Salário mínimo, pobreza e distribuição da renda

Ricardo Carneiro

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 18/09/2018

Um dos temas mais relevantes em discussão na campanha presidencial, pelo papel que ocupa na questão social, é o do futuro do salário mínimo e, mais precisamente, das regras do seu reajuste. É sabido que os extraordinários ganhos reais ocorridos no governo Lula, de 58,7%, teriam que ser moderados como ocorreu em 2011 com a nova regra, acordada em 2007 e com vigência plena a partir de então, segundo a qual, o reajuste ficou indexado ao crescimento do PIB de dois anos antes, somado à variação de preços do ano imediatamente anterior. Com essa regra foi possível preservar ganhos reais suavizados do salário mínimo cujo aumento real entre 2011 e 2015 foi ainda expressivo, de 15%. Após 2016, a recessão definiu um parâmetro muito baixo para o aumento do salário mínimo que ficou praticamente estagnado.

Olhando para frente, a questão mais relevante é a necessidade que o novo governo terá, já em 2019, de definir uma nova regra para o reajuste do mínimo. Há três posições distintas quanto a esta regra: um grupo mais conservador propõe que o salário mínimo já alcançou um valor adequado e que de agora em diante deveria ter o seu valor corrigido apenas pela inflação, mantendo constante o seu poder de compra. Na prática isto significa impor àqueles que têm seus rendimentos vinculados ao salário mínimo, a não participação nos benefícios do crescimento econômico. Outro grupo, mais generoso, identificado com o PDT, propõe a indexação pelo PIB per capita, uma forma de incluir no reajuste os ganhos de produtividade genéricos da economia. Por fim, um terceiro grupo, identificado com o PT, sugere a indexação pelo crescimento do PIB, atribuindo aos que vivem desse rendimento reajustes delimitados, mas superiores aos ganhos de produtividade, reafirmando, portanto, o caráter distributivo da nova regra.

Para aprofundar a discussão, cabe, desde logo, mostrar a imensa importância do salário mínimo para a população brasileira. Assim, 26 milhões de pessoas, cerca de 15% dos brasileiros com mais de 14 anos, têm sua renda diretamente vinculada ao salário mínimo. Considerando que usualmente, sobretudo nas camadas mais pobres, há mais de um dependente por rendimento individual este número seria ainda maior. Desse grupo remunerado com salário mínimo, 9,2 milhões são assalariados, representando 15% de todos os trabalhadores empregados do país. Os demais, o contingente maior, de 16,8 milhões mil pessoas, recebem seus rendimentos das transferências do setor público, ou seja, da previdência e assistência social. Este segmento representa 60% do número total de beneficiários dos regimes de previdência.

Pelo que foi dito acima fica evidente a relevância do salário mínimo na redução da desigualdade tanto via mercado de trabalho quanto via política social. Os argumentos dos que rejeitam aumentos reais do salário mínimo negam exatamente essa sua dupla dimensão. No primeiro aspecto, argumentam que o papel essencial do salário mínimo seria o de reduzir a pobreza, mas que os aumentos reais dos últimos quinze anos o colocaram num patamar já muito elevado, com baixa conexão com a parte pior remunerada da população. O Banco Mundial vai além e considera que o valor excessivo do salário mínimo em razão do seu crescimento recente, contribui para a informalidade do emprego. No que tange à política social a tese é a do seu custo fiscal excessivo. Ela se agrega à postulação anterior, da desconexão, para sugerir que melhor seria, e custaria mais barato, reduzir a pobreza e a desigualdade por meio de políticas sociais focalizadas.

O primeiro equívoco a destacar nesse raciocínio é o de que os efeitos redistributivos do salário mínimo devam ser avaliados primordialmente à luz da redução da pobreza. De fato, há outros programas mais eficazes para este fim como, por exemplo, o Bolsa Família. Porém, deve-se considerar que um de seus papéis mais relevantes é na atenuação da desigualdade na distribuição de rendimentos no mercado de trabalho. Assim, o salário mínimo constitui um piso ou referência não só para o trabalho formal, mas para o trabalho assalariado não formalizado, vale dizer, sem carteira assinada. Sua flutuação arrasta o conjunto de remunerações, formais e informais em torno dele. Ademais, as elevações reais do salário mínimo têm a capacidade de reduzir a dispersão salarial nas folhas de pagamentos das empresas, melhorando a sua distribuição. O argumento estatístico de que metade da população empregada no Brasil não ganha sequer o salário mínimo – recebendo em torno de 80% do mesmo – e, portanto, que ele não afeta este grande contingente de trabalhadores, não resiste ao exame da história recente do país.

Da perspectiva dos efeitos redistributivos apontados e ao contrário do que afirmam as teses conservadoras, o salário mínimo ainda tem um papel crucial a desempenhar na melhora da distribuição dos rendimentos do trabalho. No início do governo Lula, o salário mínimo equivalia a apenas 25% do salário médio da economia. Ao longo dos anos e com os sucessivos aumentos reais alcançou um valor de cerca de 38% do salário médio em 2013, regredindo um pouco para o patamar de 35% após a crise. A questão de fundo é que o valor dessa relação pode e deve crescer. Em países desenvolvidos nos quais é melhor a distribuição da renda como aqueles da Europa Ocidental, esses valores são bem mais elevados. Exemplos: França (50%), Alemanha (48%), Reino Unido (44%), dentre outros. Em sentido contrário, países nos quais a distribuição de rendimentos é ruim ou piorou nos últimos anos, esses valores são mais baixos como: Estados Unidos (25%), Espanha (31%) e México (30%).

Sabe-se que, para além do mercado de trabalho, a política social desempenha um papel decisivo na melhoria da distribuição da renda e tanto mais quanto mais progressiva a tributação e os gastos. Foi dessa forma que nos países avançados se construíram os Estados de bem-estar social. No Brasil, no período dos governos Lula e Dilma, apesar da regressividade da tributação, o gasto mais que a compensou, constituindo-se num importante desconcentrador da renda. Assim, à desconcentração oriunda do mercado de trabalho agregou-se aquela dos gastos que contribuiu em média para a redução do índice de Gini em 0,10 ponto, ou seja, uma melhora de 20%. Grande parte desse efeito pode ser atribuído ao uso do salário mínimo como referência para pagamento transferências, tais como piso de aposentadorias nos vários regimes, Benefício de Prestação Continuada, Loas/RMSetc.

Qual o impacto ou custo dessa política nas despesas públicas? Seria ela excessivamente cara para o benefício que produziu? Cerca de 30% do total das despesas públicas têm o salário mínimo como referência. Assim, cada 1% de aumento real do salário mínimo produzirá um incremento de 0,3% das despesas públicas. Todavia, o número absoluto diz muito pouco. Se houver uma regra de crescimento das despesas ou um teto, que use o crescimento do PIB como referência, vale dizer, idêntica à regra do salário mínimo, a participação dessas despesas no total permanecerá constante. Dado o alcance e impacto distributivo dessa regra, a opção por ela parece ser a mais desejável, cabendo apenas aperfeiçoá-la. Assegurar o seu caráter anticíclico e prever cláusulas de escape para períodos de recessão seriam aprimoramentos essenciais.

Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e ex-diretor executivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento em Washington.

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