Permanência e mudanças: mulheres negras no trabalho

Reivindicações de escravos do século XVIII guardam semelhanças com as dos trabalhadores atuais. O que está sendo feito para mudar isso?

Cida Bento

Fonte: CartaCapital
Data original da pública: 18/04/2017

No livro Os Quilombos e a Rebelião negra, Clóvis Moura recuperou um trecho de um tratado proposto a Manoel da Silva Ferreira, senhor do Engenho Santana, em Ilhéus (BA), pelos seus escravos durante um levante realizado em 1789. Dizia o texto:

“Em cada semana nos há de dar os dias de sesta feira e de sabado para trabalharmos para nos não tirando hum destes dias por cauza de dia Santo
…Na planta de mandioca, os homens queremos que só tenhão tarefa de duas mãos e meia e as mulheres de duas mãos.
…Ao actuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com a nossa aprovação…
Os marinheiros que andão na Lanxa alem de camisa de bacta que se lhes dá, hão deter Gibão (casaco de couro sem manga) de bb de bacta, e todo o vestuário necessário.
…O canavial de Jaribú o hiremos aproveitar por esta vez, e depois hade ficar para pasto por que não podemos andar tirando canas para entre mangues”

O trecho mostra reivindicações de escravos que guardam muitas semelhanças com pautas de reivindicações da classe trabalhadora, na atualidade. Ele nos dá conta de quão antiga é a luta por justiça de raça e gênero nas relações de trabalho brasileiras.

Os dados sobre as desigualdades que atingem a população negra são abundantes, e embora necessitem ser ampliados e aperfeiçoados quanto à perspectiva interseccional com gênero, ainda sim mostram uma inequívoca segmentação racial e de gênero no mercado de trabalho, apontada por pesquisadoras do IBGE, já há quase 40 anos.

Este cenário vem sendo agravado por iniciativas governamentais, tais como as reformas da Previdência, a terceirização e o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, as quais terão impacto diferenciado sobre grupos historicamente vulneráveis, o que vem provocando fortes reações dos movimentos sociais, em particular do movimento de mulheres negras.

Por outro lado, também neste cenário, despontam alguns dos resultados das lutas do povo negro, na última década, a exemplo de sua presença expressivamente maior no contingente de estudantes de nível superior e nas respostas ainda isoladas, mas importantes, de grandes corporações com o escopo de ampliar a equidade racial no trabalho.

Assim, cumpre retomar brevemente alguns marcos importantes do processo contemporâneo de combate ao racismo e sexismo no mercado de trabalho, que remontam ao final da década de 80, período significativo no desenvolvimento de ações neste território.

Marcos na luta por direitos

Nos anos 1980 e 1990, importantes textos sobre a mulher negra no mercado de trabalho foram publicados, como Mulher Negra (1985), de Sueli Carneiro e Tereza Santos; O lugar do negro na força de trabalho (1981), de Tereza Cristina Araújo, Lucia Helena Oliveira e Rosa Maria Porcaro; Desigualdade racial no Brasil contemporâneo (1991), escrito por Luiza Bairros e por mim; e Instrução, rendimento, discriminação racial e de gênero (1987), de Fúlvia Rosemberg, dentre tantas outras companheiras.

Ainda nesta época, início dos anos 90, outro marco importante deve ser mencionado: a denúncia elaborada pelo Ceert, com apoio de outras organizações do movimento negro e sindical, feita à OIT, em Genebra, sobre o descumprimento, pelo Brasil, da Convenção 111, que versa sobre discriminação no emprego e ocupação, assinada pelo país em 1968 e, depois, “devidamente” engavetada.

Esta denúncia deflagrou uma série de iniciativas que envolveram o Estado brasileiro, por meio do Ministério do Trabalho, com a criação do Grupo de Trabalho sobre Discriminação no Emprego e Ocupação (GTDEO), em 1996. Envolveu, ainda, o movimento sindical, destacando-se a elaboração de Cláusula de Promoção da Igualdade Racial, nos acordos coletivos de trabalho, além da realização de Conferências Internacionais com centrais sindicais dos EUA, África do Sul e Brasil e a criação do Instituto Interamericano Sindical pela Igualdade Racial (Inspir), que encomendou o Mapa do negro no mercado de trabalho brasileiro à Fundação Seade e ao Dieese, documento amplamente disseminado, na ocasião.

