Participação da Volks na ditadura é investigada pelo MP

Divulgado há quase dois anos, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) destinou um capítulo aos trabalhadores e ao movimento sindical. Entre as investigações que ficaram pendentes, está a participação de empresas em atividades da ditadura. E o caso da Volkswagen, entre outros, pode mostrar avanços em prazo mais curto: a pedido de várias entidades, o Ministério Público investiga, desde o final de 2015, possível colaboração da montadora com órgãos de repressão e violações de direitos humanos.

A atuação é conjunta – envolve MP federal, estadual e do Trabalho. “O MPF recebeu da Comissão da Verdade documentos que comprovam o envolvimento da empresa no fornecimento de dados dos trabalhadores de suas fábricas ao Dops (um dos órgãos responsáveis pelas prisões e torturas do período), na organização de um sistema próprio de vigilância e monitoramento do movimento sindical e do envolvimento direto na prisão e na tortura de seus empregados dentro do ambiente da empresa”, diz comunicado.

Na representação encaminhada ao procurador regional dos Direitos do Cidadão do Estado de São Paulo, Pedro Antônio de Oliveira Machado, as várias entidades – entre as quais dez centrais sindicais, além de pesquisadores, ativistas e ex-funcionários – ressaltam a necessidade de esclarecimento de episódios daquele período histórico. E fazem referência à “obscuridade que ainda faz transbordar a ignorância e a superficialidade de tratamento do tema da complicidade do empresariado” com o regime autoritário. O documento também é assinado pela advogada Rosa Cardoso, que coordenou o grupo de trabalho do movimento sindical e a própria CNV, pelo ex-deputado Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa paulista, e por Cezar Britto, ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre outros.

A Volks passou a negociar uma reparação judicial. Um diretor da matriz alemã, Manfred Grieger, veio ao Brasil em 2015 e reuniu-se com representantes do Ministério Público, inclusive com Machado, que falou sobre um possível termo de ajustamento de conduta (TAC). “Foi o início de uma discussão sobre como chegar a um acordo a respeito dessa questão”, afirmou na ocasião ao jornal O Estado de S. Paulo. Procurado para comentar o atual estágio das conversas, o executivo não respondeu ao pedido de informações. A empresa também não se manifestou.

Ex-integrante do grupo de trabalho do movimento sindical na CNV, Sebastião Neto, coordenador do Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas (IIEP), diz que o mais importante é estabelecer a cadeia de comando que existia na empresa. “Queremos chamar as pessoas a que ele (coronel Adhemar Rudge, responsável pelo setor de segurança industrial da empresa) se reportava.”

Segundo Neto, não existe nenhuma “Volksfobia” – mas a documentação que envolve o caso é extensa. A empresa demonstra relação próxima com o Dops. Neto afirma que a proposta de Grieger é de fazer reparações individuais, o que ele não considera interessante. “Nós queremos discutir reparação coletiva”, diz, citando possíveis ações, como projetos de educação e um memorial.

Responsabilidade

Vice-presidente do Comitê Mundial dos Trabalhadores na Volks, Reinado Marques da Silva, o Frangão, funcionário da empresa na unidade de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, esteve com Grieger na Alemanha. O executivo também se reuniu, em São Bernardo, com o presidente e o secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos, Rafael Marques e Wagner Santana, respectivamente. Segundo ele, a montadora mostra disposição de fornecer documentos e assumir responsabilidades pelo ocorrido no Brasil, conforme o que for decidido pela Justiça, deixando claro que essa não é a prática do grupo.

“O que eles colocam é: vamos arcar com tudo que for de minha responsabilidade sobre gestão de pessoas ligadas à empresa. Eles repudiam esse processo”, diz Frangão. À empresa de comunicação DW Brasil, também em 2015, Grieger afirmou ainda que a montadora iria investigar “todos os indícios” de participação da funcionários da empresa em violações de direitos humanos. “A Volkswagen lamenta muito que pessoas tenham sofrido ou tenham sido prejudicadas economicamente durante a ditadura militar, eventualmente, por meio da participação de funcionários da Volkswagen do Brasil”, declarou.

