Por que a pandemia não nos faz todos iguais

Agentes de saúde, do setor doméstico e assistencial, trabalhadoras dos serviços, mães que trabalham. Em vários níveis, as mulheres já estão pagando, nestes dias, o alto preço da epidemia. Uma primeira análise.

Andrea Coveri e Maria Grazia Montesano

Fonte: Ingenere
Tradução: Anna Maria Priolisi Leone
Data original da publicação: 26/03/2020

Enquanto a emergência causada pela epidemia de Covid-19 causa desordem nos hábitos sociais e redesenha o estilo de vida de milhões de pessoas em todo o mundo, o espaço dedicado à análise das consequências de gênero da pandemia infelizmente se mostra insignificante. Portanto, vale a pena destacar a maneira pela qual as desigualdades de gênero não apenas se reproduzem inexoravelmente, mas também encontram no mudado contexto novas fontes nas quais se alimentar.

Vamos pensar, primeiramente, no trabalho realizado pelas profissionais de saúde, nas enfermeiras, médicas, auxiliares de enfermagem, mas também nas trabalhadoras dos serviços de limpeza que enfrentam turnos exaustivos para garantir a higiene dos ambientes públicos e privados. As pessoas empregadas nos setores relacionados ao setor social e de saúde são aquelas cujos ritmos de trabalho se tornaram muito mais pesados devido à pandemia por conta dos ambientes de trabalho mais estressantes e de turnos de trabalho mais longos. Pois bem, devido ao bem conhecido fenômeno da segregação horizontal no mercado de trabalho, a maioria daqueles que desenvolvem o próprio trabalho no setor social e da saúde são, prevalentemente, as mulheres. Conclui-se que são predominantemente as mulheres que sofrem com essa sobrecarga de trabalho e, além disso, em ambientes que, muitas vezes, são mais expostos à infecção.

Outra área de trabalho notadamente feminina é a do trabalho doméstico-assistencial, cuja estrutura transnacional dá origem ao que se designa por “cadeias de cuidados globais”, resultado da complexa relação entre migração e trabalho (doméstico e assistencial) no contexto da globalização. Vamos pensar nas empregadas domésticas, nas faxineiras ou nas babás que desenvolvem um trabalho doméstico e assistencial assalariado, garantindo prestações fundamentais, também de serviços para-sanitários, muitas vezes concomitantemente para famílias diferentes e, portanto, com diferentes locais de trabalho. Nesse contexto – frequentemente caracterizado por condições irregulares [1], salários baixos e situações estressantes de coabitação, a pandemia faz com que essas mulheres – que a CGIL estima ser superior a dois milhões, na Itália – fiquem ainda mais vulneráveis. De fato, por um lado, corre-se o risco de que se intensifique esse trabalho assistencial para elas; por outro lado, podem se tornar mais difíceis seus deslocamentos de uma casa para outra, onde prestam os seus serviços; e, ainda em caso de perda do trabalho, onde, muitas vezes, lhes é negado o acesso às assistências sociais. E por último, no que se refere em especial às babás, os contratos de trabalho preveem frequentemente, também, as refeições e o alojamento além do salário, e a perda do trabalho comporta algumas consequências ainda mais graves.

Ainda que, no que diz respeito ao trabalho em (e de) casa, é notório que entre as medidas que foram adotadas para conter o contágio e, ao mesmo tempo, reduzir o impacto negativo na atividade produtiva, o governo ampliou a possibilidade de utilizar, sempre que possível, o chamado smart working, ou melhor, home working “emergencial” (“trabalho ágil” no Dcpm de 8 de março). Se o primeiro é um modelo que prevê a possibilidade de alternar tempo e local de trabalho com elementos contratuais flexíveis (mas que, muitas vezes, não estão claramente estabelecidos), o que estamos experimentando neste estágio é mais como um deslocamento desajeitado das atividades de trabalho para o ‘on-line’ e obrigatoriamente de casa. As empresas que recorrem a isso pertencem, principalmente, aos setores de serviços (entre os quais os serviços públicos, incluindo a educação), os quais – devido à segregação horizontal do trabalho – empregam principalmente mulheres. Esse fenômeno faz com que se corra o risco, portanto, de acentuar ainda mais as desigualdades de gênero. Na realidade, embora, por um lado o trabalho doméstico possa proporcionar oportunidades às mulheres (e/ou aos seus parceiros) para melhor conciliarem o trabalho produtivo (remunerado) e o trabalho reprodutivo (não remunerado), por outro lado existe o risco de que o tempo de trabalho das mulheres se torne consideravelmente mais longo e mais pesado. As razões podem ser encontradas na sobreposição e no entrelaçamento de duas esferas de vida em um único local físico – sem interrupções -, onde o fardo do trabalho doméstico e assistencial é acumulado, juntamente com a criação, gestão e preparação de um espaço que não é usado para o trabalho e não é um lugar neutro. Além disso, as características da própria casa na qual essas atividades estão concentradas não representam um elemento secundário, muito menos exógeno, visto que o tipo de casa que as famílias se podem permitir ter (em termos, por exemplo, de posição, metros quadrados, luminosidade, etc.) é, como regra geral, diretamente proporcional à renda e à riqueza dessas mesmas famílias. 

