Por um feminismo sindical ou um sindicalismo feminista?

Fotografia: Sinitta Leunen/Unsplash

As direções sindicais reconhecem a importância de organizar mais mulheres, que ao ampliar a representação feminina também aumenta a agenda de demandas por justiça, mas ignoram as contribuições do feminismo na promoção das mudanças necessárias para a sobrevivência dos sindicatos.

Deise Recoaro

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 22/02/2021

Em O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras, bell hooks (com as iniciais em minúsculo por exigência da própria autora) afirma que o feminismo não deve ser um movimento exclusivo das mulheres, mas pode ser dos homens também. De forma muito didática a autora procura aproximar o feminismo das camadas populares a fim de construir um movimento de massa. Ela tenta desfazer medos e mitos que se formaram em torno do feminismo, por causa da sua proposta radical de transformação, tanto individual como coletiva, no combate ao sexismo (de homens e de mulheres). Um dos mitos é que para ser feminista precisa ser acadêmica, e um dos medos é que ser feminista é ser inimiga de homens. 

A meu ver, o feminismo assusta porque nos tira da zona de conforto, por isso é tão difícil para muitas mulheres (e homens) se autodeclararem feministas. Assusta pelo alto poder de crítica e autocrítica e até por isso, nos tira da zona de conforto porque está embutido nele uma série de revisões em termos de comportamento e pela necessidade de alinhar teoria e prática em uma sociedade repleta de contradições – dentro de nós mesmas. Ao mesmo tempo o feminismo é libertador na medida que passamos a entender que toda má sorte de ser mulher nessa sociedade não diz respeito à incompetência pessoal ou coletiva, mas, e até mesmo, por nossas qualidades ameaçadoras à lei e à ordem de grupos socialmente privilegiados. Para bell hooks, o feminismo liberta até mesmo os homens do pacto de manutenção do poder do macho, que também os oprime.

O feminismo segue questionando o privilégio dos homens sobre as mulheres, das mulheres ricas sobre as pobres, das brancas sobre as negras, das heterossexuais sobre as homossexuais, das cisgênero sobre as transgênero, das idosas sobre as jovens (e vice-versa) e novos questionamentos estão por vir. Com tantos questionamentos e polaridades é natural que o feminismo se divida por diferentes campos de visões e ações. Porém, ao contrário de muitas organizações no campo da esquerda, o feminismo enxerga nesse caldeirão de opiniões e posições a possibilidade de crescimento de um movimentos forte, maduro e autêntico. No qual possa abarcar todas as tribos e unificar as ações de todas e todos que buscam romper com a situação de discriminação e opressão impostas pelo capitalismo, patriarcado e racismo.

As direções sindicais reconhecem a importância de organizar mais mulheres, que ao ampliar a representação feminina também aumenta a agenda de demandas por justiça, mas ignoram as contribuições do feminismo na promoção das mudanças necessárias para a sobrevivência dos sindicatos. Estudiosos do sindicalismo como Peter Waterman e Kim Moody admitem que o feminismo é um modelo de organização exemplar para os sindicatos se espelharem, mas não o enxergam dentro do próprio sindicalismo, nas ações das próprias sindicalistas. Já para Jan Kainer, ao analisar a contribuição das mulheres para a tão proclamada necessidade de renovar os sindicatos, não se trata de organizar as mulheres por organizar, mas sim de mudar radicalmente a perspectiva de organização sindical como um todo. Para a autora isso será possível se reconhecerem as contribuições das feministas, em especial da segunda onda, e a ausência de estudos sindicais sobre o poder do patriarcado.

Não é possível renovar os sindicatos sem reconhecer as contribuições práticas e teóricas das feministas advindas da segunda onda. Segundo Jan Kainer, tais contribuições dizem respeito à compreensão das relações sociais de gênero, que contribuíram para tirar a mulher do isolamento e organizar os não organizáveis e informais, onde se encontram as ocupações típicas de mulheres. Outra importante contribuição está na ampliação da agenda por equidade que operou para desafiar a democracia sindical promovendo novas lideranças e alternativas de representação. Além disso, a luta por equidade, por ser um fenômeno mundial, desenvolveu um internacionalismo operário de mulheres, cuja maior expressão é a greve feminista. 

A construção de coalizão com as feministas trouxe importantes contribuições porque enriquece a ação sindical e estabelece parcerias com outras organizações, aumenta a capacidade de mobilização, revê debates e objetivos sindicais e inspira para uma nova visão de transformação social.  

Consequentemente, trata-se de mudanças na cultura sindical por mais horizontalidade e menos hierarquia. Atrai mais mulheres para os sindicatos não só para o debate das relações de trabalho, como para a transformação das relações sociais. Aumenta a consciência feminista das sindicalistas, tanto teórica como prática, transformando as mesmas e as pessoas ao seu redor.

A literatura sindical recomenda rever a democracia, ampliar a representação e incluir os chamados grupos minoritários, mas isso não basta. Esses grupos devem assumir o protagonismo dessas mudanças pois abarcam tanto as condições objetivas como as subjetivas de participação. 

As sindicalistas podem contribuir com suas experiências e consolidar a identidade de um feminismo sindical a partir da realidade vivida por elas, porque não é a mesma de quem milita em um movimento exclusivo de mulheres. Se hoje existe uma preocupação de parcela de estudiosas e militantes feministas sobre a perda da centralidade do trabalho nas análises das opressões e discriminações, no feminismo sindical essa centralidade é a condição primeira para sua existência. Além disso, o feminismo tem muito a contribuir para uma reflexão sobre o patriarcalismo predominante no movimento sindical e na revisão de suas práticas hierarquizadas e excludentes. Rumo a um sindicalismo feminista!

Deise Recoaro é doutoranda em Relações de Trabalho, Desigualdade Social e Sindicalismo pela Universidade.de Coimbra, integrante do Conselho Diretivo da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf/CUT) e militante feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB).

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