O caso da montadora instalada no Brasil nos anos 1950 (a fábrica do ABC começou a funcionar em 1959) pode ser emblemático, mas não é o único. Os relatos apontam colaboração de dezenas de empresas com a repressão. O relatório da CNV aponta “situação inédita” em 1964. “Na Primeira República, a fábrica era domínio privado do patronato e o Estado permanecia ausente. Com a criação da legislação trabalhista, a partir do Estado Novo, o espaço fabril tornou-se terreno de disputa, mediada pela virtual presença do Estado, e os conflitos se fizeram públicos.” Já na ditadura, acrescenta, “o Estado estará presente nas fábricas, não como árbitro, mas como ‘agente patronal’.”

Violência

Em relação à Volks do Brasil, o relatório da CNV identifica “uma profusão de documentos” que, segundo o colegiado, comprovam a cooperação da empresa com órgãos como o Dops. Cita o caso do hoje aposentado Lúcio Bellentani, no ABC – funcionário no setor de Ferramentaria, foi preso na própria fábrica, durante o trabalho, em 1972, por dois homens, um deles portando metralhadora. “Na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco”, relatou Bellentani em depoimento.

O grupo de trabalho do movimento sindical na Comissão da Verdade cita ainda a formação, em 1983, do Centro Comunitário de Segurança (Cecose) no Vale do Paraíba, interior de São Paulo. “Esse centro operava no compartilhamento de informações sobre as atividades dos trabalhadores, sobretudo, dos dirigentes sindicais, por meio de reuniõe­s mensais nas dependências das fábricas, hotéis ou pousadas da região, com a presença de representantes empresariais”, afirmam os representantes do grupo. A Volks tem uma unidade na região, em Taubaté.

“Nos documentos obtidos a respeito do funcionamento do centro, localizou-se um, datado de 18 de julho de 1983, no qual se registra, textualmente, que o representante da empresa Volkswagen expôs os assuntos mais importantes em reunião, apresentando anotações, em forma de ‘lembretes’.” Novas informações foram obtidas recentemente, após a representação encaminhada ao Ministério Público.

A própria Volks se encarregou de passar ao Dops um resumo do “comício” feito por Lula na porta da montadora.  Fotografia: Jesus Carlos/Imagem Global(1981)
A própria Volks se encarregou de passar ao Dops um resumo do “comício” feito por Lula na porta da montadora. Fotografia: Jesus Carlos/Imagem Global(1981)

Um documento do Setor de Análise, Operações e Informações do Dops relata, por exemplo, “comício” realizado em 26 de março de 1980 na portaria da Volks no ABC, citando um “resumo” feito pela segurança da própria Volks sobre a atuação do então Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, à época presidido por Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, Lula falava justamente sobre o monitoramento que os operários sofriam na fábrica, citando o coronel Adhemar Rudge. Na representação ao MPF, as entidades afirmam que ele era “amigo notório” do coronel Erasmo Dias, ex-secretário estadual de Segurança Pública em São Paulo.

Em 23 de junho último, o MPF convocou Rudge para depoimento. De acordo com o Ministério Público, com passagem pelo Ministério da Justiça e pela Polícia Federal da Guanabara, ele passou a chefiar a segurança industrial da Volks em 1969. Permaneceu lá até novembro de 1991, quando se aposentou – completará 90 anos em outubro. Ao MPF, Rudge negou as acusações sobre perseguição e disse que seu setor se limitava a cuidar do patrimônio da empresa. Naquele mesmo dia, outro ex-funcionário da Volks, João Batista Lemos, declarou que “a própria Volks me entregou para o Dops”. Hoje diretor executivo da CTB, Batista foi anistiado em 2013.

Para Frangão, o processo é importante também para a geração atual. “Isso reforça ainda mais que a democracia, por mais difícil que seja, é a melhor forma de a gente lidar com os problemas e as adversidades.”

Existem muitos relatos de parcerias empresariais com a ditadura. A Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa paulista cita também a Operação Bandeirante (Oban), que teve financiamento de indústrias paulistas, mas lembra que a participação patronal na manutenção do sistema de repressão da ditadura não se limitou a São Paulo.

Entre suas recomendações, o grupo dos trabalhadores na CNV propôs “investigar, denunciar e punir empresários, bem como empresas privadas e estatais, que participaram material, financeira e ideologicamente para a estruturação e consolidação do golpe e do regime militar”. Sebastião Neto lembra que a proposta não foi incluída no relatório final.

