Para a modernidade líquida, um Direito do Trabalho igualmente líquido

Fotografia: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

É inegável que o Direito, para que se mantenha vivo e compatível com a sociedade sobre a qual recai, precisa ser adaptado. A liquidez jurídica nada mais é que o retrato da liquidez moderna que afeta a todas as estruturas de interferência humana.

Lilian Katiusca

Fonte: Jota
Data original da publicação: 29/08/2019

Bauman, filósofo contemporâneo, sensibilizou estudiosos de diversas áreas ao expor suas ideias sobre a denominada Modernidade Líquida e a efemeridade das relações humanas pós-modernas em que tudo se torna líquido, frouxo, vulnerável e transitório.

Logicamente, considerando a relação de permanente reciprocidade que se estabelece entre Direito e Sociedade, o conceito de liquidez do filósofo se torna característica comum de ambos, o ponto de interseção e equilíbrio (ou desequilíbrio?) sobre o qual tentam se estabelecer.

Rígido ou líquido? Muito se questiona sobre a necessidade de se ter um novo Direito do Trabalho menos protetivo, menos paternalista, mais flexível (líquido) e compatível com as necessidades fáticas das partes envolvidas na relação jurídica que se estabelece.

Fato é que, em meio a tantas angústias e questionamentos, é inegável que o Direito, para que se mantenha vivo e compatível com a sociedade sobre a qual recai, precisa ser adaptado. A liquidez jurídica nada mais é que o retrato da liquidez moderna que afeta a todas as estruturas de interferência humana, inclusive a jurídica.

A partir desta perspectiva – a modernidade líquida e o Direito líquido -, será feita uma análise da MP 881, de 2019, conhecida como Medida Provisória da Liberdade Econômica (cuja conversão em Lei já foi aprovada pelo Senado), e seus principais impactos no Direito do Trabalho.

Medida Provisória 881, de 2019 e seus principais impactos no Direito do Trabalho

A) Carteira de Trabalho e Previdência Social

A CTPS é um importante documento de identificação profissional na qual constam dados relevantes, tanto do ponto de vista trabalhista quanto previdenciário, do histórico profissional do trabalhador. Propõe não a sua extinção, mas sua conversão como documento eletrônico como regra, e exceção o documento impresso. A identificação do trabalhador dar-se-á pelo número do CPF, sendo esta a mesma identificação utilizada para fazer, eletronicamente, as indicações referentes a ao contrato de trabalho, tais como admissão, salário, função, férias, promoções e outras.

Com a reforma ministerial, ficará a cargo do Ministério da Economia a incumbência de regulamentar o procedimento para emissão da nova CTPS, bem como emiti-la.

Destaca-se, ainda, que o empregador terá o prazo de 05 dias para realizar anotações na CTPS, e não mais 48 horas. 48 horas após o lançamento das informações, o empregado poderá acessá-las.

B) Comissões Internas de Prevenção de Acidentes

Embora seja importante mecanismo de fiscalização dos riscos inerentes ao trabalho, com o intuito de prevenir doenças ocupacionais ou acidentes, as empresas com menos de 20 trabalhadores e as micro e pequenas empresas estão desobrigadas de instituir a Comissão de Prevenção de Acidentes.

Infelizmente, a constituição das CIPAs, pelo texto da MP, foi condicionada ao número de empregados e não, necessariamente, aos riscos oferecidos pela atividade a ser desenvolvida em cada um dos segmentos empresariais. Torna-se possível, portanto, a inexistência de CIPA para atividades altamente insalubres e periculosas.

Se o que se questiona é a estabilidade de emprego reconhecida ao membro da Comissão, melhor seria a mudança da regra estabilitária, e não simplesmente renunciar à sua constituição sem que seja considerada a natureza da atividade desenvolvida pelo trabalhador.

C) Regras contratuais

De acordo com o texto da MP 881, de 2019, as regras trabalhistas e, consequentemente, os princípios que lhe são peculiares, incidirão apenas nos contratos cujo salário esteja limitado a, no máximo 30 salários mínimos. Para contratos acima deste valor, a relação jurídica será pautada nas regras do Direito Civil e da liberdade econômica, desde que as partes tenham sido assistidas, no ato da contratação, por advogado por elas escolhido.

Destaca-se que, embora defendida a aplicação do Código Civil, a CLT poderá ser utilizada subsidiariamente e, ainda, os direitos previstos no art. 7o, da CR/88, e aqueles provenientes em instrumentos coletivos deverão ser observados.

