Seremos líderes ou escravos da Indústria 4.0?

Ir ao mercado e passar as compras em um caixa automático, pedir um Uber e ser levado por um carro completamente automatizado que dispensa motorista, ir ao banco e resolver todas as pendências no caixa eletrônico ou até mesmo pelo aplicativo de celular, fazer uma ligação para a central de uma empresa e ser atendido por um robô. A cada dia essas atividades tornam-se mais comuns. Trabalhos que antes eram desempenhados por funcionários agora são feitos por máquinas. Sem contar as funções que, independentemente da tecnologia, foram reunidas e absorvidas por um único trabalhador, como os motoristas de ônibus, que além de dirigir o veículo ainda precisam cobrar a passagem. Cobrador e telefonista são exemplos de ocupações extintas em muitos lugares do globo. O resultado: este ano, o número de desempregados no mundo chegará a 200 milhões, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Essas mudanças nortearam o relatório ‘Futuro do Trabalho: Emprego, Competências e Estratégia da força de trabalho para a Quarta Revolução Industrial’, apresentado durante a última edição do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. Nos países cobertos pelo estudo, diz o documento, as tendências atuais podem levar a um impacto líquido de mais de 7,1 milhões postos de trabalho perdidos entre 2015 e 2020 – dois terços dos quais estão concentrados em funções rotineiras de escritório e administração. Em contrapartida, ainda segundo o texto, haverá um ganho total de dois milhões de empregos nas áreas de computação, matemática, arquitetura e engenharia. O relatório do Fórum resulta de uma pesquisa feita pelos 300 maiores empregadores do mundo, responsáveis por 13 milhões de empregos no planeta, chamando atenção para a revolução digital e incentivando os mercados a se prepararem para ela.

E esse está longe de ser o único alerta. Também de acordo com uma análise feita pela consultoria Ernst & Young, com base em diversos estudos, até 2025 um em cada três postos de trabalho deve ser substituído por tecnologia inteligente. O estudo prevê que, em nove anos, poderá haver extinção de profissões operacionais, como operador de telemarketing, caixa de bancos e mercados e árbitros esportivos, junto com uma maior demanda por carreiras que lidem diretamente com tecnologia de ponta, como designer especializado em impressão 3D e designer de realidade virtual.

Outro estudo apresentado em 2017 pela consultoria americana McKinsey & Company diz que cerca de 800 milhões de profissionais poderão perder seus empregos até 2030. O relatório analisou 800 profissões em 46 países e constatou que até um terço dos trabalhos atuais poderá ser automatizado daqui a 12 anos. Em países do capitalismo central, como Estados Unidos e Alemanha, entre 23% e 24% dos empregos atuais sofrerão diretamente com a automação, segundo esse levantamento. No Japão, esse número pode alcançar 26%. Países periféricos, que têm menos dinheiro para investir em automação e robótica, não seriam tão afetados até 2030. Na Índia, por exemplo, o impacto se daria apenas sobre 9% dos trabalhos. No Brasil, esse percentual pode chegar a 15%.

Em termos de profissões, o estudo aponta o mesmo cenário que o Fórum: sofrerão mais os profissionais que ocupam funções de trabalho repetitivo, como operadores de máquinas e funcionários do setor de alimentação. Também estariam vulneráveis à automação corretores imobiliários, assistentes jurídicos, contadores e profissionais de setores administrativos. Por outro lado, segundo a McKinsey, empregos que requerem interação humana, como médicos, advogados, professores e bartenders têm menos chance de serem substituídos por robôs. Trabalhos especializados, mas com salários não muito altos, como jardineiros, encanadores e cuidadores, também seriam menos vulneráveis. Os autores acreditam que o mundo vivenciará na próxima década uma transição na escala da que ocorreu no início dos anos 1900, período em que o desenvolvimento industrial transformou grande parte do trabalho, que era fundamentalmente agrícola.

Indicado como entrevistado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Fiesp, o gerente de Inovação e Tecnologia do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai/SP), Osvaldo Lahoz Maia, explica que os trabalhos de repetição nos Estados Unidos têm uma tendência de, em dez anos, serem substituídos em 78% por automação, segundo dados da McKinsey. O mesmo acontecerá, segundo ele, com os que trabalham com processamento de informações (69%) e coleta de dados (64%). Com máquinas fazendo atividades braçais, devem manter seu trabalho aqueles que atuam com resolução de problemas, imaginação, interação interpessoal e pensamento crítico. “Por outro lado, os criativos, as pessoas que trabalham com ser humano, com a interatividade, vão demorar mais tempo para sofrer ameaça de substituição. O ser humano nunca vai ser substituído por um robô de maneira integral, principalmente nas interações humanas. Essas profissões serão preservadas: cuidados médicos, psicólogo, o pessoal que faz gestão de pessoas”, aposta.