A coordenadora do grupo de trabalho, Rosa Cardoso, afirmou em sua apresentação que o golpe de 1964 e a consequente ditadura “foram um empreendimento civil e militar”. Sem o projeto empresarial, que buscava mudar o modelo econômico no Brasil, teria havido “um mero levante”.

Lúcio Bellentani foi preso em 1972 enquanto trabalhava. Começou a apanhar na sala de segurança da Volks. Fotografia: Arquivo Público Estado de SP
Lúcio Bellentani foi preso em 1972 enquanto trabalhava. Começou a apanhar na sala de segurança da Volks. Fotografia: Arquivo Público Estado de SP

Um resgate necessário

Em 11 de agosto, o frei dominicano Tito de Alencar Lima, morto em 1974, na França, tornou-se cidadão paulistano, após aprovação de projeto do vereador Toninho Vespoli (Psol), há quase um ano. Na cerimônia em homenagem a Tito, na Câmara Municipal, representantes de movimentos do passado e do presente se reuniram para discutir problemas que ainda persistem na sociedade brasileira, como a violência policial e a tortura. Por isso, estavam presentes ao evento representantes dos estudantes e do movimento Mães de Maio.

“Apesar de não realizarmos todos os sonhos que nós tínhamos, tem outras pessoas gerando novos sonhos que dão sentido à morte e à vida continuada de Tito”, afirmou frei João Xerri, ao ligar fatos históricos que resultaram no suicídio do dominicano à atuação de grupos, na atualidade, por justiça e democracia.

Frei Tito foi militante estudantil. Preso em 1968, foi torturado no Dops e depois na Oban. Fotografia: Wikipedia
Frei Tito foi militante estudantil. Preso em 1968, foi torturado no Dops e depois na Oban. Fotografia: Wikipedia

Três dias depois do evento na Câmara, uma caminhada pelo centro de São Paulo lembrou do ex-presidente João Goulart. O elevado conhecido como Minhocão passou a levar o nome de Jango, em lugar de Arthur Costa e Silva, um dos generais-presidente do período autoritário – a partir de outro projeto, do vereador Eliseu Gabriel (PSB), sancionado pelo prefeito Fernando Haddad (PT). “É muito importante, neste momento político, em que se debate abertamente o retrocesso, rememorar Jango”, disse João Vicente, filho de Goulart.

A Câmara discute outro projeto emblemático. A ideia é dar o nome de Frei Tito a uma rua que hoje lembra um de seus algozes, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops.

Também na casa legislativa paulistana, Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, instalada pelo prefeito Fernando Haddad em setembro de 2014, deu mais um passo no sentido de aprofundar a participação do mundo empresarial em ações de repressão da ditadura. No último dia 15 de agosto, o pesquisador Paulo Fontes foi ouvido pelo colegiado sobre o papel da indústria Nitro Química na perseguição a militantes operários.

Fontes é coordenador do Laboratório de Estudos do Mundo do Trabalho e dos Movimentos Sociais (LEMT) do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDoc/FGV-RJ). Seu livro Um Nordeste em São Paulo: Trabalhadores Migrantes em São Miguel Paulista: 1945-66, lançado em 2012, recupera a saga dos trabalhadores que deixaram o Nordeste para serem operários da companhia, criada em 1935 pelo empresário José Ermírio de Moraes, pai de Antônio Ermírio, morto há 2 anos, do Grupo Votorantim.

O autor observa que as relações entre o aparato repressivo e os empresários, que são bem anteriores a 1964, estão muito presentes no caso da Nitro Química. Ele ressalta que os trabalhadores e os impactos diretos dos regimes autoritários à vida pessoal e ao mundo do trabalho não são estudados como deveriam. “Embora a maioria dos mortos e desaparecidos seja de trabalhadores ou pessoas com origem nas classes populares, eles sempre foram negligenciados entre as vítimas da ditadura.

É preciso trazer à tona essa discussão sobre a relação entre sindicalistas e ativistas que são esquecidos na história.”

Fonte: Rede Brasil Atual
Texto: Vitor Nuzzi
Data original da publicação: 12/09/2016

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