Os custos humanos da guerra contra o comércio informal

Olhando para o caso chinês, o Brasil pode apreender algumas lições sobre como lidar com a informalidade.

Rosana Pinheiro-Machado

Fonte: El País
Data original da publicação: 01/09/2017

Nesta sexta e sábado, intelectuais, políticos e empresários do Brasil se reúnem na Universidade de Pequim para discutir os caminhos para uma nova agenda de desenvolvimento do País, tendo como diferencial o diálogo com parceiros chineses e as possíveis lições que a China pode nos ensinar.

Em meio a uma discussão voltada para grandes e ambiciosos projetos de agronegócio e infraestrutura, os desafios de minha participação – que parte de um lugar acadêmico e etnográfico de quem pesquisa economia informal e pobreza – não são poucos. O que procuro trazer para o debate é que faz pouco sentido discutir globalização, empreendedorismo, inovação e sustentabilidade sem atentar para o fato de que 50% dos trabalhadores do Brasil têm historicamente se mantido na economia informal. Depois de alguns anos de uma importante queda na informalidade, os dados do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (IPEA) de 2016 apontam que voltamos ao estágio do qual temos muita dificuldade de sair: aquele que não consegue empregar metade de sua população. Essa é, na verdade, uma tendência epidêmica global na atual fase de flexibilização do neoliberalismo. Robert Neuwirth, pesquisador do tema, menciona dados que estimam que, em 2020, cerca de 2/3 da população mundial estará trabalhando na informalidade. Não são dados precisos, mas ajudam a dimensionar o problema.

Geralmente, os interesses de setores econômicos e políticos – projetos desenvolvimentistas, corporativos, do agronegócio ou relacionados ao fortalecimento do setor privado – partem do princípio de que resolverão a questão da informalidade, incorporando o “capital humano excedente” num movimento automático resultado da geração de empregos em larga escala. Assim, sistematicamente, continua-se reproduzindo o mesmo modus operandi: olha-se para cima (para os grandes interesses), geralmente “de cima” (projetos formulados por uma elite branca) para se resolver os problemas de baixo. Enquanto isso, ao longo dos anos a única forma como os governos souberam lidar com as milhares de pessoas que ocupam as ruas é por meio da violência policial, marginalizando – e não incorporando – quem é já é marginalizando pelo sistema. É uma teimosia histórica, já que a realidade dos fatos é que raramente saímos de uma condição de incorporação efetiva dos grupos menos privilegiados no mercado de trabalho formal.

Olhando para o caso chinês, é possível apreender algumas lições sobre como lidar com a informalidade. A China, apesar de suas contradições – que não são poucas, resultantes de uma industrialização acelerada marcada pela infração de lei trabalhista, pouca segurança e salubridade no trabalho e corrupção generalizada – tem como grande qualidade a capacidade de esboçar um projeto nacional de desenvolvimento claro, marcado por diversas etapas e subetapas, cujo centro da preocupação é o bem-estar da população e a redução da pobreza. A China remove dez milhões de pessoas da extrema pobreza anualmente e estima eliminá-la em 2020.

Parte de minha pesquisa na China foi mostrar o quanto o Estado chinês entendia que a informalidade e a infração de propriedade intelectual eram etapas importantes para o desenvolvimento chamado de “sobrevivência”. Não adianta coibir quando não havia contrapartida empregatícia. De fato, a informalidade tem evoluído – ainda que de forma nem tão linear como o Estado chinês espera – para um modelo de desenvolvimento marcado pela inovação e fortalecimento de marcas chinesas.

Como descrevo no livro que lançarei no evento em Pequim, Counterfeit Itineraries (Routledge 2017), os problemas dessa atitude laissez-faire são muitos, como o enriquecimento de uns e a exploração de outros, mas é inegável que o Governo chinês, diferentemente do atual governo brasileiro e do funcionamento histórico de nossas elites, possui uma visão de desenvolvimento abrangente, a qual 1) abraça a população como um todo, tendo a redução da pobreza como meta número primordial (e sendo bem-sucedida nessa meta) e 2) é capaz de enxergar uma linha de continuidade entre o setor informal e o setor privado, em que o informal é o novo formal. No caso da China, fundamentalmente, trata-se de uma visão estratégica de nação, mas também uma questão de autoimagem e de como os governantes e as elites percebem o povo.