As avaliações sobre esse cenário futuro, no entanto, estão longe de ser consensuais. Qual será, então, o verdadeiro cenário do mundo do trabalho nos próximos anos? Em uma sociedade onde o avanço tecnológico é tão veloz, iremos competir com os robôs? Seremos multiprofissionais para garantir nosso espaço no mercado e trabalho? Ou estaremos diante do fim do mundo do trabalho?

Quarta Revolução Industrial?

A avaliação de alguns especialistas da área é que o mercado de trabalho passa por uma grande reestruturação, onde tudo acontece de forma muito rápida: desde 2010, o número de robôs industriais cresce a uma taxa de 9% ao ano, segundo a OIT. Esse novo momento é chamando de Indústria 4.0 ou quarta revolução industrial.

Todos os estudos citados no início desta matéria são baseados nessas transformações tecnológicas na indústria e no mercado mundial. De acordo com Marildo Menegat, professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEPP-DH/UFRJ), cada revolução tecnológica que ocorre no capitalismo elimina uma quantidade muito grande de empregos. Num rápido histórico, ele explica que a primeira revolução ocorreu no século 18, com a máquina a vapor; a segunda, da metade do século 19 até o início do século 20, foi marcada pela descoberta e o aproveitamento de novas fontes de energia – como o petróleo no motor, a combustão, a água nas usinas hidrelétricas, o urânio para a energia nuclear – e revolucionaram ainda mais a produção industrial. A terceira teve como propulsor a microeletrônica, a partir da Segunda Guerra Mundial. “A quarta de fato está em curso. O conceito básico dela é o robô, a robótica, e a inteligência artificial e muitas coisas nesses processos são diferentes de outros momentos da história”, diz. Menegat explica que no primeiro momento, quando se aplica o motor à eletricidade na produção, vários empregos são perdidos. No entanto, quando há invenção de novos produtos, como os eletrodomésticos, abrem-se novas vagas no mercado. Dessa forma, o desemprego acaba ficando na média. Porém, para ele, a quarta revolução industrial apresenta um novo cenário. “A microeletrônica prepara a robótica e permite fazer máquinas que pensam, que podem fazer mais de uma tarefa, gerando muito desemprego”, explica.

Nem o conceito de quarta revolução, no entanto, é um consenso. André Vieira, doutor em Ciências Biológicas e professor de Psicologia na Laureate Universities (IBMR), por exemplo, não considera os termos Indústria 4.0 e quarta revolução industrial. Para ele, tanto a ciência quanto a tecnologia estão completamente subordinadas à geração de valor e as descobertas feitas anteriormente não podem ser excluídas desse processo. Logo, não existe algo exclusivamente novo e diferente que possa ser considerado “revolucionário”. “Em termos de formulações científicas, tanto conceituais quanto de feitos tecnológicos, como a Internet das Coisas, por exemplo, trata-se de uma aplicação daquilo que já foi construído antes, como a internet. O que está acontecendo é que essas inovações tecnológicas são parte dessa exigência de rotação do capital que é totalmente necessária para sair da crise, como aconteceram em períodos passados, com inovações tecnológicas que foram próprias de cada tempo. “Eu não me sinto à vontade de classificar em primeira, segunda, terceira e quarta revolução industrial”, explica o autor do capítulo intitulado ‘Capital-imperialismo e psicologia experimental: a Brain Initiative como estudo de caso’ do livro Psicologia e Marxismo que será lançado em outubro.

