“Quartinho de empregada é a senzala moderna”

A cineasta Karoline Maia lembra-se muito bem de quando era criança e, por vezes, ia junto com a mãe, empregada doméstica, ao trabalho dela. Recorda-se não só do trabalho árduo, mas também da maneira como ela era tratada, em um misto de afeto e autoritarismo, por todos os membros da família – inclusive pelas crianças.

Já adulta, Maia percebeu que, no Brasil, a profissão de domésticas está muito ligada à cor da pele – e é uma herança difícil de ser quebrada. Em geral, trata-se de uma vocação que passa de mãe para filha, ou seja, uma função preponderantemente ocupada por mulheres.

Assim, a cineasta se considera privilegiada: ao contrário de muitas filhas de domésticas, não precisou trabalhar desde cedo para ajudar em casa. “A gente vivia com pouco, mas vivia”, conta Maia, que atribui aos pais o fato de ela ter podido priorizar os estudos.

Ela graduou-se em rádio e TV e, desde os 19 anos, trabalha com cinema. Atualmente, aos 26 anos, é cofundadora de uma produtora formada por mulheres negras, a Pujança.

Em 2016, quando vivenciou uma situação racista no trabalho, em que a sua então chefe lhe disse que ela iria “dormir no quartinho de empregada, ali na senzala”, teve a ideia de rodar um filme para documentar como o trabalho doméstico no Brasil acabou se tornando, de certa maneira, uma continuidade da escravidão.

O documentário Aqui não entra luz foi gravado em 2019 e agora está em fase de finalização e montagem. Deve ser lançado em 2021. Em entrevista à DW, a cineasta fala sobre o filme e o contexto brasileiro.

DW Brasil: Seu filme aborda a vida nos quartos de empregada. De que modo podemos dizer que eles são a senzala moderna?

Karoline Maia: Aqui não entra luz é uma investigação, uma pesquisa que tem uma tese bastante óbvia mas às vezes pouquíssimo discutida: a relação da senzala com o quarto de empregada. Quando a gente fala que o quarto de empregada é a senzala moderna é justamente pensando nessa sucessão de fatos históricos a que a população negra foi sendo submetida, entendendo que o pós-abolição foi um processo bastante mal-resolvido para a população negra.

A abolição não foi concluída. Essa população teve de continuar em condições de trabalho muito parecidas, a maioria dessas pessoas continuou pobre, em situações análogas à escravidão ou até mesmo na escravidão.

O quarto de empregada claramente é um resultado concreto dessa falta de estrutura que vitimou a população negra no pós-abolição. Quando a gente diz que o quarto de empregada é o reflexo da senzala, ele é literalmente esse reflexo – pensando em estrutura, em arquitetura, em simbologias de poder, de afeto e de controle.

O filme traz bastante essa visão, de uma forma afetiva e de forma pessoal, a partir das histórias das trabalhadoras. Mas a gente também traz o olhar arquitetônico e histórico para tentar entender o que de fato levou ao quarto de empregada, pensando na urbanização das cidades, do país, e quais foram os movimentos necessários para que a elite construísse esses quartinhos.

Ao comparar esses quartos a senzalas, podemos entender que há uma certa desumanização ou um menosprezo às domésticas?

Acredito que sim. O trabalho doméstico tem uma marca bastante racial e bastante feminina. E é desvalorizado. Porque o trabalho doméstico não pago por si só já é visto de forma menor. Muitas mulheres estão fazendo trabalhos domésticos em suas casas, sendo mães, cozinheiras, faxineiras, e sendo pouquíssimo respeitadas por isso por suas famílias, seus filhos, suas companheiras e companheiros, pais…

Quando o trabalho doméstico vai para o lugar profissional, econômico, ele é desvalorizado porque é feito de graça por algumas pessoas. Então ele acaba misturado com o afeto. Você pode comprar o amor de uma pessoa para dar atenção ao seu filho, porque você não tem tempo para dar ao seu filho. Então você compra o afeto “aqui dessa mulher” para substituir o seu – estou falando de uma forma bem grosseira.

Aí as pessoas veem esse trabalho sendo feito de um jeito natural. Acabam achando que vale pouco financeiramente. Mas dá muito trabalho. Qualquer pessoa que lava a própria privada tem noção de quanto tempo, disposição e força é preciso para realizar um trabalho doméstico. Se as pessoas lavassem mais a própria privada, iriam conseguir ver esse trabalho com outros olhos, iriam valorizar mais, remunerar melhor.

Em geral, no Brasil, a profissão de empregada doméstica passa de mãe para filha. Como você conseguiu quebrar esse ciclo? Acredita que também exista uma questão racial? Quebrar esse ciclo é mais difícil para pessoas negras?

O trabalho doméstico é bastante marcado pelo racismo e pelo machismo estrutural. Muitas mulheres negras de muitas famílias negras estiveram ou estão nessa profissão. Recentemente, a gente vem acompanhando transformações significativas de filhas de trabalhadoras domésticas que conseguiram entrar na universidade, fazer um curso técnico ou simplesmente ir para uma outra profissão porque a elas foram dadas possibilidades de desejar e realizar essa transformação, a quebra desse ciclo.

Na minha família, tenho tias que são ou que foram domésticas, tenho minha mãe que é diarista. Para mim, isso nunca foi uma possibilidade. Nunca passou pela minha cabeça ser trabalhadora doméstica. Óbvio que sou de uma família pobre, mas nunca pediram para eu trabalhar para ajudar em casa.

Esse sucesso é mérito do movimento negro que lutou pelas cotas sociais e raciais nas universidades. Esse mérito é da minha família que me deu a possibilidade de imaginar outras coisas, de ter meu próprio tempo para entender quando e com o quê eu gostaria de trabalhar. Só tenho a agradecer a estrutura que tive, tanto política quanto familiar.

Para uma pessoa negra, é mais difícil se tornar cineasta?

Antes eu achava um lugar meio inacessível. Ainda estou nesse processo de entender os passos que preciso dar, entender as estratégias que eu preciso ter para conseguir entrar nesse meio que eu acho super fechado, elitista, branco, cis e, de uma forma bem clara: não é para pessoas como eu. Mas eu sei que existem muitos cineastas negros e negras que estão quebrando essa parede que separa a gente da possibilidade de imaginar e realizar cinema.

Como foram as filmagens de Aqui não entra luz?

A gente passou por cinco estados brasileiros: Rio de Janeiro, Maranhão, Bahia, Minas Gerais e São Paulo. Procuramos especialmente as construções do Brasil colônia para entender mais sobre essas dinâmicas [entre casa grande e senzala] e também falamos com seis trabalhadoras domésticas que dormem ou já dormiram no quartinho de empregada.

São mulheres cuja história de trabalho começou na infância, muitas têm mãe que também foi trabalhadora doméstica outras moravam em uma cidade muito pequena, e a família mandou para a capital [do estado] na expectativa de que tivessem uma educação melhor, etc. Infelizmente são histórias muito comuns, que viram padrão.

Foram histórias traumáticas, vivências muito doloridas, com muita violência física e psicológica. Muita revolta e muitas coisas revoltantes de se escutar. São histórias de muita resistência de mulheres que, hoje maduras, com suas próprias famílias, próprias ideias e convicções, estão construindo e construíram formas de resistências dentro dessas casas, com estratégias de negociações com os patrões, negociações de afeto e de voz dentro dessas casas.

Fonte: Deutsche Welle Brasil
Texto: Edison Veiga
Data original da publicação: 20/11/2020

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