Plantação de tabaco emprega crianças e desmata, diz MP

Dizem os agricultores que o tabaco é como um filho: a cultura precisa de cuidado intenso, às vezes dia e noite ininterruptos. Com um modelo baseado na agricultura familiar, garantir a produção significa envolver todos seus membros. Em geral, as matriarcas, mesmo idosas, são ativas. Não raro, crianças participam, especialmente da colheita. O presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco), Iro Schünke, orgulha-se do esforço no combate ao trabalho infantil ao longo dos últimos anos. Mas o Ministério Público do Trabalho do Paraná diz que o problema está longe de ser resolvido. E não é só aí que recai a insustentabilidade do sistema: além do contato com nicotina e agrotóxicos, há frequentes denúncias de avanço sobre a mata nativa e contaminação de solo e água.

Para combater a entrada de crianças nas lavouras, Schünke explica que o sindicato tem investido na conscientização dos produtores por meio, por exemplo, de seminários e regras mais rígidas:

– Trabalhamos nisso desde 1998 e avançamos muito. Hoje não tem criança trabalhando. Ainda existe alguma dificuldade com adolescentes, mas estamos investindo forte no controle. O contrato das indústrias é por safra, e o produtor, para assinar, precisa apresentar atestado de matrícula dos que não completaram o ensino fundamental e de frequência à escola, senão ele não é renovado.

Quase 90% dos agricultores não completaram o ensino fundamental, segundo dados da Universidade de Santa Cruz do Sul (RS). Ao todo, cerca de 150 mil crianças são de famílias de agricultores de tabaco. Um levantamento de 2008 com 1.128 fumicultores do Sul feito pelo Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais (Deser) mostra que 40% dos filhos homens e quase 20% das mulheres, além de 9% dos filhos abaixo de 12 anos, auxiliam no cultivo. Um problema que não é só brasileiro. Em maio, a ONG Human Rights Watch denunciou o trabalho infantil nas lavouras americanas de fumo.

– As crianças vão à escola e ajudam na lavoura no resto do dia. A colheita é no final do ano, quando elas estão de férias – explica a procuradora Regional do Trabalho no Paraná, Margaret Matos, que há quase duas décadas acompanha o modelo de produção no Sul. – A indústria sabe quantas pessoas são necessárias para produzir e sabe que a família acaba participando. Portanto, beneficia-se de mão de obra não remunerada. É um sistema perverso.

De acordo com ela, estudos mostram que as crianças sofrem mais do que os adultos com os agrotóxicos. E outros sugerem até mesmo déficit de crescimento e de cognição, além de desnutrição.

A fiscalização tem aumentando, por isso os agricultores já compreendem que é ilegal empregar os filhos pequenos A função, entretanto, vem de pai para filho. Jovens e adultos contam ter começado cedo. Aos 19 anos, Igor Guilherme Nunes tem tanta noção do processo, de seus empecilhos e possibilidades, que parece ser até o dono do negócio.

– Sempre acompanhei – confirma.

Sem completar os estudos, o pai, José Eupídio, surpreende-se com a iniciativa do filho, que agora espera a irmã mais velha terminar a faculdade de Direito para também ingressar no curso de veterinária. A ideia é ir parando com a produção de tabaco e aumentando a de leite, que já conta com 50 vacas. Entre os motivos para a mudança está o endividamento com a indústria do fumo, comum entre agricultores, e a precariedade da atividade, que vai além dos sintomas da intoxicação pela nicotina.

– É um tipo de produção que gera abusos de direitos humanos, como trabalho infantil e condições desfavoráveis do trabalho – critica Marcelo Moreno, pesquisador do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Fiocruz, que realizou uma pesquisa no município de Palmeira (PR).

Famílias inteiras em torno da estufa

O ciclo produtivo é extenuante. No período da colheita, em pleno verão, o fumo é retirado manualmente do solo e depositado em estufas, que recebem lenha para a cura. À noite, é preciso acordar para manter estável a temperatura. Num momento seguinte, as folhas secas ficam depositadas nas próprias estufas ou em pequenos depósitos praticamente sem ventilação. Por meses, famílias inteiras se reúnem nesses espaços para classificar o fumo de acordo com a qualidade, o que define o preço.

– O cheiro lá é forte, tem um pó da folha que dá falta de ar – conta Joselaine Oliveira, 23 anos.

Em outros períodos, há plantação das sementes, transposição das mudas e manejo das plantas. O uso de agrotóxicos ocorre em todos eles, o que pode prejudicar o solo e a água, diz estudo da Universidade de Santa Cruz do Sul. Desmatamento foi constatado pelo Ibama, que, num relatório recente, contou 20 hectares de Mata Atlântica destruídos no entorno de Segredo (RS).

– Além de limpar a área para plantar mais fumo, eles usavam a madeira para a secagem das folhas – relata o procurador federal Roberto Rigon.

Cerca de dez famílias fumicultoras foram multadas em R$ 7 mil por hectare desmatado, a madeira foi apreendida, e a área, embargada. E o Ministério Público Federal estabeleceu, depois de quase um ano de conversas, a assinatura de dois documentos com o SindiTabaco e outras entidades: um acordo de cooperação técnica e um termo de compromisso para a confecção de 200 mil cartilhas de conscientização e a contratação de um satélite para monitorar quase seis mil quilômetros quadrados.

– Como a cadeia produtiva é organizada, comprovamos que a indústria sabia do desmatamento e tinha responsabilidade – diz o procurador. – Uma das minhas propostas é estabelecer uma licença ambiental para as estufas, elas queimam lenha e liberam gás carbônico não monitorado. Isso protegeria o ambiente e o trabalhador, que respira aquilo.

Fonte: O Globo
Texto: Flávia Milhorance
Data original da publicação: 03/08/2014

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