Efeitos

Durante o Fórum Econômico Mundial, o presidente executivo, o presidente executivo da entidade Klaus Schwab, afirmou que a quarta revolução industrial poderá aumentar a renda global e melhorar a qualidade de vida da população do planeta à medida em que elevará a produtividade a partir dos ambientes amplamente automatizados, operados por robôs e conectados a dispositivos inteligentes que serão capazes de interagir e cooperar com pessoas, máquinas e sistemas. A projeção positiva aparece no relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) denominado ‘A próxima revolução de produção: implicações para governos e empresas’, de 2017. O texto descreve e defende que as novas tecnologias de produção trarão empregos mais seguros, a produção será mais ecológica e os serviços personalizados e cada vez mais velozes no atendimento às demandas das pessoas e dos mercados. Isso já acontece em uma das fábricas da BMW, em Leipzig na Alemanha, onde os mais de mil robôs fazem todo o processo de produção do primeiro modelo elétrico da marca e os funcionários acompanham tudo à distância pelas telas de computadores, segundo informações divulgadas pela própria montadora. “Uma fábrica de automóveis pode ser até 95% automatizada. E isso significa que o trabalho humano é absolutamente residual, ele fica para os detalhes, que é a supervisão das máquinas. O trabalho mesmo, que é parte do processo produtivo, é praticamente inexistente. E isso vai ser aplicado para todos os tipos de indústrias. É a grande novidade da tal revolução”, resume Menegat. E enfatiza: “Já é possível colocar no interior da memória de uma máquina a realidade fora dela em tempo real. Toda fábrica pode funcionar sem nenhum trabalhador, apenas sendo acompanhada pela tela de um computador”.

Ruy Braga, professor da Universidade de São Paulo (USP), concorda que as formas de automação na indústria têm evoluído muito com a incorporação da inteligência artificial que tendem a ‘relocalizar’ o patamar tecnológico da indústria para outro nível. “Com os avanços da robótica, da microeletrônica, da logística, teremos situações nas quais a presença do trabalhador nas linhas de produção nas indústrias tenderia a declinar, e parece que essa é uma tendência real, sem dúvida alguma, do ponto de vista tecnológico”, diz. No entanto, ele ressalta que a indústria só tende a investir em novas tecnologias quando o custo do trabalho vivo que ela vai poupar é atraente e garante o retorno do investimento.

Embora reconheça que existe uma transformação em curso que anuncia um futuro bastante imprevisível do ponto de vista político, o professor não concorda que isso aponte para o fim do capitalismo e nem mesmo o fim da exploração do trabalho. “Essa discussão acontece desde que o capitalismo é capitalismo, desde a Revolução Industrial. Do século 19 até hoje, é claro que a tecnologia é acumulativa e a automação sempre avançou. Ainda assim, temos uma classe trabalhadora que é 35 vezes maior se comparada com aquela época. O que provavelmente vai acontecer é um pouco de acomodações, partilhas, redistribuições da carga de trabalho”, aponta. Ele reforça que o trabalho humano é a fonte do valor excedente. Logo, o chamado trabalho vivo – humano – continua como um elemento central da acumulação capitalista porque é ele que gera o lucro. “Claro que vai continuar existindo trabalho e esse trabalho continuará sendo explorado. Da mesma maneira que, de outra perspectiva, podemos incluir as tendências de acumulação por especulação, por exemplo”, opina.

Máquina inteligente?

Mas há uma certeza: o esforço de reproduzir as características humanas às máquinas. Um exemplo é o machine learning, que significa aprendizado de máquina ou o aprendizado computacional em inteligência artificial. Segundo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) que desenvolve trabalhos nas áreas de economia informacional, cidadania digital e internet, trata-se de uma tecnologia baseada em algoritmos que se alteram para cumprir uma determinada missão e que corrigem possíveis erros no decorrer do processo. Isso está presente quando você realiza uma pesquisa no Google e o próprio site coloca em evidência o que é mais importante para o usuário. Mas como o site sabe disso? “Porque ele obteve uma série de dados da navegação, sabe quem é esse usuário, o número identificador, guarda as informações sobre as buscas anteriores. Portanto, se durante a busca o internauta clica no décimo link sugerido, significa que o resultado não foi tão bom assim e isso será corrigido”, explica. Também no ambiente fabril, ter máquinas que aprendem com os próprios erros e estão em constante evolução pode aumentar a produção, além de otimizar todo o processo.

Nesse cenário de inovações, aparece também a tecnologia vestível (wearable technology), que significa a incorporação de dispositivos eletrônicos avançados em roupas, calçados e acessórios. Já existem, por exemplo, relógios fabricados com vários tipos de sensores que podem captar o movimento do corpo, frequência cardíaca e pressão arterial. Uma fábrica de sapatos chinesa colocou sensores nos solados que captam o movimento dos indivíduos e esses dados são recolhidos pelo celular do usuário para que ele possa monitorar os passos que deu. Mas tudo isso vai além, segundo André Vieira, que estuda neurociências das emoções humanas e é historiador da psicologia experimental. De acordo com o pesquisador, esses sensores usados no corpo humano por meio de objetos também são utilizados para monitorar o desempenho de máquinas e melhorar a segurança do trabalhador nas fábricas. Uma pessoa que fica exposta a altas temperaturas dentro de uma fábrica, por exemplo, poderá usar roupas que monitorem seu estado fisiológico por meio de um aplicativo que indique quando ela precisar cessar o trabalho. “A tecnologia vestível também é utilizada dentro da indústria, como meio de segurança do trabalho e monitoramento em tempo real da saúde do trabalhador”, explica. Esse tipo de tecnologia pode analisar em tempo real condições emocionais como estresse, fadiga e raiva. Mas sempre existe uma dupla face. “O que é exposto para nós é de que ela melhorará as condições de trabalho, e eu não tenho dúvida disso. Considero que esse monitoramento protege o trabalhador de uma série de problemas de saúde que podem acontecer, mas isso sempre é acompanhado do controle do próprio comportamento do trabalhador na fábrica. Essa análise da saúde e da segurança do trabalhador em seus espaços é, ao mesmo tempo, um controle do seu corpo”, previne André.

