que ele propagou é o seguinte: a ofensiva neoliberal visa, no plano jurídico, o desmantelamento do Estado social e das conquistas sociais através da desregulação massiva de todos os campos da vida política – e isso significa, aplicado ao mundo do trabalho, o desmantelamento de todos os sistemas jurídicos existentes, porque neles estão corporificadas as conquistas que os trabalhadores tiveram ao longo da sua história, com muita luta, muito sacrifício etc. E no nosso caso concreto, do Brasil, isso significaria, para nós, defender com unhas e dentes a CLT. O problema é que esse discurso não é só jurídico, ele dá base de sustentação para a defesa do status quo, mesmo sem querer fazer isso. Ou seja, no fundo não é maldade: é ingenuidade. É pensar que se está raciocinando em um nível político muito alto, e o seu raciocínio político, na verdade, não é mais do que rasteiro. Esse foi, em síntese retrospectiva, o grande problema que nós tivemos no debate para reforma do sistema jurídico de relações coletivas de trabalho no Brasil.

Então, o movimento sindicalista cutista acabou se rendendo à realidade da sua incapacidade de impulsionar a mudança. E isso foi comprovado nos governos do Lula, que – e não é culpa específica do governo, é do conjunto de relações, como sempre – não teve interesse em mudar o sistema de relações de trabalho. Fizeram isso agora, de maneira brutal, depois que o PT foi tirado do governo.

DMT – E era possível ter feito essa mudança antes? Era possível reformar a CLT em um cenário diferente, no qual os movimentos dos trabalhadores dessem as cartas?

Flavio Benites – O que eu acho é que, se o sistema tivesse sido alterado, em um momento em que a CUT estava forte, já no governo Itamar Franco… ali tivemos uma experiência de diálogo social muito importante, com resultados teóricos e medotológicos avançados obtidos em consenso no documento final do Forum de Contrato Coletivo de Trabalho do então Ministro Walter Barelli (1993/94). Mas é claro que a vitória do Fernando Henrique foi um dano muito grande para o sindicalismo cutista. Não adianta aqui chorar o leite derramado, mas foi. Ainda assim, se, naquele momento histórico, se tivesse usado os impulsos que se tinha, e a base que se vinha conquistando na sociedade com essas vitórias sindicais, com a aliança que se tinha com os juízes, nós poderíamos, talvez, ter alcançado um sistema de autonomia e liberdade sindical. Envolveria riscos, porque consistiria, na prática, em derrubar esse edifício corporativista da CLT e colocar outra coisa no lugar. E havia – nos processos da Itália e da Espanha, por exemplo – referências internacionais para fazer a transição no Brasil sem maior complicação. O documento final do Forum de Contrato Coletivo, que mencionei aqui, também tinha consistência conceitual. Ou seja, tinha muita coisa escrita e publicada, era só trabalhar e adaptar. Mas não se quis fazer.

E isso teria sido melhor para a aterrissagem do governo do PT (no começo de 2003). E, se isso não tivesse sido alcançado antes de 2002, com o início do governo do PT se poderia chegar a isso. Durante o governo do Fernando Henrique não se quis fazer a reforma do sistema sindical, vários agentes sociais não quiseram e são responsáveis por nada ter acontecido. E depois, nos governos do PT, vários agentes sociais também não quiseram que a reforma da CLT acontecesse. Então, não é que o Fernando Henrique não quis, o Lula não quis, o PT não quis. É sempre um conjunto de relações que determina o resultado. Não rolou, como se diz por aí. Não rolou.

DMT – Em reforço a isso, em 1990, com a abertura promovida pelo Collor, houve a explosão de uma revolução tecnológica que já vinha acontecendo no exterior e que, no Brasil, pegou todo mundo de surpresa. Os sindicatos, nesse período todo – e já em 1997, como você mencionou – não pecaram em não esclarecer sua base, e mostrar o que estava ocorrendo, antecipar os impactos disso?

Flávio Benites – Não acho que tenha faltado esclarecer, de parte dos sindicatos, que isso tudo estava acontecendo. Eu não diria que seria desonesto, mas acho que seria muito rigoroso da nossa parte chegar, hoje, e dizer “foi um erro dos sindicatos, e eles não conseguiram (dar conta)”. Claro, os sindicatos erraram, mas poderiam ter feito certo? Eu não sei. Que foi um erro, foi; deveria ter sido esclarecido, e não foi. Agora, eu não digo que é culpa dos sindicatos, eu não faria essa crítica, porque a resposta que tinha que ser dada exigia dos sindicatos algo que eles não podiam dar, um grau de clareza sobre a conjuntura político-econômica internacional que, sinceramente, seria muito exigir isso do movimento sindical brasileiro naquela época. Até porque o movimento sindical europeu também não soube dar as respostas que tinha que dar ao mesmo desafio.

DMT – E onde a gente está agora? Tentando pegar esse panorama do passado, de onde tanta coisa se origina, e observar o problema que se coloca agora, diante da organização sindical brasileira e internacional: qual a dimensão dele?

Flavio Benites – Isso é muito interessante, porque o potencial de melhora para o Brasil, para os trabalhadores, empresários e instituições públicas desse país, é enorme. Mas os riscos também são muito grandes. Nós estamos em um momento em que há vários saltos tecnológicos, com uma velocidade brutal, e isso, do meu ponto de vista, nos coloca numa situação que poderia ser muito mais favorável do que na realidade é. Mas mesmo assim, a situação é muito favorável. Porque o Brasil, do ponto de vista da divisão internacional do trabalho e das possibilidades de produção de bens e de consumo, não é um país desprezível. O Brasil tem um potencial enorme para ter um lugar ao sol na apropriação de um volume de produção de bens, e de circulação de bens e de serviços, integrada à cadeia mundial de produção. Mas ainda tem que acontecer muita coisa para que o Brasil não fique, gradativamente, à margem desse processo. E se ficar à margem, Deus sabe quando poderá ser compensado esse retrocesso.

DMT – Que tipo de coisas têm que acontecer?

Flavio Benites – (pausa) Uma das principais coisas que eu vejo não tem relação direta com as relações de trabalho, mas é a defesa do estado democrático de direito e uma redução da barbárie que é a brutal desigualdade social que existe nesse país.

Quando a gente vem de onde eu venho… Eu vivo há 20 anos na Alemanha e faço esse trabalho de relações internacionais para o IG Metall, então eu também vejo muita coisa de muitos países, não de todos, mas alguns. Uma coisa que não apareceu ainda aqui no debate, e que desconfio que seja latente também no Brasil, é o risco de que a extrema direita antidemocrática e fascista – e eu não estou me referindo ao Bolsonaro – ganhe espaço na política parlamentar. E que se expresse socialmente, como valor. Claro que a candidatura do Bolsonaro é altamente perigosa, e eu não subestimo o que significa o Bolsonaro, mas eu estou falando de uma coisa mais articulada, plantada e implantada nas bases da sociedade. Eu tenho receio, e por isso eu falo que uma das principais coisas, se não a principal coisa que tem que acontecer aqui, é a defesa do estado democrático de direito e em segundo lugar, acoplado a isso, a redução das desigualdades. Hoje, em vários países da Europa, a extrema-direita antidemocrática e fascista já é uma ameaça real, presente no cenário político.

Obs.: A parte 2 da entrevista pode ser conferida aqui.

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