Também ocorreram, neste período, as primeiras iniciativas de debate com empresas sobre experiências de promoção da igualdade racial em seus quadros de pessoal. O Congresso Nacional de Recursos Humanos, em São Paulo, em 1998, envolvendo 3 mil diretores e gerentes de empresas de todo o País, trouxe o tema da diversidade e o Instituto Ethos, em 1999 e em 2000, debateu o tema na Conferência de Responsabilidade Social Empresarial nas Américas.

Ainda neste período, por iniciativa de membros do movimento negro, foi realizado o contato com empresas norte-americanas que implementavam políticas de ação afirmativa, ou as chamadas políticas de diversidade, em suas matrizes, mas discriminavam negros nas filiais brasileiras.

Assim é que, entre final da década de 80 e meados de 2000, muitas ações ocorreram, pressionando o Estado e os órgãos ligados ao movimento sindical e as grandes corporações. A despeito deste grande esforço, os desafios ainda estão, entretanto, longe de serem vencidos.

O tamanho da desigualdade

Isto pode ser verificado, por exemplo, nos dados do Instituto Ethos, apontando que não há tendência de melhora na participação de negras e negros em posições de liderança das grandes empresas e apenas 3,6% delas têm políticas para inserção de afrodescendentes no quadro de funcionários. Em 2010, negros eram 5,3% dos executivos. Em 2015, 4,7%. Em 2007, eram 17% dos gerentes, e em 2015 sua proporção caiu para 6,3%.

No que diz respeito à ocupação de cargos executivos, por exemplo, as mulheres negras permanecem sub-representadas (0,6%), além de possuírem a menor taxa empregabilidade, segundo estudo do Instituto Ethos.

De outro lado, a questão da trabalhadora doméstica negra merece um destaque particular, já que 63% das trabalhadoras domésticas são mulheres negras, segundo a Pnad/2012. Não há como negar o avanço legislativo consubstanciado na aprovação da PEC das Domésticas (PEC 72/13) e da Lei Complementar 150/15, que melhoraram a estrutura de proteção social do emprego doméstico.

A despeito disso, em média, somente quatro em cada dez trabalhadoras domésticas estavam protegidas, e seus rendimentos médio se revelaram inferiores ao salário mínimo. Cresceu a proporção de trabalhadoras que prestam serviços em mais de um domicílio, de 21,4% há dez anos, para 31,1% atualmente, mostrando um aumento da composição das trabalhadoras diaristas ante as de emprego fixo.

Historicamente este grupo encontra-se em situação de maior precarização e vulnerabilidade frente ao desemprego. O seu nível de informalidade atual está acima da taxa da informalidade de brancos, de dez anos atrás.

Segundo o Laboratório de Análises Estatísticas Econômicas e Sociais das Relações Raciais da UFRJ, que vem acompanhando a situação de gênero e raça no mercado de trabalho, ao longo dos últimos anos os que mais sofrem e os maiores impactados em períodos de crise são justamente os setores mais oprimidos, com destaque para as mulheres negras, com menos oportunidades de emprego nos setores produtivos da sociedade.

Esta situação tem gerado intensas manifestações de rua, tais como a “Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e pelo Bem Viver”, que levou 50 mil mulheres negras a Brasília, em 2015.

Observam-se também ações mais focadas, como aquelas realizadas pela Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e o Fórum Permanente pela Igualdade Racial (Fopir), em Nova York, em março de 2017, que trataram da autonomia econômica de mulheres negras na Comissão sobre o Status da Mulher (CSW 61) da ONU. A pressão persiste.

