Quando a hiperprecarização do trabalho pode levar a morte

Estaria a (hiper)precarização dos trabalhadores de aplicativos incidindo em uma nova consciência de classe ou, ao menos, trazendo uma sensação coletiva das vulnerabilidades postas?

Matheus Maciel

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 31/01/2020

Embora beire os quatro milhões de habitantes, a Região Metropolitana de Salvador ainda guarda os costumes de outrora. Esta característica, que muitas vezes serve para fomentar o conservadorismo dos costumes e fagocitar manifestações de povos e comunidades tradicionais que habitam esta terra, felizmente ainda preserva valores que podem acabar sendo positivos. Aqui a tragédia não passa despercebida. Entre as manifestações de solidariedade e os – cada vez mais comuns – “tinha mais é que morrer”, as opiniões sobre elementos de violência não passam batidos pelo cotidiano dos 13 municípios do território de identidade.

No dia 13 de dezembro do ano passado, quatro motoristas de transporte dos aplicativos Uber e 99 Pop foram brutalmente torturados e assassinados num casebre montado em meio a um matagal em Salvador enquanto atendiam chamadas de supostos passageiros. No mesmo dia em que os corpos foram encontrados, a categoria organizou manifestações em diversos pontos da cidade, cobrando melhores condições de trabalho. Carros ostentavam a palavra “luto” pintada em seus vidros. Por alguns dias, a cidade parou para ver não se o carro chegava pela tela do celular, mas o que diziam aquelas vozes silenciadas por uma nova fase do capitalismo. As empresas de aplicativo apenas lamentaram o fato e se colocaram à disposição da polícia para ajudar nas investigações.

Hoje, dirigindo pelas ruas de um bairro de classe média de Salvador, notei outra vez as inscrições tão vistas na cidade nos últimos dias, mas desta vez não no vidro de um carro, mas na “bag” de um motociclista entregador do aplicativo IFood (e que provavelmente entrega para muitos outros). 

Naquele momento uma enxurrada de reflexões inundou a mente deste que vos escreve, que, mencione-se, também dirigiu para a Uber durante a faculdade. 

Reconhecido que os crimes ocorreram enquanto os motoristas trabalhavam no aplicativo, seria o caso de um acidente de trabalho, onde não só o jus puniendi, mas também os mecanismos previdenciários e de responsabilização civil deveriam entrar em ação? Estaria a (hiper)precarização destes trabalhadores incidindo em uma nova consciência de classe, ou ao menos trazendo uma sensação coletiva das vulnerabilidades postas? Marx deixou de prever que o neoliberalismo e o afrouxamento dos órgãos de regulação incidiriam na relação “capital x trabalho” fazendo emergir uma nova classe revolucionária? 

Se você que lê espera uma resposta ao fim do texto, me perdoe a decepção. Desta vez não tem como. Mas já que não posso responder, me proponho a levantar algumas reflexões sobre o assunto.

Que o Brasil não é pra principiantes, os memes já nos ensinaram. O que a gente não sabe é que nada disso é tão novo assim e que na verdade a retirada de direitos da classe trabalhadora é uma reedição de uma série de atentados já praticados há séculos. Afinal, é sempre bom lembrar que a estrutura da sociedade pós revolução francesa é movida pela luta de classes, ganhando impulso nas suas engrenagens e acirrando seus processos de disputa social de tempos em tempos, em especial nas fases mais agudas do capitalismo, expressa por governos autoritários e nas suas inevitáveis crises, que retiram sistematicamente direitos da classe trabalhadora. Só para que se tenha ideia, os primeiros esboços sobre a categoria “trabalho”, enquanto legislação social, só ocorrem na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil em 1891. Paradoxalmente ou não, na mesma norma se institui o liberalismo com modelo econômico vigente (VIANNA, 1976)¹. Os acidentes de trabalho só ganham norma específica em 1919 com a Lei 3.724, que começa pela primeira vez, quase 100 anos após a criação do Brasil enquanto Estado Independente a esboçar o que seriam as categorias “empregado” e “empregador” (FREITAS, 2018)[1]

Os primeiros dados minimamente precisos sobre acidentes de trabalho só começam a surgir em 1969 e apontavam para o assustador índice de 4 mil acidentes de trabalho por dia útil (SILVA, 2019)[2]. Com a ditadura civil-militar-empresarial, seguiu-se a retirada de direitos, com a supressão de mais de 200 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho, muitos que tratavam da saúde do trabalhador (SILVA, 2015)[3]

Apesar da muita vontade daqueles que controlavam (ou ainda controlam?) os organismos estatais, a Constituição de 1988 terminou freando a reforma trabalhista prevista para aquele período, apesar de não mudar o caráter flexível das legislações laborais (KREIN, 2018)[4]. Os trabalhadores sem registro em carteira só crescem no período e cada vez menos pessoas contribuem para a previdência social.  

A década de 1990 se inicia com a adesão do Brasil ao processo de globalização financeira, o que deságua num enfraquecendo do movimento social, da identidade de classe, da ação coletiva ao mesmo tempo em que reforça o individualismo e a divisão, ao mesmo tempo que afrouxa os mecanismos de fiscalização e os órgãos reguladores (DRUCK; FILGUEIRAS; NEVES, 2000)[5]. Em 2017, concretiza-se grande parte das mudanças propostas há muito, com a completa diluição da categoria “empregado” e a dificuldade de acesso dos trabalhadores à Justiça.

Com esse remonte histórico, percebemos que a idéia de restringir direitos da classe produtora não saiu das mentes (quase) brilhantes de Michel Temer e de Jair Bolsonaro. Em verdade, são parte indissociáveis da relação histórica do Estado Brasileiro com os trabalhadores.

Mas qual a real posição dos trabalhadores precarizados pela indústria – e uso este termo intencionalmente para que fique delimitado o paralelo com o pensamento  de Marx – dos aplicativos?

Em primeiro lugar, uma das poucas posições bem definidas, que confesso, amadureci no curso da escrita deste texto: os motoristas assassinados são vítimas não só de acidente de trabalho, mas também de uma cadeia de precarização que não só ignora a patente necessidade de uma remuneração compatível com a força do trabalho executado, mas também que não importa-se mesmo com a sobrevivência dos motoristas. Destaque-se, aqui me refiro não à subsistência, mas realmente às  condições mínimas de segurança de trabalho necessárias para que o trabalhador não seja morto, como aconteceu nesta e em muitas outras ocasiões. Assim sendo, em casos como o dos motoristas assassinados, todos os mecanismos, inclusive previdenciários e de responsabilidade civil devem ser ativados. Como poderíamos falar em serviço eventual com trabalhadores que dedicam 16 horas do seu dia ao labor no aplicativo? Ou como insinuar ausência de relação hierárquica quando os aplicativos podem unilateralmente e a qualquer momento romper o contrato? Ainda que não se reconheça o vínculo empregatício, hipótese que certamente por si só é um retrocesso, estariam as empresas sujeitas apenas às benesses e exoneradas de todas os riscos inerentes às suas atividades?

Finalmente, quanto a consciência de classe que tornaria estes trabalhadores uma nova classe revolucionária, penso que talvez ainda seja cedo, mas certamente há uma “consciência das vulnerabilidades”, que tal qual ocorreu com o novo sindicalismo da  década de 1980, tende a romper os valores meramente econômicos e de interesse estrito da categoria e passar a uma disputa dos rumos da sociedade. 

Conforme prometi, termino o texto com uma pergunta quase provocativa: será que, em tempos de autoritarismo escancarado que disputa o ideário social, não é uma oportunidade única para que os campos progressistas e os movimentos sociais assumam a tarefa da organização do trabalho de base e ganhem as opiniões destas novas categorias? É só um pensamento… nada de mais…

Notas:

[1] FREITAS, Carlos Eduardo Soares de. Auxílio Acidente e Saúde do Trabalhador. Salvador: Edufba, 2018.

[2] SILVA, Ana Beatriz Ribeiro Barros. Corpos para o capital: acidentes de trabalho, prevencionismo e reabilitação profissional durante a ditadura militar brasileira (1964-1985).Jundiaí, Paco Editorial, 2019.

[3] SILVA, Alessandro da. A criação do Fundacentro e a política oficial sobre segurança, saúde e medicina do trabalho. In: MACHADO, Gustavo SeferianScheffer; MAIOR, Jorge Luiz Souto; YAMAMOTO, Paulo de Carvalho. O mito 70 anos da CLT: um estudo preliminar. São Paulo: Trl, 2015. p. 130-142

[4] KREIN, José Dari. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: Consequências da reforma trabalhista. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 30, n. 1, p.77-104, abr. 2018

[5] DRUCK, Graça; FILGUEIRAS, Luiz; NEVES, Laumar. Sindicatos e dirigentes sindicais na Bahia dos anos 90:diagnóstico e perspectivas. Caderno Crh, Salvador, v. /2000, n. 33, p.143-178, dez. 2000

Matheus Maciel é advogado, especialista em Direito Processual Civil, mestrando em Saúde, Ambiente e Trabalho pela UFBA, assessor especial da Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas e produtor de conteúdo jurídico no podcast “Largando o Doce”

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