No Brasil, ao contrário, há uma tendência a enxergar os trabalhadores informais como Brasil que não se quer, o Brasil que deu errado, uma bolha resquício do subdesenvolvimento, as pessoas “feias”, “barulhentas”, “fedorentas”, “sujas” das ruas (para citar apenas alguns dos adjetivos que se repetem nas matérias sobre higienização e revitalização dos centros urbanos). É uma questão de classe e racial: uma cisão do povo na forma que se percebe a nação.

As elites brancas, em particular, nunca se conformaram com a presença pobre nas ruas, não porque se preocupam com a pobreza, mas porque é nos centros em que os prédios históricos de arquitetura europeia se situam. Vale ressaltar que esse comentário não é, nem de longe, uma opinião “política”. Em minhas pesquisas em arquivos, constatei que esse foi o discurso predominante por mais de um século. Por exemplo, recentemente, durante a retirada dos camelôs do centro de Porto Alegre, o jornal Zero Hora escreveu que finalmente as pessoas sofisticadas e bonitas voltariam para os cafés ao estilo nostálgico europeu. Esse é um caso interessante porque revela uma nostalgia europeia que, de fato, nunca existiu: a história da ocupação dos centros é popular – e sempre foi. Mas esse é o Brasil que se nega. Esse é o Brasil que se procura, literalmente, “remover” e esconder.

O setor privado, por seu turno, mantém uma postura de vigília constante que pressiona o Estado para coibir a economia informal, considerando-a competição injusta com aqueles que geram emprego. Não se trata aqui de negar a competição injusta, tampouco de deixar de reconhecer que os pequenos empresários vivem uma verdadeira saga para se manter empregando as pessoas formalmente. Meu ponto é exclusivamente salientar que, assim como a guerra às drogas, a guerra à pirataria, ao contrabando e à economia informal tem se demonstrado não apenas custosa, mas ineficiente.

A questão da economia informal é calcada em questões estruturais, entre elas fatores sociais, econômicos e também culturais que fundam o Brasil. As soluções não são simples, tampouco unidirecionais. Elas envolvem um projeto de nação que pense estratégias de geração de emprego estável e seguro (o que estamos na contramão se levarmos em consideração a atual reforma trabalhista) no longo prazo. Todavia, como tentei pontuar, também se trata de um projeto de nação que questione sua autoimagem e a cisão estrutural de raça e classe no Brasil, a partir da qual a exclusão é socialmente aceita.

No médio prazo, é preciso criar e fortalecer os mecanismos de formalização e regulamentação da atividade autônoma – como, por exemplo, o Programa Micro Empreendedor Individual (MEI) – estimulando, assim, o capital criativo, inventivo e inovador dos trabalhadores informais. Por outro lado, é vital avançar além da lógica do empreendedorismo, criando mecanismos para estimular trocas econômicas solidárias, baseada em negócios coletivos que atuem pelo bem comum.

No curto prazo, por fim, urge entender que jogar a polícia para remover trabalhadores das ruas não funciona. É no âmbito local que precisamos desenvolver militância para criar canais de diálogo entre autoridades locais e trabalhadores informais, negociando o uso do espaço, estimulando canais de regulamentação e humanização enquanto os passos a médio e longo prazo vão se consolidando.

Em meio à atual crise brasileira, todas essas soluções soam distantes e pouco realistas. Mas o caso chinês é um exemplo de que se pode dar passos largos quando se tem um projeto nacional (mesmo que discordemos do projeto chinês). Andamos, infelizmente, a passos muito tímidos, mas não há outra saída quando o assunto é resolver a exclusão histórica brasileira: é trabalhar em diversas esferas, do micro ao macro, em diversas temporalidades, no intuito de promover o bem-estar das pessoas que, nas ruas, constituem o Brasil que deu certo: aqueles que, com todas as condições adversas, demonstram resiliência e resistem para trabalhar. Ao longo dos anos, a frase que mais escutei de camelôs foi: “Eu apenas quero trabalhar”. Que possamos sonhar um Brasil em que o desejo de trabalhar de qualquer forma seja visto como louvável – e não um crime.

Rosana Pinheiro-Machado é antropóloga, professora visitante da Universidade de São Paulo e há mais de uma década pesquisa a China. Ela é autora de Counterfeit Itineraries in the Global South: the human costs of piracy in China and Brazil (Londres e Nova Iorque, 2017) em Pequim nesta semana.

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