Nos últimos anos, entretanto, é possível se constatar iniciativas significativas no campo da equidade de gênero e raça, no âmbito educacional e nas grandes corporações, que merecem citação.

No campo educacional, a presença da juventude negra no ensino superior teve um expressivo aumento – triplicou nos últimos 13 anos segundo a Síntese de Indicadores Sociais de 2015, produzida pelo IBGE, gerando forte pressão no mercado de trabalho, por empregos mais qualificados e dignos.

Este aumento tem a ver com a persistente luta de organizações e ativistas negras e negros ao longo do tempo, e foi fortalecida pela decisão unânime do Supremo Tribunal Federal, em 2012, declarando a constitucionalidade das ações afirmativas para promover a igualdade, e, no mesmo ano, pela sanção da lei de cotas nas universidades federais (Lei 12.711/12) representando avanços neste campo.

Saliente-se ainda a reserva de 20% das vagas em concursos públicos da administração direta e indireta da União (Lei nº 12.990/14), que, se replicada por outros órgãos municipais e estaduais e pela iniciativa privada, pode representar uma efetiva resposta à exclusão de milhares de jovens negras e negros de posições qualificadas no mercado de trabalho.

Os desafios

Para que o mercado de trabalho contemple efetivamente este expressivo contingente de jovens negras e negros no ensino superior é necessário que as grandes corporações avancem no sentido de fazer diagnósticos em seus processos de recursos humanos (recrutamento, seleção, treinamento, promoção e demissão), de comunicação, marketing, de seus produtos e serviços, nos lugares de comando e prestígio etc.. para identificar e interferir nas razões pelas quais persistem os altos níveis de exclusão da juventude negra de seus quadros de pessoal, bem como dos quadros de seus fornecedores. E, neste sentido, o trabalho com os censos e indicadores podem contribuir enormemente.

A inserção do dado cor/raça nos sistemas de informação das empresas, em particular os de recursos humanos, contribui para que se possa averiguar as diferenças de oportunidades e tratamentos.

De outro lado, a inclusão das Cláusulas de Promoção da Equidade Racial nos acordos coletivos de trabalho podem ampliar a discussão e a conquista de avanços neste território. Estudo realizado por Dieese, Inspir, e Solidarity Center (em PDF) revelam que, do total de mesas de negociação com garantias de equidade racial, dentre as analisadas em 2015, o setor rural (12,8%) e a indústria (9,6%) são os que apresentaram os maiores percentuais.

Entre os estados que avançaram nesta questão, pode-se destacar Bahia (12,5%), Sergipe (11,7%), São Paulo (10,6%), Minas Gerais (7,9%) e Mato Grosso do Sul (6,7%). A maioria das cláusulas se refere à igualdade de oportunidades e não discriminação na contratação, promoção, demissão, isonomia salarial e à reserva de vagas. As cláusulas também focaram a realização de campanhas, ações e palestras sobre o tema, pelas empresas e a necessidade de apuração e punição dos casos de discriminação.

Desde 1995, o Ceert vem realizando censos em grandes organizações públicas e privadas e a esta iniciativa junta-se agora a elaboração e publicação dos Indicadores Ethos-Ceert para a Promoção da Equidade Racial”, em 2016, que objetiva a realização de diagnósticos institucionais, com vistas a oferecer orientações para a adoção de medidas que contribuam para a diminuição das desigualdades raciais e de gênero.

Além desta medida, o Ceert e o Ethos lançarão, em 16 de maio de 2017, o Banco de Boas Práticas, bem como a Coalizão Empresarial pela Equidade Racial e de Gênero, iniciativa apoiada pelo Fundo Newton do governo britânico e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) – que se propõe a ser um movimento indutor para implementação e aprimoramento de políticas públicas e práticas empresariais, em um esforço coletivo para superar a discriminação de gênero e raça nas empresas.

Cida Bento é psicóloga social, coordenadora executiva do Centro de Estudos das relações do Trabalho e Desigualdades (CEERT) e integrante do Fórum Permanente pela Igualdade Racial e da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras.

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