A hipótese de que a confluência de tecnologias, como impressão 3D com a internet das coisas (internet of things, ou IoT) – conceito tecnológico em que todos os objetos da vida cotidiana estariam conectados à internet, agindo de modo inteligente e sensorial – e sensores, da robótica avançada com a neurociência, da inteligência artificial com os novos materiais e com a biologia sintética, entre outras possibilidades, poderá trazer produtos e serviços qualitativamente diferentes e superiores aos atuais não parece exagerada para Sérgio Amadeu. Ele ressalta, no entanto, que “não podemos extrair daí que os resultados desse processo produtivo serão distribuídos de modo minimamente equitativo entre as populações e regiões do planeta”. E completa: “Também não temos como afirmar que não vão precarizar ainda mais a vida de segmentos pauperizados das nossas sociedades”.

Extinção ou exploração?

O sociólogo Ricardo Antunes, autor do livro recém-lançado ‘O Privilégio da Servidão: o novo proletariado dos serviços da era digital’, explica que Indústria 4.0 é um movimento que nasce na Alemanha em 2011, pensado pelos países capitalistas avançados, movidos pela ‘internet das coisas’. “Temos uma indústria mais limpa, informacional digital, mas a questão fundamental é sabermos o que vai se passar com essa classe trabalhadora que vai se tornar ainda mais supérflua e percebermos que as consequências são desiguais entre o Norte e o Sul do mundo”, alerta. Ele explica que na Europa e nos Estados Unidos houve uma diminuição do proletariado industrial em função da retração da indústria provocada pelo aumento da produção em serviços. Ao mesmo tempo, diz, a produção industrial migrou para países periféricos, onde a mão de obra é mais barata. “Se nós olharmos para China, Índia e a América Latina nas últimas duas décadas, ainda que de modo desigual, a diminuição do proletariado industrial não se deu do mesmo modo. Na China, por exemplo, nas últimas três décadas, houve uma expansão enorme do proletariado industrial, como também em outros países da África e da América Latina, ainda que uma tendência forte seja o crescimento do chamado trabalho em serviço”, detalha. Ou seja, para Antunes, a automação precisa ser pensada não como substituição, mas sim como maior precarização do trabalho humano.

Para Menegat, no entanto, essa migração do trabalho para países com mão de obra mais barata é temporária. Ele cita o caso dos cortadores de cana, que já lotaram os canaviais da cidade de São Paulo, vindos do Nordeste do Brasil. Quando as ceifadeiras tornaram-se mais rentáveis, trabalhando 24 horas por dia, cada uma substituindo até 15 trabalhadores, já não se fazia mais necessária a presença de cortadores nessa produção. Para Menegat, o mesmo vai acontecer com o telemarketing. “Hoje você abre postos de trabalho na Índia, onde os salários são mais baratos do que nos EUA, na Europa, e até mesmo no Brasil. Mas daqui a pouco esse trabalho poderá ser feito facilmente por um robô, por um software. O problema que o capitalismo produziu hoje é a humanidade como um excesso para o capital. Qual é a solução técnica para o excesso que a humanidade é? Eliminá-la. E isso já está acontecendo: temos a maior quantidade de refugiados no mundo, a maior quantidade de pessoas passando fome e a maior quantidade de pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão. E, na história do capitalismo, isso só tende a crescer”, alerta. Menegat vai ainda mais longe. Considerando que o trabalho é o elemento central do capitalismo e que sem trabalho não há consumo, ele tira conclusões ousadas. “A quarta revolução é o início do colapso do capitalismo. Nós chegamos a uma situação em que o sistema não funciona e isso produz uma situação catastrófica”, aposta.