Em termos mais gerais, as consequências socioeconômicas da propagação da Covid-19 têm um impacto mais pesado sobre as mulheres do que sobre os homens, devido à desigualdade estrutural que caracteriza o mercado de trabalho do ponto de vista de gênero. De fato, as mulheres recebem em média um salário mais baixo do que o de seus colegas homens (o denominado gender pay gap) e, acima de tudo, em relação aos homens são empregadas com formas contratuais atípicas e precárias mais frequentemente [2]. As mulheres serão, portanto, as primeiras a sofrer as repercussões da pandemia no mercado de trabalho, por serem despedidas mais facilmente e serem mais propensas a alvos de chantagem.

Além disso, é essencial considerar o trabalho reprodutivo não remunerado realizado especialmente pelas mulheres e a forma como interage com os efeitos da Covid-19. Em especial, deve-se considerar, por um lado, o fechamento de escolas de todos os níveis e graus e, por outro, o fato de que as pessoas mais expostas aos efeitos do vírus são as pessoas com doenças anteriores graves e os idosos. Num contexto dominado por um modelo de bem-estar familiar, segue-se um aumento da carga de trabalho assistencial que pesa predominantemente sobre os ombros das mulheres, que também estão lidando com uma instabilidade pessoal e de relacionamento devido aos efeitos psicológicos que esta situação atípica acarreta.

Outra forma pela qual a atual emergência sanitária afeta a vida das mulheres de forma transversal diz respeito às condições de uma “vida em quarentena”. Na verdade, o lar para muitas mulheres não é, absolutamente, um lugar seguro. Basta notar que, na China, o número total de casos de violência doméstica na província de Hubei mais que duplicou em comparação com o mesmo período do ano anterior. É evidente que, mesmo na Itália, a quarentena forçada pode ter um enorme impacto no incentivo à violência contra as mulheres, considerando que 85% dos feminicídios ocorre em família e a maioria deles acontecem dentro de casa. Infelizmente, episódios recentes que viraram notícias confirmam essa preocupação, razão pela qual muitas associações feministas – dentre as quais a “rete D.i.Re.”  e o movimento “Non Una di Meno” – estão realizando apelos repetidos para lembrar que os centros antiviolência estão abertos e o serviço público está ativo para ajudar as vítimas de violência e perseguição (o número para ligações é o 1522, na Itália). Não devemos esquecer todas aquelas mulheres que se encontram em “casas de abrigo” ou que tentam escapar dos caminhos da violência, e que frequentemente não são adequadamente apoiadas, embora estejam em condições de particular fragilidade. 

Enfim, como apontado pela plataforma “Obiezione Respinta”, não devemos subestimar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres que decidem abortar durante esta emergência. De fato, já em tempos “normais”, as mulheres que pretendem recorrer à interrupção voluntária da gravidez (Ivg) são muitas vezes forçadas, devido ao elevado número de médicos contrários, a se deslocar de sua cidade para locais onde encontram estruturas hospitalares que o permitam. Hoje em dia, essa possibilidade corre o risco de ser ainda mais limitada devido ao bloqueio da mobilidade, por causa da epidemia e da redução ou transferência dos serviços Ivg. Como se isso não bastasse, tudo isso é agravado na Itália pelo uso excessivo do aborto cirúrgico ao invés do aborto farmacológico, este último menos invasivo e que requer menos tempo de permanência em instalações hospitalares [3].

Em um sistema econômico marcado por persistentes desigualdades de gênero, mesmo um evento “horizontal” (que pode potencialmente afetar a todos), como uma de pandemia causada pela propagação de um vírus, pode se tornar um fator de maior discriminação, afetando principalmente as mulheres.

Notas

[1] Irregularidades tanto a nível contratual (utilização generalizada do trabalho não declarado), como no que se refere às autorizações de residência para as mulheres migrantes, o que as coloca em condições de extrema suscetibilidade à chantagem e à dependência do seu empregador. 

[2] Veja o relatório Global Gender Gap Report 2020 publicado no “World Economic Forum”. Para a União Europeia, consultar os últimos dados publicados, e os artigos publicados em Repubblica e Repubblica Ricerca.

[3] Considerar também o que está acontecendo no resto do mundo, começando pelos Estados Unidos. A CNN  tem, de fato, recentemente divulgado a notícia que o escritório do Procurador Geral de Ohio  ordenou que as clínicas de aborto, presentes na área, parassem de realizar abortos e intervenções “desnecessárias” durante a pandemia.

Andrea Coveri é pesquisador de pós-doutorado em Economia Aplicada no Departamento de Economia, Sociedade e Política da Universidade de Urbino “Carlo Bo”. Ele lida com os temas teoria marxista do valor, dinâmica da inovação e cadeias globais de valor.

Maria Grazia Montesano é doutoranda em Sociologia e Pesquisa Social no Departamento de Sociologia e Direito Econômico da Universidade de Bolonha. Ela trabalha com os temas segregação residencial, cidades e migrações.

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