Sentenças de assédio moral devem dar recado social, diz juíza do trabalho

A juíza Valdete Souto Severo acompanha a evolução de casos de assédio e defende uma reação social. Fotografia: Charles Soveral/DMT

por Charles Soveral

Enquanto o assédio moral não for tratado como uma violência grave e que merece grande reparação, haverá tendência para novos casos surgirem. Por essa razão é importante que, junto a uma mudança cultural da sociedade, a Justiça também perceba seu importante papel no combate a esse tipo de humilhação. A opinião é da juíza do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 4ª Região, Valdete Souto Severo, ao lembrar que os casos de assédio moral crescem fortemente no país.

Segundo os números de processos do Tribunal Superior do Trabalho (TST), na comparação entre o primeiro trimestre de 2013 com igual período de 2014, os casos julgados de assédio moral aumentaram em 33%. Foram 369 casos até o fim de março, contra 244 no primeiro trimestre de 2013. Atualmente, são mais de 1,8 mil processos sobre o tema no TST, o que representa 0,7% do total de 2014.

Um dos setores da sociedade em que surgem mais denúncias de assédio moral é o dos bancários. Uma pesquisa da Confederação Nacional dos Bancários (Contraf) no ano de 2011 revelou que em 2013 58% de um total de 37 mil bancários entrevistados reclamaram de situações de assédio no trabalho.

Em entrevista exclusiva para o DMT, a juíza Valdete Souto Severo nos fala um pouco mais sobre o tema.

DMT – A postura da Justiça do Trabalho mudou no que diz respeito ao assédio moral? O que sua experiência como juíza do trabalho pode nos dizer sobre isso?

Valdete – Embora ainda exista a ideia de que há uma “indústria do dano moral”, o fato é que a Justiça do Trabalho tem proferido decisões paradigmáticas, reconhecendo assédio moral, inclusive estrutural, e os danos que daí decorrem. Existem várias decisões recentes do TST reconhecendo a prática, por exemplo, de assédio estrutural pela cobrança excessiva de metas e deferindo indenização por dano extrapatrimonial em decorrência disso. Certo é que ainda temos um longo caminho a trilhar, pois ainda há resistência, que em grande medida tem relação com a implantação da lógica de gestão por metas também no Poder Judiciário e, portanto, no trabalho de juízes e servidores.

A senhora defende que as sentenças, quando comprovado o assédio moral no serviço público, sejam de caráter pedagógico. A senhora poderia explicar um pouco mais esse ponto?

Valdete – O caráter pedagógico da sentença é exatamente o “recado social” que ela deve conter. São muitos os doutrinadores que há tempo alertam para o fato (de resto facilmente comprovável) de que um processo entre A e B não encerra controvérsia apenas entre dois sujeitos. Na realidade, é reflexo de um conflito maior, de uma questão social que, no caso da Justiça do Trabalho, é exatamente a questão da exploração do trabalho pelo capital. Então cada vez que o juiz sentencia reconhecendo direito ao pagamento de horas extras, insalubridade ou indenização por dano decorrente de assédio, o que o Poder Judiciário está fazendo é reconhecer que existe um drama social naquele ambiente de trabalho, que precisa ser enfrentado e alterado. A questão do assédio moral é emblemática nesse sentido. Dificilmente a prática de assédio é individual[,] e o empregador, seja ele ente público ou privado, tem o dever de agir para que o ambiente de trabalho se torne saudável. Daí o caráter pedagógico da indenização, que deve servir como um incentivo para que não haja mais assédio no ambiente laboral, estimulando o empregador a alterar a realidade naquilo que tenha de “facilitador” das perversões de convívio social que se caracterizam como assédio. Esse caráter pedagógico se revela na hora da fixação do valor do dano. O juiz deve considerar o fato (sua gravidade), o porte da empresa (a fim de não inviabilizar a atividade) e esse caráter pedagógico (que a sentença represente um verdadeiro desestímulo à prática do assédio).

Pela sua experiência como juíza do trabalho, quais são os setores mais sujeitos ao assédio tanto no serviço público quanto na iniciativa privada?

Valdete – Alguns setores são emblemáticos, na iniciativa privada. É muito recorrente a alegação de assédio em atividade bancária e call center, por exemplo. A cobrança de metas, o valor da remuneração, a redução do número de empregados para as mesmas tarefas e a submissão do trabalhador ao ritmo da máquina (computador) são alguns elementos que costumam aparecer como causas de um ambiente assediador.

A juíza do TRT adverte que no setor público, tem crescido  o número de demandas discutindo situações de assédio e alguns ambientes parecem mais afetados como as áreas da saúde e da educação. Fotografia: Charles Soveral/DMT.
A juíza do TRT adverte que no setor público tem crescido o número de demandas discutindo situações de assédio e alguns ambientes parecem mais afetados, tais como as áreas da saúde e da educação. Fotografia: Charles Soveral/DMT

No setor público, tem crescido assustadoramente o número de demandas discutindo situações de assédio e alguns ambientes parecem mais afetados, como a área da saúde e da educação, em parte por conta do completo sucateamento desses serviços públicos, em parte pela adoção da forma de gestão por metas. Também não se pode descartar o fator da perda de sentido do trabalho. No âmbito judiciário, a adoção de um sistema informatizado tem suprimido esse sentido do trabalho, causando estresse físico e mental, algo que acaba, por via transversa, potencializado o desgaste entre colegas e chefia imediata.

A legislação para coibir o assédio deveria ser mais dura e mais abrangente ou a atual legislação é suficiente? No seu entender, o que precisa mudar para que o assédio moral passe a ser cada vez menor em nossa sociedade?

Valdete – Uma legislação mais “dura” não resolveria nossos problemas. Na realidade, o problema não é jurídico, é cultural. Temos uma cultura marcada por séculos de escravidão, por uma lógica estatal única (somos o único Estado que primeiro tornou-se estado, com toda a burocracia daí decorrente, quando da vinda da família real portuguesa, e só mais tarde tornou-se um país independente) e, portanto, por uma relação de extrema assimetria entre empregador e empregado, estado e cidadão. É preciso: alterar a lógica de relacionamento no ambiente de trabalho; ultrapassar essa vetusta ideia de exigir atingimento de metas; pensar diferente a função do Estado e a forma de prestação dos serviços públicos que são essenciais. Enfim, não me parece que haja carência de legislação. Parece-me que há uma necessidade de reformulação social bem mais profunda, partindo do pressuposto da escolha consciente sobre o tipo de sociedade em que queremos viver.

A juíza Valdete Souto Severo, do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 4ª Região, é especialista em Processo Civil pela Unisinos; especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela Unisc; Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Europeia de Roma – UER (Itália); especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai (Udelar); Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP; pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social; ´professora e Diretora da Femargs – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS.

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