Antunes, no entanto, é enfaticamente contrário à perspectiva de fim do trabalho: “É uma ideia eurocêntrica sem nenhuma base ontológica”. Ele conta que há trabalhadores jovens na construção civil recuperando prédios em Veneza, diz que “não há uma rua na China” que não tenha uma obra em curso. “São máquinas e operários, homens e mulheres trabalhando no esquema Zero Hora”, resume, citando uma modalidade de ‘contratação’ que nasceu na Inglaterra e ganhou espaço no mundo. Significa que o trabalhador, seja ele médico, advogado, professor, eletricista ou cuidador, fica aguardando um chamando pelo aplicativo para venda de seus serviços e só recebe pelas horas que trabalhou, sem nenhum vínculo formal nem direitos trabalhistas. O exemplo mais atual são os motoristas de Uber. Apenas no Brasil, segundo dados da própria empresa, o número desses trabalhadores saltou de 50 mil para 500 mil em 2016. E há um avanço pelo mundo, tanto que o movimento crescente de profissionais nessa modalidade de trabalho tem recebido o nome de ‘uberização’. “No caso dos motoristas de Uber é ainda pior que o Zero Hora, já que eles são punidos caso recusem as chamadas. São formas disfarçadas de trabalho assalariado que emergem na era digital, o que eu defino como os novos escravos digitais, que não têm o descanso de domingo e trabalham uma jornada superior a oito horas”, explica Antunes. O sociólogo argumenta que na Alemanha, um dos países mais industrializados do mundo, o desemprego continua em queda e atingiu um novo mínimo histórico, de 5,5% em janeiro deste ano, segundo dados da Agência Federal do Trabalho. Mas por que o nível de desemprego reduz ao mesmo tempo em que são introduzidas novas tecnologias? “Muitos jovens, na última década, perderam o emprego em tempo integral e passaram a fazer trabalho parcial para complementar a renda. Estão empregados, mas precarizaram as suas condições. Essa é a nova morfologia do trabalho. Dizer que a classe trabalhadora está aumentando ou diminuindo não explica nada. Nós temos que entender onde ela se precariza”, defende.

A mesma linha de argumentação pode ser usada para analisar potências como o Japão, onde o desemprego atingiu a menor taxa em 24 anos no mês de novembro de 2017, com apenas 2,7%. Esse é o mesmo país que lidera a lista dos mais robotizados do mundo, com 306 robôs para cada 10 mil trabalhadores em 2010, seguido pela Coreia do Sul e a Alemanha, com densidades de 287 e 253 robôs, respectivamente, segundo a Federação Internacional de Robótica (IFR, na sigla em inglês). No entanto, cerca de 22% da população japonesa trabalha mais de 49 horas por semana, de acordo com dados de 2014 do Instituto de Política do Trabalho e Treinamento do Japão. Os dados colocam o país atrás da Coreia do Sul, com 35% dos trabalhadores cumprindo uma jornada semelhante, e na frente dos Estados Unidos, onde o índice é de 16%. Em 2017, o número de mortes por excesso de trabalho no Japão fez com que a iniciativa privada adotasse o plano ‘Sexta-Feira Prêmio’, em que os funcionários são liberados às 15h toda última sexta-feira do mês. A ideia ganhou força após o suicídio de uma funcionária da Matsuri Takahashi da Dentsu, maior agência de publicidade do país. Ela registrou 105 horas extras em outubro de 2015, antes de tornar-se depressiva. Após a morte, o governo japonês fez buscas nos escritórios de várias empresas e elaborou um relatório constatando que um quinto das companhias tinham funcionários que faziam mais de 80 horas extras em um mês, o limite permitido pelo governo. Segundo estatística do governo, a jovem faz parte das mais de duas mil mortes anuais ligadas ao excesso de trabalho no Japão.

No Brasil, pouco industrializado se comparado aos países citados acima, a taxa de desemprego subiu para 13,1% no primeiro trimestre do ano, atingindo 13 milhões de pessoas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. “Não há como negar. Sempre que o capitalismo puder eliminar um trabalho vivo e substituí-lo por um trabalho morto, ou seja, por maquinaria, tecnologia, ele vai fazer. O trabalho morto, máquinas, equipamentos não se rebelam, não fazem greve, não ficam descontentes. Mas essa tendência forte tem limite. Esse avanço não pode chegar à extinção capital do trabalho, é uma impossibilidade ontológica e não só no capitalismo. Se um dia chegarmos a uma sociedade fundada num novo sistema de metabolismo social, onde o trabalho seja autônomo, livre, social, coletivo, onde a qualidade humana seja preservada, as reais necessidades das relações individuais sejam conectadas com necessidades coletivas, os que fazem e os que concedem vão desaparecer”, defende Ricardo Antunes. A partir dessa consideração, ele afirma que não há nenhum interesse do capitalismo em chegar a esse ponto, pelo contrário. “O trabalho tem que ser flexível, multifuncional, sem direito, sem nenhuma normatização. As grandes redes de fast food contratam o trabalhador para uma jornada de 11h às 14h e depois ele recomeça às 19h para um novo turno. Como ele mora longe do trabalho, em vez de ir para casa, fica esperando na própria empresa. Quantas horas ele vai receber? Um salário miserável por no máximo seis horas. Isso é o que os capitais querem”, resume.

Dados da Organização Internacional do Trabalho parecem confirmar essa tendência. De acordo com a publicação ‘Perspectivas Sociais e de Emprego no Mundo: Tendências 2018’, a taxa de desemprego global se estabilizou após um aumento em 2016. As projeções indicam que esse número chegou a 5,6% em 2017, o que representa mais de 192 milhões de pessoas desempregadas no mundo. O relatório destaca o fato de que o progresso significativo alcançado no passado na redução do emprego vulnerável está paralisado desde 2012. Estima-se que cerca de 1,4 bilhão de trabalhadores estavam em empregos vulneráveis em 2017 e que outros 35 milhões deverão se juntar a eles até 2019. Nos países em desenvolvimento, o emprego vulnerável afeta três em cada quatro trabalhadores. Na América Latina e Caribe, a previsão é de que a taxa de desemprego diminua apenas marginalmente, passando de 8,2% em 2017 para 7,7% até 2019. Já na América do Norte, o desemprego provavelmente diminuirá de 4,7% em 2017 para 4,5% em 2018, impulsionado por maior oferta de trabalho no Canadá e nos Estados Unidos.

Para o gerente de Inovação e Tecnologia do Senai, Osvaldo Lahoz Maia, no Brasil esse cenário será um pouco diferente por conta do alto custo da robotização. Ele explica que, segundo dados da Confederação Nacional da Indústria, apenas 1,5% das empresas brasileiras estão 100% preparadas para serem totalmente automatizadas. A projeção é de que daqui a dez anos esse percentual suba para 25%. No Brasil, cerca de 11.900 robôs industriais serão comercializados entre 2015 e 2020, segundo a Federação Internacional de Robótica. “As sociedades industrializadas desenvolvidas já passaram da fase de produzir apenas bem de consumo, elas já associam as novas tecnologias a um serviço. O Iphone, por exemplo, não é apenas um aparelho celular, a tecnologia contida nele envolve um serviço. O Brasil ainda está preso na fase anterior, quando a indústria não consegue escapar desse intervalo de só produzir bem de consumo. Podemos afirmar que o país está sofrendo uma desindustrialização precoce. Os países desenvolvidos são desindustrializados depois que atingem um patamar de desenvolvimento conjunto entre indústria serviços, mas isso não ocorre aqui”, explica. Ainda assim, só no Brasil, 15,7 milhões de trabalhadores serão afetados pela automação até 2030, segundo estimativa da consultoria McKinsey.

Outras fontes

Indo além do cenário da robotização, Ricardo Antunes afirma que é o capital financeiro que comanda a perda e a precarização de postos de trabalho. “O capital financeiro é um Frankenstein sem alma. Em minutos bancos como Itaú, Santander e Bradesco ganham milhões de um dinheiro que nem vemos. Enquanto isso, temos quase 30 milhões de brasileiros desempregados, se considerarmos o subemprego e o desalento, em um país onde 100 milhões de pessoas fazem parte da parcela economicamente ativa. O que você pode dizer de uma população que tem quase 30% dela desempregada ou com trabalho não seguro? É uma tragédia”, denuncia.

Ruy Braga confirma que as formas de acumulação por especulação desestimulam o investimento produtivo e isso gera impacto sobre o emprego. “Isso significa um desestímulo à criação de postos de trabalho qualificados. Toda acumulação por especulação depende de uma espécie de pulsão sobre tributos, sobre a dívida pública, sobre os fundos públicos, o que diminui muito o crescimento econômico num sentido amplo e a oferta de empregos”, explica.

Já Sérgio Amadeu ressalta a relação estreita entre financeirização e robotização, como duas faces de um mesmo processo “O que se vê hoje são computadores, algoritmos de alta frequência, que buscam os melhores investimentos, redes de alta velocidade, que são dispositivos indispensáveis para o desenvolvimento do mercado financeiro. Não existem condições de o mercado financeiro ter a proeminência sem as tecnologias que ele utiliza”, diz.

