Reforma trabalhista no contexto de profundas mudanças

O importante é criar as condições institucionais para a redução estrutural do custo do trabalho, fator fundamental para que o capital se valorize aqui, integrado às cadeias globais de valor.

Clemente Ganz Lúcio

Fonte: Brasil Debate
Data original da publicação: 29/05/2016

A reforma trabalhista, aprovada pela Câmara dos Deputados e agora em debate no Senado Federal, é parte essencial de um projeto maior de transformação das condições institucionais para reorientar o desenvolvimento econômico do Brasil. A estratégia de abertura visa à entrega dos principais ativos produtivos do país ao capital estrangeiro, mobilizando-o para dinamizar a retomada e a sustentação do crescimento econômico.

O Brasil é uma das maiores economias do planeta. Tem terras férteis e uma grande fronteira de expansão agrícola que fazem do país um dos grandes produtores de alimentos do mundo. Minérios e água potável abundantes, biomas que reúnem reservas de valor econômico e ambiental incalculáveis. De forma acelerada, o pré-sal vai sendo entregue, busca-se viabilizar a venda de terras a estrangeiros, eliminam-se os índios, abre-se espaço aéreo e escancaram-se as fronteiras comerciais. O país já não detém propriedade intelectual sobre a inesgotável diversidade de insumos presentes nos diversos biomas, tornando-se devedor eterno de royalties para o capital internacional.

A base industrial brasileira, uma das maiores do mundo, foi sucateada e é vendida a “preço de banana”. Os serviços públicos de educação e saúde foram disponibilizados para o interesse privado. Cerca de 85% da população brasileira vive nas cidades, o que faz do espaço urbano uma oportunidade única para investimentos industriais em infraestrutura. A lista é bastante longa. O Brasil está muito barato e a riqueza financeira internacional, ávida por ativos. O país é entregue ao capital externo, com concessões, vantagens, crédito e segurança cambial.

A visão dos investidores estrangeiros é repercutida na mídia, com destaque, como a entrevista do economista-chefe do Santander, Maurício Molan, que afirmou: “Converso com empresas multinacionais e a pergunta mais comum é: ‘agora é hora de comprar ativos?’ Eu respondo que sim. O câmbio está em patamar favorável em termos históricos, os preços dos ativos estão baratos. É hora de comprar Brasil”.

Já o analista-chefe da Janus Capital Group (gestora norte-americana com quase US$ 200 bilhões em fundos – Petrobras, Itaú Unibanco, Iochpe-Maxion, Suzano e Marfing fazem parte da carteira de investimentos no Brasil), Janus Raghoonundon, disparou sobre a Petrobras: “Realmente acredito que a companhia tem um valor intrínseco e está barata relativamente a seus ativos. Existe muito potencial para a Petrobras para um investidor de longo prazo”.

Avançando sobre as escolhas do país, soltou: “O Brasil tem que decidir se pretende aceitar grandes quantidades de companhias estrangeiras controlando ativos-chave de infraestrutura. E, claro, essas companhias estrangeiras vão ter que ser compensadas pelo risco que vão tomar”.

As condições complementares e essenciais são destacadas por Janus no início da mesma entrevista. A estabilidade política de um novo governo que encaminhará as reformas – assim esperava ele em 2016 – é que dará estabilidade. Os potenciais investidores não querem ver as reformas rejeitadas. E quais seriam elas? Nas palavras de Janus: “Vamos monitorar a aprovação de todas, como a da previdência e dos benefícios trabalhistas”.

A redução do tamanho do Estado abre espaço para o setor privado e busca gerar superávit primário para garantir o fluxo dos juros da dívida pública. A diminuição do gasto previdenciário é peça essencial para garantir essa estratégia, motivo da urgência da reforma em curso no Congresso.

Mas é ainda mais importante criar as condições institucionais para a redução estrutural do custo do trabalho, fator fundamental para que o capital se valorize aqui, integrado às cadeias globais de valor – matéria-prima abundante, função produtiva na divisão internacional do trabalho, baixos custos salariais e logísticos, alocação geoeconômica para o mercado nacional e da América etc.

E é a essa necessidade que responde o projeto de Reforma Trabalhista, com a alteração de mais de 100 artigos e outros 200 dispositivos da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). No momento, é difícil mensurar e perceber toda a extensão das medidas e os impactos que causarão. Há uma sutileza cruel no projeto, pois ele cria múltiplos procedimentos que operarão, no cotidiano das relações de trabalho, mudanças estruturais que reduzirão o custo do trabalho (salários, jornadas e condições de trabalho) e darão progressiva segurança jurídica às empresas. Em princípio, o trabalhador pode nem notar o que está em jogo e acreditar que nada vai perder. No entanto, se virar lei, está aberto o caminho para a retirada de direitos.

Em linhas gerais, o projeto cria a possibilidade permanente para se negociar a redução dos direitos trabalhistas a partir da relação direta da empresa com o trabalhador ou com uma comissão sem caráter sindical, ou ainda com os sindicatos. A mediação promovida pelo diálogo social para tratar dos conflitos será substituída por procedimentos que enquadrarão a força de trabalho de acordo com o que o capital considera a justa medida.

Limitará, desmobilizará, impedirá e enfraquecerá o sentido agregador e solidário do sindicato como instrumento de representação coletiva capaz de reduzir a desigualdade de força entre o trabalhador e o empregador para contratar e demitir. Serão criadas as bases para a formação do sindicalismo por empresa, sonho neoliberal do século XXI.

A proposta, se aprovada, rebaixará o padrão de proteção, reconhecendo como legais diversas práticas de precarização das condições de trabalho e de flexibilização de formas de contratação, estabelecendo a submissão real e formal dos trabalhadores aos processos de redução do custo do trabalho empreendidos pelo capital.

Contrato com jornada zero hora, um exército de reserva em estado permanente de alerta e em angústia, à espera do contato da empresa, na insegurança. O dia, a semana, o mês podem terminar com jornada 0 hora! Ou pode haver trabalho jornada parcial, com salário parcial. Ou pode haver contrato com uma empresa contratante, terceirizada, com menores salários e menos direitos. Ou a possibilidade de se tornar um trabalhador que tenha que estar permanentemente disponível, por meio do teletrabalho, controlado pela internet, celular e computador, que ele mesmo financiou. Ou o trabalho em casa, que transforma esta em insumo produtivo da empresa contratante.

Enfim, o sonho dos indivíduos empoderados de liberdade, experimentando no cotidiano as inovadoras práticas de gestão de RH, por meio das quais operadores da lógica do capital vão submetê-los, enquadrá-los e empregá-los como recursos humanos denominados de colaboradores.

Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do DIEESE, membro do CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. É colunista do Brasil Debate.

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