PEC 55: a ameaça real aos direitos sociais

Valdete Souto Severo

A proposta de emenda à Constituição hoje tombada sob o n. 55 pretende o congelamento dos gastos com “despesas primárias” pelos próximos vinte anos. A receita é simples: em todas as áreas que envolvem prestação de serviço público os valores gastos com manutenção e investimento terão de ser restritos ao montante de despesas do ano anterior, corrigido monetariamente. Em linha de princípio, pode até parecer que a medida tem mesmo o objetivo de conter gastos e, com isso, enfrentar a tal crise econômica que tanto nos assusta.

Se olharmos mais de perto, porém, a intenção se torna mais clara. Não há uma única linha (nessa PEC ou em qualquer outra proposta legislativa em tramitação) acerca da taxação de grandes fortunas. Trata-se de algo debatido há décadas no Brasil. O imposto sobre a renda deveria ser progressivo, atingindo de maneira mais eficaz aquele 1% da população que detém a maioria absoluta da renda. Isso, por si só, já implicaria uma arrecadação suficiente para acabar com o déficit da educação e da saúde, áreas que serão especialmente atingidas com a aprovação da PEC. Também não há referência a medidas de controle contra a evasão de divisas, ou seja, do dinheiro que os brasileiros mandam para o exterior, para os chamados paraísos fiscais. Segundo dados de setembro do ano passado, entre 2003 e 2012, 217 bilhões de dólares saíram ilicitamente do país. Essa prática, que pode e deve ser combatida, não tem merecido atenção alguma do atual governo.

Essas reflexões nos fazem perceber que, ao contrário do que nos dizem, o objetivo da PEC 55 não é conter gastos e, com isso, enfrentar a crise. Trata-se de um movimento de desmanche do Estado Social. O que a aprovação da PEC 55 propiciará, concretamente, será o fechamento da Justiça do Trabalho, dos hospitais públicos, das escolas e faculdades. O governo do RS já anunciou o fechamento de pelo menos 9 fundações públicas. É disso que estamos tratando. E com as fundações, faculdades e hospitais fecharão também as portas para a pesquisa independente, para a produção de conhecimento, para o acesso à educação de qualidade. Fecharão as portas para estudos que permitam descobrir a cura de novas doenças ou desenvolver medicamentos que as combatam de modo eficaz. A ideia é privatizar o ensino superior e, depois, quem sabe, também o ensino médio, os presídios e os hospitais. A partir de então, quem fomentará pesquisas sobre medicamentos que interessam a um pequeno número de pessoas, como ocorre com as chamadas doenças raras? Onde o trabalhador buscará seus direitos? Como a população de baixa renda terá acesso à saúde ou à educação? E o que faremos com todo esse contingente de pessoas que ficará completamente à margem de condições mínimas para uma sobrevivência digna? Muitas perguntas. Nenhuma resposta. Fato é que a concretização desse plano de desmanche do Estado Social outorgará à iniciativa privada o controle completo das possibilidades de acesso aos chamados direitos sociais. Não é difícil prever as consequências dessa noção de estado mínimo, que continuará sendo gigante apenas para atuar na defesa de instituições financeiras e grandes empresas, seja através da vexatória lei de recuperação judicial, seja mediante concessão de empréstimos subsidiados pelo BNDES.

A PEC 55 é um exemplo emblemático do raciocínio liberal clássico, que retorna com força nesta segunda década do século XXI, ignorando o fato singelo de que os direitos sociais foram garantidos historicamente para permitir que o capital pudesse continuar se refestelando. Portanto, suprimir direitos sociais, vedando concretamente o acesso à saúde, educação e justiça, é um equívoco mesmo da perspectiva do próprio capital. Um equívoco pelo qual todos nós pagaremos, mesmo aqueles que bateram panela ou que ainda acreditam que o governo atual, alvo de novos escândalos praticamente todos os dias, promoveu o golpe para por fim à corrupção no país. Todos nós sofreremos com o aumento exponencial da pobreza, da violência, da miséria, do desespero pela falta de condições básicas de vida. Depois não adianta reclamar da violência urbana, da falta de medicamentos, do descumprimento de direitos trabalhistas básicos, das dificuldades de acesso ao ensino. Se aprovarmos essa PEC, não haverá saída.

Há uma consulta pública disponível no site do Senado que revela a inconformidade da população com as medidas que o governo pretende adotar (https://www12.senado.leg.br/ecidadania). Vote! Fale sobre esse assunto com seus amigos e familiares. Precisamos estabelecer o debate, compreender o risco e impedir a aprovação dessa proposta de alteração da Constituição, que vem sendo denominada “PEC do fim do mundo”, porque implicará o retorno à barbárie. Não se engane, todos seremos atingidos.

Uma Internet das pessoas é possível! Uma coalizão de designers, trabalhadores, artistas, cooperativas, desenvolvedores, sindicatos inovadores, advogados públicos e outros profissionais pode mudar as estruturas, para que todos possam colher os frutos do próprio trabalho.

As empresas de alta tecnologia adoram as rupturas de regras – por isso vamos propor uma. O que segue é um chamado para colocar as pessoas no centro dos corredores virtuais de contratação e transformar os lucros em benefícios sociais. É um chamado para que prefeituras considerem iniciar por conta própria negócios como o Airbnb. Historicamente, os municípios de muitos países costumavam possuir e operar hotéis e hospitais. Alguns ainda o fazem. É hora de revisitar essa história.

Em meados da década de 1960 em Nova York, o artista Goerge Maciunas, criador do movimento Fluxus, começou a formar cooperativas de artistas motivadas pela sua própria situação precária. Na Nova York de hoje, artistas como Caroline Woolard usam a lógica da arte para transformar suas próprias situações de vida e a de outros14.

É possível escapar de Facebook, CrowdFlower e Google. Imperativos empresariais como crescimento e maximização de lucro não são as únicas opções. É muito difícil consertar aquilo que você não tem. A luta por privacidade e as batalhas por salários maiores dos trabalhadores da multidão são importantes, mas os modelos cooperativos de propriedade da Internet poderiam responder a muitas dessas questões.

Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

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