Que fazer?

Após sinalizar mudanças na configuração do trabalho no mundo, o relatório apresentado no Fórum Econômico Mundial recomendou foco imediato dos governos em ações que possam evitar o desemprego em massa. Entre elas está a construção de uma força de trabalho com habilidades futuras, que o texto chama de “talentos para liderar”, ou seja, o investimento em carreias que envolvam criatividade e relacionamento, funções que a inteligência artificial ainda não consegue reproduzir com precisão. A consultoria Mckinsey também apontou em um de seus relatórios que, para cada posto de trabalho eliminado, 2,4 novos serão criados, principalmente em startups – empresas em fase inicial que desenvolvem produtos ou serviços inovadores, com potencial de rápido de crescimento. No entanto, segundo a empresa, a maior parte das pessoas que verão seu emprego desaparecer ainda não tem as competências necessárias para os trabalhos que surgirão.

Segundo o relatório, para cumprir as exigências de mercado, os governos e empresas precisarão mudar profundamente sua abordagem em relação à educação, habilidades e emprego, colocando o desenvolvimento de talentos e a futura estratégia da força de trabalho no centro de seu crescimento. “As empresas não podem mais ser consumidoras passivas de capital humano pronto. Eles exigem uma nova mentalidade para atender às suas necessidades de talentos e otimizar os resultados sociais. Os governos precisarão reconsiderar fundamentalmente os modelos de educação de hoje”, aponta o relatório. Marise Ramos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), contesta. “A teoria do capital humano, a que o relatório faz referência, já se mostrou infundada. Não é a educação que agrega valor ao sujeito trabalhador nem ao país. A questão é: os países são desenvolvidos porque investem em educação ou investem em educação porque são desenvolvidos?”, critica. Na mesma linha, ela afirma que também já está “superada” a ideia de qualificação profissional como um “estoque de conhecimento”, portanto, como um processo puramente educacional. “Trabalhos precários contribuem para trabalhadores precarizados porque a qualificação profissional é produto também da relação do trabalhador com o seu posto de trabalho”.

O fato é que o Brasil, mesmo distante da Indústria 4.0, já está movendo esforços na direção dessas soluções. Osvaldo Lahoz Maia concorda que o caminho passa por uma profunda mudança nas matrizes curriculares. “O relatório aponta que 32% das competências no mundo são perdidas em cinco anos. Isso nos obriga à constante requalificação, por meio da educação online e os sistemas educacionais precisam conversar com os sistemas produtivos. A saída é investir em educação profissional com ênfase em matemática, ciência”, defende o gerente de inovação do Senai, entidade privada sustentada principalmente por uma contribuição compulsória sobre a folha de pagamento das empresas que, por ser repassada ao consumidor no preço dos produtos, é considerada por muitos como recurso público. Oferecendo especialmente cursos rápidos, de formação inicial e continuada, o Senai foi também o maior operador do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), financiado com recursos do governo federal.

A recente Reforma do Ensino Médio e a nova proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) são exemplos de passos já dados pelo governo brasileiro nessa direção. Marise explica que isso se expressa, principalmente, na redução da formação geral no ensino médio: pelas novas regras, somente as disciplinas de português e matemática poderão ter carga horária ampliada no horário integral. “Já que, segundo o relatório do Fórum, mais de 30% das competências se perdem num período curto, é preciso que haja mecanismos para a renovação dessas competências”, diz, explicando que, por isso, as reformas apostam no alargamento da parte flexível do currículo às custas da redução da formação básica. Isso explica também, segundo Marise, o fato de a BNCC, que trata da parte comum do currículo, ser organizada por competências, que podem ser facilmente renovadas. “O problema de levar essa abordagem da renovação permanente das competências para a educação é que se promove uma educação no varejo. Fazer qualificações pontuais conforme demandas de novas competências não redunda num trabalhador qualificado, autônomo, capaz de gerir a flexibilidade da produção”, critica. E completa: “Sem dúvida, a requalificação é absolutamente necessária. Mas uma qualificação de fato, principalmente considerando as novas tecnologias, precisa se dar a partir de uma base de formação científica, tecnológica, cultural que permita ao trabalhador compreender esse novos processos”.

Gaudêncio Frigotto, professor do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), concorda: “A melhor educação para o futuro imprevisível é uma excelente educação básica”, diz. E completa: “O jovem que frequenta os Institutos Federais, o Colégio Pedro II, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, por exemplo, ganha os elementos para a leitura do mundo, como dizia Paulo Freire. Aprende, ao mesmo tempo, o domínio da ciência e da técnica que está por trás dos processos produtivos e do serviço, que vai da medicina à educação, da cultura à arte… Já nessa perspectiva de adestramento, desprepara-se o estudante tanto do ponto de vista do direito à cidadania quanto do direito a lutar por seu futuro”.

Desviando o foco dessas ‘soluções educacionais’, Ruy Braga alerta que a discussão sobre a relação entre a quarta revolução industrial e o desemprego deveria estar pautada na redução da jornada de trabalho para toda a sociedade. “Não há necessidade de se continuar trabalhando 44 horas por semana. Se houvesse melhor distribuição da carga horária, mais pessoas teriam acesso ao emprego. O debate clássico e estratégico para a esquerda brasileira e mundial hoje é como diminuir a jornada de trabalho sem redução de direitos. Ficar batendo palma para esse tipo de bobagem de catástrofe tecnológica é coisa de ficção científica”, avalia. Nesse sentido, as próprias tecnologias ofereceriam a possibilidade de superar positivamente a situação de catástrofe do emprego. “O trabalho poderia ser organizado de forma mais humana, com o uso das tecnologias que proporcionassem condições mais leves de se trabalhar e de se ter mais qualificação, ou seja, deveríamos discutir o bem-estar das pessoas”, defende.

Marildo Menegat discorda dessa estratégia. “É uma esquerda cega essa que se pautou historicamente em desenvolver esse modelo de sociedade que se apega apenas no debate da melhor distribuição de riqueza. O mundo do trabalho só pode ter uma transformação se eliminarmos qualquer possibilidade de o trabalho ser central na existência humana”, argumenta. Ele acredita que considerar o trabalho como processo de humanização é uma “furada”. “Temos que ser capazes de elaborar condições de nos tornarmos seres livres, autodeterminados. Se eu quero sair do mundo do capital, preciso ser contra o trabalho e não pelo trabalho. Ou nós transformamos o nosso modo de produção, ou seja, conseguimos de fato superar essa forma sistêmica de vida, ou estamos perdidos”, sentencia.

Além da interação dos sistemas educacionais com o empresariado, da redução da carga horária sem perda de direitos e a superação do próprio sistema, outras alternativas têm sido defendidas para superar a perda de postos de trabalho no mundo. “A longo prazo, a única saída é que toda pessoa tenha uma renda garantida pelo Estado, já que a produção vai ser cada vez mais abundante e não dependerá de uma grande força de trabalho, mas sim de inteligência estratégica de robôs e de algoritmos”, defende Sergio Amadeu. Para ele, a renda básica universal poderia ser implantada de forma a reduzir a precarização do trabalho e garantir que todos pudessem consumir. Alguns especialistas associam essa medida à taxação dos próprios robôs, num processo em que o empresário pagaria ao Estado o imposto por cada robô que utiliza.

Um projeto parecido foi tema de um plebiscito na Suíça em 2016. Eleitores rejeitaram em uma votação esmagadora a proposta que garantiria renda básica equivalente a R$ 9 mil mensais para todos os cidadãos do país. Os resultados finais mostraram que 77% dos eleitores se opuseram ao plano e 23% foram favoráveis. Se tivesse sido aprovada, a proposta garantiria renda incondicional para todos os adultos, independentemente de trabalharem ou não. O Estado pagaria ainda 625 francos suíços (R$ 2.270) para sustentar cada criança. Os defensores da medida argumentavam que como o trabalho está cada vez mais automatizado, há menos empregos disponíveis. Com uma renda per capita estimada em US$ 59 mil ao ano (R$ 211 mil) e taxa de desemprego inferior a 4%, o país não carece de políticas públicas de combate à pobreza, segundo os defensores do projeto, o que lhe permitiria “dar-se ao luxo” de experimentar tal estratégia. Mesmo essa medida, no entanto, não é consensual. Ricardo Antunes é um dos que problematizam. “O capitalismo destrutivo tem um conjunto de medidas que são paliativas. Isso não muda a estrutura desigual do capitalismo brasileiro. É como o Bolsa Família, que não tocou em nenhum pilar estruturante da miséria brasileira, assim como a renda universal não vai tocar nos pilares estruturantes da miséria global”.

Fonte: Carta Maior, com Fiocruz
Texto: Ana Paula Evangelista
Data original da publicação: 17/07/2018

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *