Proteção social não deve ser uma opção, pois é um direito humano

Eduardo Camín

Fonte: Estrategia.la
Tradução: Victor Farinelli
Data original da publicação: 12/09/2018

Em razão do centenário da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a ser celebrado em 2019, se lançará nas próximas semanas uma nova campanha para promover a proteção social universal, de forma a mostrá-la não como uma opção e sim como um direito humano que deve ser assumido pelos países.

A campanha fará uma reflexão sobre o passado, o presente e o futuro da proteção social, ao mesmo tempo em que estará firmemente atrelada à Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas, visando estimular a mais ampla audiência possível, para alcançar a meta de proteção social universal, que é um dos itens previstos na agenda – no capítulo que fala sobre os objetivos mundiais para o desenvolvimento.

O conteúdo será baseado no intercâmbio de conhecimentos, na sensibilização e na arrecadação de fundos. Também haverá uma exposição intitulada “100 Anos de Proteção Social”, que será apresentada em eventos públicos e nas escolas em todo o mundo.

A campanha destacará os cem anos de seguridade social com a OIT: “imaginemos um mundo onde nenhuma criança precise trabalhar para ajudar os pais, onde nenhuma mãe que deu à luz tenha que regressar ao trabalho no dia seguinte, onde nenhuma pessoa idosa seja obrigada a trabalhar até a morte, onde nenhuma pessoa com deficiência tenha que mendigar pelas ruas. Para muitos de nós, este mundo ainda é um sonho”, sugere Valérie Schmitt, diretora adjunta do departamento de proteção social da OIT.

Um dado estatístico indica que 55% da população mundial vive sem proteção social alguma. É verdade que as pessoas que têm acesso a seguros de saúde, seguros de desemprego e a aposentadorias e pensões geralmente não sabem ou não percebem que a proteção social é um privilégio de uma minoria dos cidadãos deste mundo.

É por este motivo que a campanha da OIT está dirigida a um público o mais amplo possível, para ir além dos seus interlocutores tradicionais – os governos, os agentes sociais, os sócios do desenvolvimento e o mundo acadêmico. Essa ampliação busca alcançar desde o setor privado até as organizações filantrópicas.

(Há) outra cara do informe

Assim formuladas as coisas, a pretensão por difundir a justiça social é inobjetável para as pessoas do nosso tempo, e penso que um dos grandes avanços de nossa época foi o de ter chegado a essa sensibilidade. Ao longo da história, muitas coisas que hoje parecem óbvias outrora eram vistas como supostas ou tão toleradas que sequer eram questionadas, como a violência de gênero, a repressão, a tortura, as violações de direitos humanos – e hoje, mesmo havendo consciência e meios para denúncia, continuam sendo praticadas.

Portanto, digamos que a busca por uma justiça social que ofereça a cada homem e a cada mulher no trabalho a possibilidade de reivindicar livremente, e em igualdade de oportunidades, a sua justa participação nas riquezas ajudou a criar, tem hoje tanta força quanto nos tempos em que a OIT foi criada, em 1919.

A economia global cresceu a uma escala que carece de precedentes históricos. Com a ajuda das novas tecnologias, as pessoas, os capitais e as mercadorias se movem entre os países com uma facilidade e uma rapidez tais que criaram uma rede econômica global interdependente, que repercute praticamente em todos os habitantes do planeta. Não há dúvidas de que a globalização trouxe oportunidades e benefícios para muitas pessoas, mas ao mesmo tempo, milhões de trabalhadores e empregadores do mundo todo tiveram pela frente alguns desafios novos, e em certos casos trágicos.

A economia globalizada desloca os trabalhadores e as empresas a novos destinos, trazendo consigo repentinas acumulações ou transferências de capitais, provocando instabilidade financeira, e isso que contribuiu para provocar a crise econômica mundial de 2008. Dez anos depois daquela crise, a situação do emprego mundial continua sendo desigual: algumas economias avançadas puderam recuperar parte dos empregos perdidos – na maioria dos casos, reformando suas legislações trabalhistas, gerando contratos muitas vezes em condições de quase escravidão – e outras ainda enfrentam problemas significativos com respeito ao seu mercado de trabalho, e as perspectivas sociais seguem se deteriorando.

Os avanços registrados até o ano de 2012 a respeito da diminuição do emprego vulnerável não tiveram continuidade, e em 2017 se contabilizou um total de 1,4 bilhão de trabalhadores em situação de precariedade. A OIT prevê que 35 milhões de pessoas entrarão nesse patamar durante o ano de 2019, e aponta também que 3 de cada 4 pessoas nos países em desenvolvimento se verão afetadas pelo emprego vulnerável.

A OIT estima que o número de pessoas que vivem atualmente em condições de pobreza extrema é de 176 milhões, ou o equivalente 7,2% de todas as pessoas empregadas. Outros informes da organização destacam que o número de trabalhadores que vivem na pobreza extrema se manterá por cima de 114 milhões, afetando 40% das pessoas empregadas em 2018.

Tendo em vista que a desigualdade não só conduz a uma diminuição da produtividade, mas também engendra a pobreza, a instabilidade social e inclusive o conflito, produz-se nessa entidade abstrata que é a comunidade internacional a obrigação de reconhecer a necessidade de estabelecer algumas regras básicas do jogo para garantir que a globalização ofereça oportunidades justas de prosperidade para todos.

Tanto a declaração da OIT sobre a justiça social para uma globalização equitativa (2008), como o pacto mundial do emprego (2009) destacaram a pertinência do papel da OIT para promover a justiça social, utilizando os meios que dispõe para fazer valer as normas internacionais do trabalho.

Sou testemunha das boas intenções destas iniciativas. Por trás delas há gente valiosa, com muitas horas de estudos, de trabalho, de ilusões e que ganham bons salários. Porém, suas análises sempre carecem ou se esquecem da dialética, ou seja, de uma formulação clara do problema com sua contradição. O problema é que não se pode estar olhando pelos dois lados da moeda ao mesmo tempo, já que a principal contradição é o próprio sistema capitalista, que dita as regras do jogo.

Ao longo de sua história, o capitalismo vem acumulando riquezas imensas por meio da exploração, da violência e do saque, mas não sabe (nem pode saber) o vai fazer com o homem. A ordem agora é arrebatar do indivíduo aquilo que é genuinamente humano, aturdindo-o com os vícios do mercado, plataformas digitais e o consumo desenfreado. A crise do indivíduo na sociedade capitalista é a crise do próprio capitalismo, mas não uma crise do homem como tal, nem da humanidade.

Os burgueses dedicados a falsificar os acontecimentos sociais atuais pressentem através das crises, em períodos cada vez mais frequentes, a inevitável ruína do capitalismo, e se lançam em iniciativas que, embora refinem o intelecto sob a manta protetora da justiça social, escondem em suas intenções a verdadeira contradição entre classes sociais.

Não há ação antagônica ou conceito alternativo no mundo social e econômico. Aqui se faz um apelo à participação das grandes multinacionais e das empresas privadas para se criar uma cultura de proteção social em todo o mundo. No fundo, é aí onde se radica o eixo problemático da atual relação que fixa os limites da justiça social.

São muitas as causas da impunidade em casos de violações aos direitos humanos cometidas pelas empresas multinacionais. Presentes praticamente em todas as atividades humanas (produção, serviços, finanças, meios de comunicação, investigação fundamental e aplicada, cultura, ócio, etc), elas são pessoas jurídicas de direito privado, com presença territorial enorme e centrais capazes de tomar decisões estratégicas.

Graças às políticas neoliberais promovidas e impostas em mais de três décadas por parte das instituições financeiras internacionais (sobretudo o FMI e o Banco Mundial) com o apoio de alguns estados poderosos, as grandes corporações se constituíram como o “motor de desenvolvimento”.

Nesse sentido, a maior parte dos Estados passaram a realizar, por bem ou por mal, privatizações massivas em todos os setores da economia, incluindo também os serviços públicos essenciais e indispensáveis para o desfrute dos direitos humanos e da coesão social (e da justiça social), favorecendo o domínio empresarial sobre os recursos naturais e o estabelecimento de monopólios sobre praticamente todas as áreas da vida.

Assim, em apenas algumas décadas, as empresas adquiriram um poder econômico, financeiro e político sem precedente na história. Muitas delas são mais ricas e possuem mais poder que os Estados que pretendem controlá-las. Hoje, 80% do comércio internacional acontece dentro das cadeias de valor vinculadas às grandes corporações.

Estas alianças cada vez mais frequentes com os organismos internacionais devem chamar a atenção. Não se pode ser acusador, juiz e jurado ao mesmo tempo. A reflexão deve ser pautada pelo rigor. A justiça social não pode estar nas mãos dos carrascos.

Eduardo Camín é jornalista, membro da Associação de Correspondentes de Imprensa da ONU, redator-chefe internacional do Hebdolatino e analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE).

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