Cria-se, neste aspecto, menos um mecanismo de respeito à liberdade econômica e à livre iniciativa, e mais de insegurança jurídica, afinal de contas, pelo texto cuja aprovação em Lei já foi formalizada pelo Senado, tem-se um contrato híbrido que gravita entre a autonomia civil e a proteção trabalhista. Ainda, confronta o art. 444, parágrafo único, da CLT, segundo o qual o empregado hipersuficiente – portador de diploma de nível superior e salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social – poderá negociar livremente cláusulas do seu contrato, sendo que estas prevalecerão sobre instrumentos coletivos porventura vigentes.

O empregado que receba salário superior a 30 vezes o salário mínimo e que seja portador de diploma de curso superior se enquadra na regra supramencionada. Como, portanto, garantir a ele a aplicação dos direitos previstos em instrumentos coletivos se as cláusulas do contrato individual prevalecerão sobre tais instrumentos?

D) Descanso semanal remunerado e feriados

Um dos pontos mais discutidos da MP é a possibilidade de trabalhar aos domingos e feriados. Foi, ao final, mantida regra constitucional segundo a qual o repouso semanal remunerado de, no mínimo, 24 horas, será concedido preferencialmente aos domingos. Pelo menos um domingo a cada 04 semanas, deverá coincidir com o repouso. Mantida a regra também de descanso remunerado nos feriados.

Porém, ficará a critério do empregador, caso haja trabalho nestes períodos, em conceder folga compensatória ou pagar o dia trabalhado com o adicional de 100%.

Percebe-se, pois, que ao retirar condicionantes para o trabalho em domingos e feriados, tais como autorização da autoridade competente ou necessidade de motivação da conveniência pública ou de necessidade imperiosa do serviço, atribui-se ao empregador adotar ou não o trabalho tais dias de acordo com os próprios interesses, sem que sejam, inclusive, observadas as regras de compensação de jornada definidas no art. 59, da CLT.

Destaca-se, ainda, que o trabalho realizado nas folgas semanais e feriados, para os serviços de telefonia, telegrafia submarina e ou subfluvial, de radiotelegrafia ou de radiotelefonia, não será considerado extraordinário, desde que não seja ele realizado como jornada extraordinária.

E) Registro de ponto por exceção

Outro ponto sensível da MP 881, de 2019, é a dispensa de fixação de quadro de horário geral. Significa dizer que a anotação da jornada será feita no registro do empregado. Ainda, tornou-se possível a anotação de jornada apenas no caso de ocorrência de horas extras, podendo tal medida ser adotada em acordo individual de trabalho. Ou seja: a jornada de trabalho do empregado não será anotada diariamente, mas apenas nos casos em que houver prestação de horas extras.

F) Grupo Econômico

Outro importante impacto da Medida Provisória 881, de 2019 – liberdade econômica – é a alteração da regra de responsabilidade solidária existente entre as empresas integrantes do grupo para créditos de natureza trabalhista.

A responsabilidade solidária, até então adotada sem qualquer condicionante, será aplicada apenas quando comprovado abuso de personalidade jurídica. Responderá, solidariamente, apenas a empresa contratante com a outra que integre mesmo grupo econômico se houver, por parte desta, abuso de personalidade jurídica. Torna-se, pois, tal alteração, um mecanismo de verdadeiro entrave ao trabalhador para cobrança da dívida trabalhista, já que caberá a ele comprovar o mencionado abuso a que se refere o texto da MP.

Pergunta-se se, tendo sido condicionada a responsabilização solidária ao abuso de personalidade jurídica, ainda assim será permitida a exploração de trabalhador contratado por uma empresa integrante do grupo por qualquer outra empresa, sem que se tenha, com ele, a formalização de novo contrato de emprego? A Súmula 129, do TST, será impactada pela mudança da regra de responsabilidade solidária do grupo econômico?

Considerações Finais

Para a modernidade líquida, um Direito líquido, amorfo, que escorre pelas mãos. Em tempos de sentimentos líquidos, regras líquidas. Uma liquidez que torna a matéria cada vez mais escassa de valores constitucionais e, na mesma medida, carreada de insegurança jurídica que afeta a todos que fazem parte deste mesmo cenário.

Lilian Katiusca é graduada em Direito pela PUC-Minas, graduada em Letras pela UFMG, mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela UFMG. Professora dos programas de graduação e pós-graduação do Centro Universitário Unihorizontes; professora do programa de pós-graduação da UNIGRAD (BA); Professora do Curso Ênfase. Colunista dos sites jurídicos JOTA e Empório do Direito. Membro do Projeto Trabalho em Debate. Advogada, consultora e palestrante. Autora pelas Editoras Juspodivm e Foco.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *